Direitos Fundamentais

O uso falacioso do argumento da soberania do júri

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31 de dezembro de 2021, 8h00

Recentemente, o julgamento, pelo Tribunal do Júri, bem como a condenação (que, como decidida pelo Conselho de Sentença, não se está aqui a questionar) à pena de reclusão de todos os quatro réus acusados pelo homicídio de 242 pessoas e tentativa de homicídio de mais de 600 feridos, por ocasião do trágico incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (RS), em 27 de janeiro de 2013, tem gerado uma série de reportagens e manifestações, seja nos meios de comunicação convencionais, seja nas mídias sociais.

As opiniões veiculadas dizem respeito aos mais diversos aspectos relativos ao julgamento, mas, de modo particularmente agudo, acabaram por focar-se nos eventos imediatamente posteriores, relacionados à liminar em sede de Habeas Corpus concedida pela 1ª Câmara Criminal do TJ-RS, logo cassada por decisão monocrática proferida pelo ministro Luiz Fux, no bojo de ação impetrada diretamente perante o STF pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul.

Na sequência, como amplamente noticiado, a concessão da ordem foi confirmada pela 1ª Câmara Criminal do TJ-RS, mas o presidente do STF, acolhendo pleito no mínimo curioso do MP riograndense (visto que esgrimido antes mesmo de concluído o julgamento do Habeas Corpus), tornou sem efeito a decisão do colegiado do tribunal gaúcho, vedando, portanto, a soltura dos réus.

Embora sejam muitos os pontos polêmicos que aqui poderiam ser examinados na perspectiva dos direitos fundamentais, o que nos move é apenas um, designadamente, o da extensão da soberania assegurada pela Constituição Federal de 1988 ao Tribunal do Júri. Cuida-se de aspecto particularmente relevante, porquanto, de acordo com vários articulados que têm sido difundidos, a decisão sobre a fixação do montante da pena, do regime de seu cumprimento, bem como o provimento relativo à imediata prisão, seja em caráter provisório (preventivo), seja a título de execução provisória da pena, encontra-se sob o manto indevassável da soberania do júri e por ninguém mais poderia ser alterada.

Ora, por mais que respeitemos a autoridade intelectual e moral de muitos dos defensores dessa linha de entendimento, o fato é que, ousamos esgrimir, se equivocam, o que se prende a várias razões. Antes, contudo, convém relembrar de que tipo de categoria dogmático-constitucional estamos tratando, para que, na sequência, possamos retomar o fio da meada e melhor justificar o nosso ponto de vista.

A instituição do júri e a sua soberania ocupam um lugar diferenciado no âmbito das assim chamadas garantias fundamentais. Desde logo dando por superada a vetusta distinção entre direitos e garantias, no sentido de que os primeiros possuem natureza declaratória, ao passo que as segundas têm caráter assecuratório [1], o fato é que a CF acabou, de algum modo, incorporando ao seu texto uma diferença entre ambas as categorias, pelo menos à vista do teor literal da epígrafe do seu Título II ("Dos Direitos e Garantias Fundamentais"), revelando, de outra banda, além da existência de direitos fundamentais e garantias fundamentais, que ambas as categorias possuem, em princípio, a mesma dignidade jurídico-constitucional.

O que é importante consignar é que essas garantias fundamentais são, na verdade, autênticos direitos subjetivos, já que umbilicalmente ligadas aos direitos fundamentais, bem como por assegurarem ao indivíduo a possibilidade de exigir dos poderes públicos o respeito e a efetivação destes. Não é, contudo, muitas vezes fácil identificar se estamos diante de um direito fundamental autônomo ou perante uma garantia, na medida em que diversas as situações em que ambos os elementos estão contidos na mesma norma definidora de direito fundamental [2]. É por isso que, entre nós, corretamente se apontou para a possibilidade de um direito fundamental se exprimir pela norma de garantia, quando nesta se encontra subentendido [3].

Ao lado de uma grande maioria de direitos-garantia, caracterizados pela sua função dúplice como direitos subjetivos e sua natureza instrumental, encontramos no catálogo dos direitos fundamentais da Constituição também algumas garantias institucionais típicas. Também no direito luso-brasileiro, as garantias institucionais podem ser definidas, de forma ampla, como "a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais providos de um componente institucional que os caracteriza" [4].

Convém notar, a exemplo do que bem esclarece Maria D'Oliveira Martins, que tal concepção de garantias institucionais corresponde a uma compreensão abrangente, que abarca tanto as garantias constitucionais de instituições de direito público — que, segundo a autora e a doutrina dominante, constituem as garantias institucionais em sentido estrito — quanto as garantias constitucionais de institutos de direito privado (propriedade, família etc.) [5].

Importa salientar, outrossim, que os direitos fundamentais — na condição de garantias institucionais — em que pese não exercerem a função de uma garantia absoluta do status quo [6], protegem o núcleo essencial de determinados institutos jurídico-privados (garantias de instituto) e jurídico-públicos (garantias institucionais), no sentido de que seu objeto constitui um complexo de normas jurídicas [7].

Como exemplos (rol meramente ilustrativo) de autênticas garantias institucionais no catálogo da nossa Constituição, podem ser referidas a garantia da propriedade (artigo 5º, inciso XXII), do direito de herança (artigo 5º, inciso XXX), da instituição do Tribunal do Júri (artigo 5º, inciso XXXVIII), da língua nacional portuguesa (artigo 13), dos partidos políticos e de sua autonomia (artigo 17, caput, e §1º).

Registra-se certo consenso na doutrina no que diz com a circunstância peculiar das garantias institucionais, no sentido de não outorgarem ao indivíduo direitos subjetivos autônomos, em que pese a existência de algumas exceções, de modo especial nos casos em que as garantias institucionais se encontram intimamente vinculadas à garantia dos direitos fundamentais, como bem demonstra a liberdade de imprensa [8]. Atualmente, portanto, reconhece-se a existência tanto de garantias institucionais de natureza jurídico-objetiva quanto da convivência, no mesmo preceito constitucional, de direitos subjetivos e garantias institucionais [9].

Voltando-nos ao caso da garantia institucional do júri e de sua soberania (artigo 5º, inciso XXXVIII, CF), trata-se seguramente de um dos mais cristalinos e evidentes exemplos desse tipo de garantias na arquitetura constitucional brasileira, o que resta demonstrado já pelo fato de que o cidadão não ter o direito subjetivo de optar por não ser julgado pelo Tribunal do Júri, quando denunciado e pronunciado pela prática de crime doloso contra a vida. A CF atribuiu maior relevância à instituição do júri e, portanto, à prerrogativa de a sociedade julgar os seus pares. A garantia da instituição do júri representa, portanto, para o cidadão, mais propriamente um dever fundamental de ser julgado pelo júri ou, pelo menos, a exemplo do direito de voto, um direito-dever.

Ora, garantida a instituição do júri e a sua soberania, resta saber até onde vai a sua proteção na perspectiva constitucional, dito de outro modo, qual o seu conteúdo essencial.

Para tanto, é preciso distinguir quais as questões que cabem ao Tribunal do Júri (conselho de sentença) decidir e quais as matérias afetas ao juiz de Direito que conduz o processo e preside a sessão de julgamento, bem como quais os aspectos aptos a serem submetidos aos tribunais, em sede recursal.

No que mais diretamente interessa para a presente coluna, sublinha-se que a fixação do quantum da pena, do regime de seu cumprimento e mesmo a decisão sobre eventual prisão preventiva ou execução provisória da pena cabe (e sempre coube) pelo sistema legal brasileiro, não ao Tribunal do Júri, mas ao juiz togado

De acordo com a atual redação do artigo 593, inciso III, do Código de Processo Penal, as hipóteses de cabimento de apelação das decisões do Tribunal do Júri podem ser agrupadas em três grandes grupos: nulidades que tenham ocorrido depois da pronúncia (avultando incidentes no plenário); problemas na sentença do juiz-presidente (erro ou injustiça na aplicação da pena); e decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

Resulta evidente que nas duas primeiras situações sequer se cogita da soberania dos veredictos, podendo a sessão do Tribunal do Júri ser anulada e repetida ad nauseam se ocorrerem sucessivas nulidades (tantas quantas a imaginação ou o comportamento do juiz-presidente, das partes, do público e dos próprios jurados indicarem), bem como devendo o tribunal ad quem retificar a aplicação da pena naquela segunda hipótese referida (que corresponde à letra "c" do inciso III do citado artigo 593, combinada com os §§1º e 2º do mesmo dispositivo).

Note-se que tudo isso acontece, normal e cotidianamente, por todo o Brasil, e curiosamente parece que somente agora alguns bradam em elevado tom que é a soberania do Tribunal do Júri, expressão do princípio democrático, que, ao fim e ao cabo, torna imutável a sentença prolatada pelo magistrado que presidiu a sessão de julgamento e que decidiu fixar a pena em determinado montante.

Mesmo na terceira hipótese, quando em xeque a própria decisão dos jurados (mérito da causa contrário à prova dos autos, modo manifesto), a solução legal, de franca harmonização, é que o tribunal ad quem remete o réu a nova julgamento, o que só deve ocorrer uma única vez (§3º do artigo 593 do CPP).

O que se quer dizer com essa breve incursão infraconstitucional, simplória para qualquer estudante de Direito, é que a soberania do Tribunal do Júri, tradicionalmente, nunca foi tratada como um absoluto na ordem jurídica pátria, e nem naqueles casos em que há decisão de mérito, pelos jurados, quanto ao crime doloso contra a vida (desclassificação, culpado ou inocente).

Aliás, o mesmo Ministério Público que, mediante alguns de seus representantes (entre outros atores), agora — ainda que em geral indiretamente — invoca a soberania do júri para sustentar a tese de que a fixação da pena, o regime de cumprimento e a decisão sobre a prisão são abarcados pela soberania do júri e pelo princípio democrático, desde sempre tem lutado com denodo por manter sua legitimidade, também tradicionalmente aceita, para apelar de absolvições que considera manifestamente contrária à prova dos autos, questão cuja repercussão geral foi reconhecida recentemente [10]. O mesmo, aliás, vale para o montante da pena…

Escusado apontar que o amor pela soberania dos veredictos deveria ter dois vetores, pois a banca paga e recebe, como na sabedoria popular.

De toda sorte, quem inova, no plano infraconstitucional, é a Lei 13.964/2019, ao determinar a execução provisória da condenação em caso de uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão [11]. Para além do duvidoso corte dosimétrico (que pode, por exemplo, distorcer a aplicação da pena, tornando-a artificialmente alta para forçar a imediata execução como, sinal contrário, ocorria com o revogado protesto por novo júri, quando os juízes evitavam penas superiores a 20 anos de reclusão).

Tanto inova que, no Recurso Extraordinário nº 1.235.340, pendente de julgamento, o relator ministro Roberto Barroso, ao reafirmar a tese de que a soberania do Tribunal do Júri sustenta a imediata execução das condenações impostas pelo corpo de jurados, exclui a baliza de 15 anos de pena, inclusive para não ferir a isonomia.

Já o STJ tem realizado interpretação conforme e reconhecido a ilegalidade da execução provisória, pois, antes de esgotados todos os recursos cabíveis, a prisão só poderá ocorrer por decisão individualizada que demonstre a existência dos requisitos para a prisão preventiva, nos termos do artigo 312 do CPP [12].

Finalmente, retornando à Constituição, a 2ª Turma do STF andou bem ao afastar a possibilidade de execução provisória da pena e expressamente rechaçou a execução provisória (mesmo antes da possibilidade de revisão da condenação em sede de apelação) como delineada pela Lei nº 13.964/2019 por violar a presunção de inocência e o direito ao recurso, também assentado que "nada justifica tratamento diverso aos condenados no Tribunal do Júri em relação aos demais réus que, nos termos decididos pelo STF nas ADCs 43, 44 e 54, somente poderão ter a pena executada após o trânsito em julgado da sentença" [13].

Ainda nesse contexto, é de se indagar se os advogados do argumento da soberania do júri, caso a pena tivesse sido fixada em 14 anos de reclusão, estariam seguindo a mesma linha discursiva para justificar eventual recurso para majoração da pena e sua imediata execução.

Calha acrescentar, ainda, algo que definitivamente não soa como mero detalhe, mas que curiosamente tem sido sistematicamente esquecido em alguns discursos: no mesmo inciso XXXVIII do artigo 5º da Constituição, que reconhece a instituição do júri, a plenitude de defesa é sua primeira característica (a soberania dos veredictos, a terceira), lembrando que a soberania dos vereditos não abarca a fixação da pena e o seu montante.

O que aqui também se busca pontuar é que seria um tanto paradoxal que, justamente no procedimento do júri, em que resplandece a plenitude de defesa, a presunção de inocência (inciso LVII, CF) e o contraditório e ampla defesa (inciso LV, CF), que valem para todos os outros réus de todos os outros processos criminais no Brasil, restassem tão estreitados.

Aliás, não deveria causar surpresa o tratamento adverso que alguns buscam insistente e quase que compulsivamente atribuir aos réus submetidos ao procedimento do júri, posto que a jurisprudência, até há pouco tempo, reconhecia a incidência do artigo 155, CPP (que proíbe a condenação com base exclusivamente em informes policiais), para todos os réus de todos os processos criminais, menos para os casos do Tribunal do Júri, porquanto se admitia o pronunciamento com base tão somente em elementos do inquérito policial (até mesmo o "ouvir dizer"), o que, felizmente e em homenagem à Constituição, foi modificado mais recentemente pelo STJ.

De qualquer sorte — e para finalizar —, o que se pretendeu destacar é, nada mais nada menos, que, de acordo com a Constituição Federal de 1988 e em sinergia com o sistema legal e a jurisprudência absolutamente dominante dos tribunais superiores, ao Tribunal do Júri, no âmbito de sua soberania, cabe a decisão, em linhas gerais, sobre a condenação ou absolvição, mas não cabe fixar o montante da pena e decidir sobre o respectivo regime de cumprimento (tampouco sobre a prisão), provimento que é cometido ao juiz togado, que, vinculado pelo juízo condenatório e parâmetros legais, tem significativa margem para tanto, desde que fundamente adequadamente sua decisão.

Pretender convencer a opinião pública, especialmente o leitor leigo ou menos atento, de outra coisa, é, no mínimo, um exercício de populismo demagógico e que injustamente imputa — como o fizeram alguns — aos que simplesmente dizem (e aplicam) o que prescrevem a Constituição e as leis, a pecha estigmatizante de "intelectuais ungidos" (ou o que parece até soar como um pecado capital, de "garantistas"). Esta, salvo melhor juízo, não é uma forma ética e nem democrática de conduzir um debate na esfera pública, mas, sim, um argumento ad personam.


[1] Cf. R. Barbosa, Commentários V, p. 181.

[2] Cf. J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 173, e, semelhantemente, de J. Miranda, Manual IV, p. 90.

[3] Cf. J.A. da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 355, baseado na lição de Ruy Barbosa.

[4] Cf. Idem, op. cit., p. 492.

[5] Cf. M. D'Oliveira Martins, Contributo para a compreensão da figura das garantias institucionais, Coimbra: Almedina, 2007, p. 14-15. No âmbito da doutrina alemã, v., por todos, M. Kloepfer, "Einrichtungsgarantien", in: Handbuch der Grundrechte in Deutschland und Europa, Vol. II, Heidelberg: C. F. Müller, 2006, p. 921 e ss. Não se deve esquecer que a concepção e primeiro desenvolvimento das garantias institucionais se deve a proeminentes (embora controversos) juristas alemães da época da República de Weimar, com destaque para C. Schmitt e M. Wolff.

[6] Cf. a advertência de G. Manssen, Staatsrecht I, p. 13.

[7] Cf. a posição de A. Bleckmann, Die Grundrechte, p. 298 e ss., arrimado na doutrina de C. Schmitt, posteriormente desenvolvida para admitir também garantias institucionais contidas em direitos de liberdade.

[8] Cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. 534. No direito brasileiro, v., por todos, pelo seu pioneirismo também nessa matéria, P. Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. 499-500.

[9] Cf. por todos, Pieroth-Schlink, Grundrechte, p. 22, que se vale do exemplo do direito de propriedade, que, além de proteger a propriedade como tal, consagra o direito de adquirir, fruir e transmitir a propriedade.

[10] Em 08/5/2020, Tema 1087, por unanimidade, o STF reconheceu existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada: "Possibilidade de Tribunal de 2º grau, diante da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, determinar a realização de novo júri em julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos" — ARE 1.225.185, rel. ministro Gilmar Mendes

[11] Artigo 492, inciso I, letra "e", do Código de Processo Penal, cujos §§ 3º a 6º estabelecem a regra geral de que a apelação nesta hipótese não terá efeito suspensivo, com algumas exceções.

[12] Por exemplo, AgRg no RHC 130.301/MG, rel. ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. 14/9/2021, DJE 20/9/2021.

[13] HC 174759, relator(a): CELSO DE MELLO, 2ª Turma, julgado em 10/10/2020.

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