Garantias do Consumo

Reflexões sobre o direito do consumidor a partir da Covid-19

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3 de fevereiro de 2021, 8h01

A crise global instaurada em 2020 em virtude da pandemia da Covid-19 trouxe inúmeras dificuldades em todos os âmbitos da vida em sociedade. Um ponto que merece destaque é a transformação digital que estamos vivendo. Não somente a obrigatoriedade de trabalhar fora do ambiente tradicional, mas a necessidade e a conveniência de se navegar, interagir, comprar e usufruir de serviços pela internet trouxeram mudanças significativas e provavelmente duradouras [1] para o cotidiano dos consumidores.

A Covid-19 acelerou o processo de digitalização do Brasil e o consumidor brasileiro começou a realizar online atividades que não imaginava antes da crise, tais como a utilização de aplicativos de bem-estar (meditação, equilíbrio), serviços de telemedicina, ensino à distância, online streaming, dentre outros [2].

Objetiva-se, com este texto, instigar reflexões iniciais sobre três aspectos que merecem observação atenta pelos estudiosos do Direito do Consumidor: 1) os desafios associados ao dever de informar no ambiente digital; 2) a identificação da publicidade na internet e o papel dos influenciadores; e 3) o novo olhar do consumidor para a sustentabilidade e valores ambientais.

Quanto à informação no meio eletrônico, destaca-se a inclusão de mais consumidores com os mais diversos perfis no ambiente digital. Pessoas não habituadas com a tecnologia passaram a utilizar a internet de maneira corriqueira. Tratam-se de novos perfis de consumidores trazendo desafios à definição de quais informações devem ser apresentadas para garantir uma experiência de consumo positiva. Atualmente, também se discute na doutrina aspectos da vulnerabilidade desses consumidores e qual o papel do fornecedor nesse contexto.

Conforme disposições do CDC, é importante que o layout dos sites ou aplicativos seja simples, informativo, com a utilização de símbolos e palavras fáceis de compreender, em língua portuguesa e de fácil identificação na tela. As informações sobre o custo total da compra e frete no caso de produtos ou as características relevantes do serviço contratado, devem ser disponibilizadas no processo de compra para que o consumidor possa escolher contratar ou não. As informações sobre disponibilidade do produto ou duração do serviço também são relevantes para o processo de tomada de decisão do consumidor.

Outras informações relevantes ao consumidor são, por exemplo, o prazo de entrega, o qual deve ser bem informado, bem como a disponibilização de informações atualizadas no caso de imprevistos que possam surgir durante a entrega, principalmente considerando um cenário de pandemia. Em caso de produto personalizado, o design final deve ser enviado ao consumidor com tempo hábil para aprovação.

O Decreto Federal 7.962 de 2013 e, mais recentemente, o Decreto Federal 10.271 de 2020 determinam quais informações devem ser apresentadas ao consumidor no ambiente digital, regramento fortemente inspirado a partir do disposto no Projeto de Lei 3514/15, que dispõe sobre o comércio eletrônico.

A prática da adoção de uma senha ou palavra-chave a ser transmitida ao entregador no momento da entrega do produto tem sido utilizada por muitas empresas, por motivos de segurança. Esse sistema deve ser previamente explicado ao consumidor, sob pena de dificultar ou inviabilizar a entrega, assim como incrementos e novidades que buscam aprimorar a experiência de compra.

Por último e não menos importante, o serviço de atendimento ao consumidor no pós-venda tem papel crucial no bom funcionamento do mercado de consumo e, quando realizado de forma apropriada, garante a fidelização do consumidor. Esse serviço de atendimento eficiente está justamente em linha com as Diretrizes sobre Proteção dos Consumidores da Organização das Nações Unidas (UN Guidelines for Consumer Protection) ao determinarem que se deve garantir mecanismos de endereçamento de reclamações que disponibilizem aos consumidores meios céleres, justos, transparentes, baratos, acessíveis, ágeis e eficientes de resolução de disputas, sem custos ou encargos desnecessários, observando-se padrões nacionais e internacionais [3].

O segundo aspecto a ser observado é a questão do princípio da identificação da publicidade em conteúdo comercial veiculado em redes sociais, aplicativos, plataformas de vídeos ou quaisquer outros meios digitais por influenciadores digitais. A publicidade representa prática admitida pelo direito, desde que não se configure a publicidade enganosa ou abusiva. Os recursos tendentes ao convencimento do destinatário da mensagem, no entanto, devem se limitar ao seu conteúdo e não ao modo de empregá-los. Por isso, é importante que a mensagem seja identificada como publicidade desde logo, nos termos do artigo 36 do Código de Defesa do Consumidor. Trata-se de norma que deriva da boa-fé objetiva e determina deveres de lealdade e transparência entre as partes, originando-se para o fornecedor o dever de caracterizar a publicidade [4].

O maior número de acessos a redes sociais durante a pandemia conferiu grande destaque ao papel dos influenciadores digitais [5], que acabaram se tornando mais presentes e constantes na realidade dos consumidores, principalmente por meio de transmissões e shows ao vivo (mais conhecidos como lives[6]. Nesse sentido, surgiu o desafio não só de uma publicidade responsável e identificável, mas também de posicionamentos coerentes dos influenciadores em um contexto de pandemia, que não incitem aglomerações e/ou violações às orientações das autoridades de saúde competentes.

A adoção de elementos de identificação do conteúdo comercial evita publicidade oculta, dissimulada ou clandestina em conteúdos disponibilizados por influenciadores digitais, youtubers, blogueiros ou formadores de opinião em geral, que recomendam diversos produtos ou serviços, sem que fique claro se há ou não uma natureza comercial direcionada aos seguidores. A identificação da publicidade não é feita ou é feita de maneira inadequada, o que pode confundir o público. É comum que os influenciadores digitais narrem detalhes de suas vidas ou mostrem seus pertences, impossibilitando que se perceba, muitas vezes, a ocorrência de um anúncio publicitário.

As famosas hashtags publi, publicidade ou publipost utilizadas e recomendadas pelo Conar devem ser utilizadas de forma que se leve em consideração o perfil de seguidores para que os consumidores identifiquem a natureza comercial do conteúdo. Se são usadas em vídeos ou stories com outras informações, no meio de outras tantas hashtags, com fonte quase imperceptível, em posição na tela que dificulte a leitura ou de qualquer outra forma que não permita a plena compreensão, não são úteis ao fim almejado.

Discute-se também que avisos em inglês ou em outros idiomas também não sejam suficientes para cumprir o dever de comunicar claramente sua intenção. Os anúncios e posts publicitários podem ser feitos por meio de parcerias pagas entre as empresas e os influenciadores digitais nas redes sociais, quando se tem utilizado também a ferramenta de identificação disponibilizada pelas plataformas. Trata-se de um exemplo em que a publicidade usualmente é identificada como tal.      

A identificação pelo consumidor de que está exposto a uma mensagem de caráter publicitário deve ocorrer sem esforço. Trata-se de assunto recepcionado pelas mais diversas legislações do mundo e busca evitar que o consumidor seja exposto ao conteúdo comercial da publicidade sem estar ciente dele. É regra que decorre do dever de transparência e lealdade nas relações de consumo.

Em casos de flagrante violação do princípio da identificação da publicidade o controle pode ser feito no caso concreto por meio da imposição ao fornecedor que identifique a publicidade e/ou pela condenação à realização de contrapropaganda ou outra medida que se mostre adequada.

Finalmente, em relação ao novo olhar do consumidor para questões ambientais, vale registrar que o ano de 2021 marca o segundo ano da Década de Ação com os dez anos para transformação do mundo [7], para o atingimento das metas da Agenda 2030, que visa à erradicação da pobreza e à promoção do desenvolvimento econômico, social e ambiental em escala global até 2030. Para essa agenda universal a ONU estabeleceu, em 2015, 17 metas globais, chamadas de Objetivos do Desenvolvimento Sustentável [8] para um futuro mais sustentável para todos.

Nesse sentido, as questões climáticas e ambientais têm fomentado o surgimento de consumidores com consciência ao consumir, que esperam posturas socialmente responsáveis de empresas e que fazem escolhas de consumo considerando os eventuais impactos daquele produto ou serviço no meio ambiente [9]. Em paralelo, normas e políticas que regulam o gerenciamento de resíduos exigem a educação de consumidores nesse tema, como a própria Política Nacional de Resíduos Sólidos. Os consumidores, por sua vez, estão atentos e respondem cada vez mais rapidamente adquirindo ou abandonando produtos e marcas a partir dos impactos gerados ao meio ambiente [10].

Na mesma linha caminha a postura de investidores que têm olhado com bastante atenção para informações e reportes sobre as práticas ambientais, sociais e de governança (ESG, como são conhecidas internacionalmente) das companhias, para melhor entender a relação da empresa com o meio ambiente e a sociedade antes de aportar investimentos [11]. Essas informações são de relevância não só para os investidores, mas também para os consumidores, autoridades e demais atores.

O CDC aborda os aspectos ambientais no mercado de consumo ao tipificar como abusiva a publicidade que desrespeita os valores ambientais. Além disso, o Código do Conar dedica um anexo para os apelos de sustentabilidade, de forma que a publicidade nesse aspecto seja concreta, veraz e clara.

O Projeto de Lei 3514/2015, que aperfeiçoa as disposições gerais do CDC e dispõe sobre o comércio eletrônico, inclui como um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo a promoção de padrões de produção e consumo sustentáveis, entre outros aspectos que incorporam os princípios da prevenção e precaução do direito ambiental.

As reflexões aqui apresentadas indicam, certamente, as velozes mudanças que atingiram o mercado de consumo no último ano e destacam desafios que serão enfrentados pelo direito do consumidor em uma era de consumo intenso no ambiente digital estimulado por influenciadores digitais, atingindo, muitas vezes, um consumidor com consciência ambiental. É salutar que todos os atores e envolvidos discutam, proponham e atualizem o PL 3514/2015 para que possamos, juntamente com a principiologia do CDC e a Lei Geral de Proteção de Dados, navegar pelos próximos anos.

 


[1] De acordo com pesquisa realizada pela agência Nielsen, houve aumento na porcentagem de consumidores que pretendem continuar comprando online seus alimentos, produtos de cuidado pessoal e produtos para a casa após o período da pandemia: https://www.nielsen.com/br/pt/insights/digital/.

[2] O novo consumidor, McKinsey & Company, disponível em: https://www.abcem.org.br/emkt/2020/arquivos/o_novo_consumidor_po%CC%81s_Covid_19.pdf.

[3] United Nations Guidelines for Consumer Protection disponível em https://unctad.org/system/files/official-document/ditccplpmisc2016d1_en.pdf.

[4] PASQUALOTTO, Adalberto. Os efeitos obrigacionais da publicidade no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.

[7] Decade of Action, Tem years to transform the world, UN, acesso em 09 de janeiro de 2021, disponível em https://www.un.org/sustainabledevelopment/decade-of-action/.

[8] Agenda 2030: quais os esforços para promover o desenvolvimento sustentável?, Politize, acesso em 09 de janeiro de 2021, disponível em: https://www.politize.com.br/agenda-2030/.

[9] O novo consumidor, McKinsey & Company, disponível em: https://www.abcem.org.br/emkt/2020/arquivos/o_novo_consumidor_po%CC%81s_Covid_19.pdf.

[10] VISENTINI, Caroline Ferreira Gonçalves, 30 anos do CDC: o que esperar dos próximos capítulos nas relações de consumo? Disponível em: https://www.aasp.org.br/em-pauta/30-anos-do-cdc/.

[11] As três letras que estão mudando o comportamento nos investimentos. Disponível em: https://cebds.org/esg-as-tres-letras-que-estao-mudando-comportamento-os-investimentos/.

Autores

  • é advogada do escritório Trench Rossi Watanabe, especialista em Direito do Consumidor pela Escola Paulista da Magistratura, mestre pela Columbia University, diretora adjunta do Brasilcon, membro do Comitê de Relações de Consumo do IBRAC e professora convidada da PUC-SP.

  • é advogada, mestre em Direito do Consumidor e Concorrencial pela UFRGS, especialista em Direito dos Contratos e Responsabilidade Civil pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e pós-graduada pela Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris).

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