Opinião

Alice, a aplicação dos precedentes e as funções das cortes superiores

Autor

  • Bruno Augusto Sampaio Fuga

    é advogado professor doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP (2020) pós-doutorando pela USP membro titular efetivo da Academia de Letras de Londrina (PR) mestre em Direito pela UEL (linha de Processo Civil) pós-graduado em Processo Civil (2009) pós-graduado em Filosofia Jurídica e Política pela UEL (2011) coordenador da Comissão de Processo Constitucional da OAB Londrina membro do IBPD e IAP conselheiro da OAB Londrina e editor-chefe da Editora Thoth.

2 de fevereiro de 2021, 17h45

O Código de Processo Civil de 2015 trouxe significativas alterações para o sistema recursal, fortalecendo a função das cortes superiores e criando fortes vinculações em alguns tipos decisionais. É preciso racionalidade no ordenamento jurídico, que as cortes superiores possam trabalhar melhor e de maneira mais racional, assim essa visão de forte vinculação de alguns "precedentes" faz grande sentido (racionalidade). Destaco, porém, aqui uma crítica pontual ao sistema atual recursal: a ausência de compreensão que os precedentes precisão ser interpretados.

Sobre essa necessidade de interpretar, afirmo que o texto, ou a decisão proferida, por si só, não diz nada, o importante é o significado atribuído pelo intérprete, a ratio decidendi ou o precedente é construído ao longo do tempo — é necessária a atividade interpretativa. Assim, precedente não pode ser visto como regra jurídica perfeita e acabada.

A interpretação é fundamental, pois se não há mais hoje um "juiz boca da lei", certamente também não existirá um juiz "la bouche du précédent".

Nesse sentido, esse prévio conhecimento de necessidade do intérprete para dar sentido ao texto legal ou ao julgamento é essencial, em especial nos processos de forte eficácia vinculativa. Assim, no sistema processual brasileiro atual apenas uma decisão proferida traz diversas consequências impeditivas de recursos, tais como recursos repetitivos, IAC, teses jurídicas, decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade, repercussão geral etc.

Ocorre, porém, que o precedente é construído em decisões futuras, pelo ato do intérprete após o provimento deste "precedente" que, ironicamente, tem eficácia vinculante forte em algumas situações no Código de Processo Civil de 2015. Não podemos afirmar, como julgado pelo STJ (RcL nº 36.476), que a função das cortes superiores é apenas fixar a tese e não precisaria mais ser a decisão interpretada — apenas fixar a tese não basta, pois textos precisam ser interpretados.

Veja, como exemplo, Taniguchi v. Kan Pacific Saipan 566 U.S. 560 (2012), no qual a Suprema Corte recorreu aos dicionários para interpretar o significado de … "intérprete".

Necessário, então, pensar e entender que o Direito não é "revelado" pelo tribunal. É de vital importância estudar e aplicar o "precedente" não apenas pelo prisma do artigo 927 — é preciso entender ratio, fundamentos determinantes, tese jurídica, distinções e superações.

Destacado também que o precedente, por não ter generalidade e abstração da lei, não pode ser desconectado do caso concreto, assim qualquer tentativa de firmar tese, súmula ou súmula vinculante, com tentativa de abstração, poderá incorrer em sérios perigos.

Não apresentar as devidas críticas a essa eficácia vinculante firmada a partir de um único julgamento, sem desconsiderar problemas inerentes e essenciais da interpretação, é o mesmo que retroagir aos tempos do positivismo jurídico. Mas aqui um "positivismo" não da lei, e, sim, do julgamento.

O legislador, ao determinar a fixação de tese jurídica [1], ou mesmo de "precedentes" obrigatórios (ou com forte vinculação) a partir de uma única decisão, julgou ter o juiz a mesma memória que a Rainha Branca em "Alice Através do Espelho" [2]. A Rainha Branca afirmava que sua memória funcionava em dois sentidos, dizia ela, então, que era possível lembrar de "coisas antes de elas acontecerem" e que sua memória funcionada melhor para coisas "que aconteceriam daqui a duas semanas".

Assim, não é possível, ao se fixar a tese jurídica, determinar o que o futuro intérprete deverá pensar, não é possível ao que fixa a tese jurídica ou ao que julga o processo delimitar a memória ou o ato de interpretar do agente. A memória é para coisas do passado e o ato de interpretar é sempre para o presente. Não é possível determinar a interpretação, o sujeito que escreve não delimita ou determina a interpretação de quem posteriormente lê. A Rainha Branca era confusa (frase essa de Alice) e o legislador também parece assim ser, confuso.

Percebemos então que no civil law, em geral, o operador do Direito não sabe usar ou trabalhar com precedentes. O Código de Processo Civil de 2015, por sua vez, deixa esse fato mais notório.

Questionamos, então, quem fará essa interpretação dos entendimentos firmados em precedentes

Vislumbramos a problemática, então, da criação de tese jurídica por parte do Judiciário com pretensão de abstração do julgamento. Com a tese jurídica, os mesmos problemas inerentes ao texto legal se têm com a decisão judicial, pois deverá ser interpretada.

Esse "problema" de interpretação também será visível em qualquer "precedente" produzido com o objetivo de ser "obrigatório". Temos, em um só cenário, súmulas, teses jurídicas, fundamentos determinantes, dispositivo da decisão, que obrigatoriamente precisam ser interpretados.

Mesmo precisando ser interpretado, o código esquece literalmente esse fato e cria "precedentes obrigatórios" e com restrição de via recursal para a parte interessada requerer superação e questionar a interpretação e alcance de teses jurídicas em alguns tipos recursais (CPC, artigo 1.030 e 1.042).

Nessa situação, questionamos se haverá, por exemplo, recursos repetitivos, IAC ou reclamação para interpretar a decisão proferida em "precedentes" com forte vinculação. Como afirmamos, a interpretação é inerente ao sistema, pensar que o precedente não será ou poderá ser interpretado é incorrer nos mesmos erros do positivismo.

Questionamos como ficará essa interpretação. Após firmada tese jurídica em recursos especiais e extraordinários repetitivos pelo STF ou STJ, quem interpretará, os tribunais? Seria possível os tribunais, ou até mesmo juízes de primeiro grau, darem interpretações diferentes da mesma tese jurídica? Dando interpretações diferentes, poderá o tribunal abrir IRDR ou IAC para evitar ofensa à isonomia e segurança jurídica nesses casos?

São essas apenas apresentações de problemáticas pertinentes da própria natureza do texto que sempre precisa ser interpretado, mas o texto legal no Código de Processo Civil de 2015 não fez essa previsão e o STJ, inclusive, como afirmado, segue tendência de não admitir reclamação com essa finalidade interpretativa no atual Código (STJ, Rcl nº 36.476). O STJ esquece que após fixada uma tese jurídica, ou após a escrita ser feita, a interpretação é de quem lê e não mais de quem produziu o texto.

Como já pontuado, a maior quantidade de "precedentes" cria possibilidade dos julgadores, por descuido ou propositalmente, se afastarem dos fundamentos determinantes inicialmente criados.

Soma-se a isso a cultura de não saber usar os "precedentes", tanto em seu uso quanto em sua construção. Em Portugal, por exemplo, com os assentos, a experiência não foi proveitosa.

Temos, então, sérias dúvidas quanto ao promissor futuro desse sistema recursal criado pelo Código de Processo Civil, com decisões vinculativas, inclusive, agora também produzidas por tribunais de justiça (IRDR e IAC).

Já se ventilou que súmulas não conseguem sintetizar a ratio de "precedentes" ligados ao caso. Não se é então otimista sobre o fato de que teses jurídicas serão fixadas em sintonia com a ratio dos precedentes ligados ao tema. Nesse sentido, também, ratio serão de difícil identificação, tendo em vista a forma de julgamento, forma de debates e de ausência de argumentação em leading cases.

Há, portanto, ausência de pensamento sistêmico do Código de Processo Civil de 2015 que decisões precisam ser interpretadas. A completa cegueira do Código de Processo Civil na lógica da interpretação de qualquer texto legal é preocupante.

O sistema recursal positivado acerta ao criar melhor racionalidade para ordenamento jurídico, porém depositou muita confiança no suposto uso dos "precedentes", uma visão quase mitológica, mas é necessário se afastar de um dogma absoluto (absolute dogma) ou de um "fetiche irreal" (unreal fetish[3]não devemos entender o precedente como uma santidade [4].

Nesse ponto, não podemos cometer o mesmo erro do positivismo, entregando ao "precedente" a solução de todos os casos. Não deve ser ele, esse instituto do precedente, um fetiche para a rápida solução dos problemas, porém parece ser esse um dos erros do Código de Processo Civil.

 


[1] O termo tese jurídica é citado no código de processo civil nos artigos 12, §2º, II; 311, II; 927, §2º e §4º; 947, §3º; 955, II; 976, §4º; 978, parágrafo único; 979, §2º; 984, §2º; 985, caput e §1º e 2º; 986, 987, caput e §2º; 988, §4º, 1.022, parágrafo único, inciso I; 1.038, §3º; 1.039; 1.040, III e IV; 1.043, §1º.

[2]CARROLL, Lewis. Através do espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. p. 145

[3] WIGMORE, John Henry. Problems of law, its past, present, and future. Review by: Isaac Husik. University of Pennsylvania Law Review and American Law Register. Vol. 69, nº. 4, May,1921, p. 79.

[4] LANGBEIN, John H. Modern jurisprudence in the House of Lords the passing of London Tramways. Cornell Law Review, 1968, p. 808.

Autores

  • é advogado, professor, doutor em Processo Civil pela PUC/SP, mestre em Direito pela UEL (na linha de Processo Civil), pós-gaduado em Processo Civil (IDCC), pós-graduado em Filosofia Política e Jurídica (UEL), membro da Academia Londrinense de Letras (cadeira nº 32), coordenador da pós-graduação em Processo Civil do IDCC, foi presidente e membro fundador da comissão de processo civil da OAB de Londrina, conselheiro da OAB de Londrina, editor chefe da Editora Thoth, membro ABDPro, IBDP e IDPA.

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