Opinião

O 'censo' Bolsonaro e as organizações religiosas

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1 de fevereiro de 2021, 10h50

A ideia do presidente Jair Bolsonaro no sentido de criar um "censo" referente às organizações religiosas pode, à primeira vista, sugerir algo de novo ou ainda uma afronta ao Estado laico, à vista do que consta no artigo 19, inciso I, do texto da Constituição de 1988, que, em resumo, impõe ao Estado brasileiro uma limitação para que possa subvencionar ou manter relações com igrejas e cultos religiosos.

Contudo, a Constituição Federal, tanto quanto impõe os limites, ressalva que a lei pode viabilizar essa relação entre Estado e organizações religiosas, desde que seja em colaboração para o interesse público. A questão, inclusive, não é nova ao Brasil, e é parte do nosso cenário constitucional desde a Constituição de 1934, que previa no seu artigo 17, incisos II e III, a mesma limitação e ressalva quanto a possibilidade do estabelecimento de parcerias com as organizações religiosas, sempre que a finalidade fosse o "interesse collectivo". A bem da verdade, essa é a regra primaz do Estado laico, e que consta das Constituições brasileiras de 1934, 1946, 1967 e 1988.

Ou seja, apenas nos movimentos constitucionalistas de 1891 (primeira República) e 1937 ("getulismo") é que a disposição ficou limitada em absoluto, sem qualquer ressalva quanto à possibilidade de parcerias entre o Estado e as organizações religiosas. O que era uma contradição diante da realidade do povo brasileiro e da própria necessidade do Estado, que não tinha e nem tem a capilaridade das organizações religiosas.

O que se quer dizer com isso é que a possibilidade de se relacionarem o Estado e a Igreja não é necessariamente uma violação à laicidade do Estado, longe disso. Até mesmo porque não há contradição alguma na existência de um povo religioso sendo representado em um Estado laico, muito antes pelo contrário, essa é uma circunstância necessária diante do pressuposto democrático, pois que é a religiosidade do indivíduo, acima de qualquer coisa, o bem a ser protegido, seja ela de que credo for, e não as organizações religiosas.

No ponto das relações entre as organizações religiosas e o Estado, portanto, a premissa primeira que se deve ter é a finalidade, e não a pessoa (a organização religiosa, no caso), pois se ao Estado a religião só tem importância na dimensão das garantias individuais, a organização religiosa de representatividade do credo, ou seja, a pessoa jurídica que organiza e reúne a religiosidade, é totalmente desimportante do ponto de vista jurídico, ao menos se não atingida a garantia individual do indivíduo religioso.

Tanto é verdade que, tais quais as pessoas jurídicas descritas no Código Civil, as organizações religiosas também são listadas enquanto tal, precisamente no artigo 44, inciso IV. Por outras palavras, não há razões para excluir da possibilidade de realização de parcerias com as organizações religiosas se, no ordenamento jurídico, elas têm tratamento similar a qualquer outro tipo de pessoa jurídica.

De maneira mais clara, há de se questionar a razão de ser possível estabelecer um convênio com uma associação sem fins lucrativos e não o ser com as organizações religiosas, se ambas são pessoas jurídicas em circunstâncias próprias no âmbito civil (artigo 44, incisos I e IV, do Código Civil).

O Decreto nº 7.107/2010, que internaliza o acordo internacional celebrado entre o Brasil e a Santa Sé, bem assinala, no artigo 5º, que as pessoas jurídicas eclesiásticas gozarão dos mesmo direitos e garantias das instituições de assistência se, como é o caso, prestarem assistência social tanto quanto elas, e nos termos da lei.

Nesse ponto, portanto, não faz sentido haver distinção entre quaisquer das pessoas jurídicas indicadas no artigo 44, do Código Civil, para efeito de estabelecer relações de parcerias com o poder público, se o fim almejado é o interesse coletivo. Metaforicamente, ao poder público não importa o nome que consta do crachá ou a religiosidade do contratante, mas, sim — e sempre —, se o contrato público, o convênio, ou o que quer que seja promovido pelo Estado atende ao interesse da coletividade, indiscriminadamente, e independentemente do credo de cada um.

A vantagem, aliás, no caso das organizações religiosas, é a capilaridade, pois bem se sabe que a história do desenvolvimento dos mais de 5,5 mil municípios brasileiros tem sempre como ponto de partida uma cruz, e em seguida uma igreja, em que, ao seu redor, são edificadas as primeiras instituições públicas. Fato que torna viável ao governo federal, em qualquer política, acessar mais facilmente os beneficiários se usar das organizações religiosas, pois elas estão em todo o canto do Brasil.

Ou seja, sendo a finalidade do "censo" algo de interesse público, a fim de o Estado "usar" a capilaridade das organizações religiosas para dar vazão as políticas públicas de assistência, por exemplo, não há qualquer limitação de ordem legal ou constitucional na medida. Agora, quanto ao ambiente político, e o momento em que se estabelece essa relação, talvez seja o caso de investigar os fins, pois é aí onde pode repousar a violação da norma descrita no artigo 19, inciso I, da Constituição de 1988. Portanto, não há de se investigar o meio, ou com quem se faz o convênio, mas as razões e as finalidades pelas quais são celebrados. É onde residem os problemas deste país.

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