Retrospectiva 2021

O STF e a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato continuado

Autor

  • Marcos Meira

    é advogado procurador de Estado e presidente da Comissão Especial de Direito de Infraestrutura do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

31 de dezembro de 2021, 10h01

Tramitam no Supremo Tribunal Federal dois recursos extraordinários com repercussão geral, que tratam dos efeitos da declaração de (in)constitucionalidade sobre a coisa julgada que se forma em relações tributárias de trato sucessivo.

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No Tema 881 (RE 949.297/CE), o STF examinará os efeitos que as decisões tomadas em controle concentrado de constitucionalidade produzem sobre a coisa julgada que regula relação tributária de natureza continuativa; já no Tema 885 (RE 955.227/BA), serão discutidos os efeitos das decisões do Supremo em controle difuso de constitucionalidade.

Esses dois recursos são relevantíssimos à comunidade jurídica, que aguarda há anos uma definição sobre como a sentença definitiva que reconhece a inconstitucionalidade da lei tributária é impactada pela decisão do Supremo que declara a sua constitucionalidade.

Os temas 881 e 885 estavam pautados para a sessão plenária do Supremo do dia 15 deste mês, mas foram redesignados para a sessão do dia 11 de maio de 2022. Serão mais cinco longos meses de indefinição e insegurança nessa relação conturbada entre Fisco e contribuintes.

Cabem aqui alguns apontamentos antes que essa relevante questão jurídica seja definitivamente solucionada.

A segurança jurídica é um dos elementos fundamentais ao Estado democrático de Direito, pois confere estabilidade às relações jurídicas definitivas, sendo a coisa julgada parte integrante do referido princípio.

Não se pode acoimar de inconstitucional decisão de magistrado, legalmente investido de jurisdição, que decide o caso concreto com base em norma jurídica, contra qual não existia nenhuma pecha de inconstitucionalidade à data da sentença. A definitividade da decisão judicial não pode depender de uma futura e incerta alegação de (in)constitucionalidade da norma aplicada ao caso concreto, sob pena de gerar insegurança jurídica inaceitável.

A declaração de (in)constitucionalidade de lei, proferida pelo Supremo, em controle difuso ou concentrado, não tem o condão de desconstituir automaticamente a decisão transitada em julgado. O motivo da prática de um ato não se confunde com o ato em si.

É possível, porém, com base na decisão do Supremo que reconhece e declara a (in)constitucionalidade de uma lei, desconstituir a sentença transitada em julgado que tenha dado (ou negado) aplicação à referida lei, o que deve ser feito por meio da ação rescisória. Realmente, a decisão de (in)constitucionalidade, na medida em que esclarece o ordenamento jurídico, embora não tenha o condão de desfazer a coisa julgada automaticamente, serve como fundamento para a propositura da ação rescisória, remédio adequado para o desfazimento da coisa julgada.

Em sede de repercussão geral, no julgamento do RE nº 730.462, o STF adotou essa orientação ao concluir que:

"A decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do art. 485 do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (art. 495)".

Essa conclusão é simples de ser aplicada quando se está diante de uma relação jurídica instantânea, que é aquela que se esgota em um único momento.

Com muita frequência, todavia, a sentença disciplina relações jurídicas permanentes ou sucessivas, como ocorre, por exemplo, nas que regulam relações tributárias, em sua grande maioria.

Nesses casos, nem mesmo a autoridade da coisa julgada é capaz de imunizar a sentença contra fatos novos e alterações legislativas, que impõem, ou podem impor, mutações significativas no perfil da relação jurisdicionada.

Os efeitos da coisa julgada tendem à infinitude. Caso nada de extraordinário aconteça, há uma tendência à manutenção de sua estabilidade. Todavia, fatos novos ou uma nova lei, a depender da natureza e do alcance da alteração, modificam a causa de pedir da ação originária, razão pela qual, em certas circunstâncias, podem afetar a coisa julgada, pondo termo a seus desdobramentos temporais.

Transitada em julgado, a sentença tem força definitiva para reger não só a relação jurídica instantânea, descrita no dispositivo, mas também os desdobramentos futuros da relação jurídica permanente e as reiterações futuras da relação jurídica sucessiva.

Essa eficácia vinculativa perdura, todavia, enquanto a relação jurídica permanente ou as relações jurídicas sucessivas se mantiverem fiéis aos mesmos fatos que embasaram a sentença e à mesma norma jurídica por ela aplicada. Deve observar, portanto, a cláusula rebus sic stantibus, ou seja, vale enquanto mantidas as condições iniciais.

Alterada qualquer das parcelas dessa equação (fato ou norma), cessam os efeitos da coisa julgada sobre relações jurídicas permanentes ou sucessivas que tenham por base os novos fatos ou o novo enquadramento jurídico. Sentenças dessa natureza, que retratam relações jurídicas continuativas (permanentes ou sucessivas), quando transitadas em julgado, vigoram até que lhes sobrevenham mudanças de fato ou de direito capazes de alterar a equação silogística que lhes deu fundamento.

A modificação das circunstâncias fáticas ou jurídicas enseja a possibilidade de nova demanda, que não se confunde com aquela acobertada pela coisa julgada anteriormente formada, e, nesse sentido, fala-se em limites temporais da coisa julgada por se poder divisar que, do ponto de vista prático, aquela res judicata anterior torna-se pragmaticamente inservível, justamente por não poder alcançar a nova relação, que é outra.

As novas circunstâncias de fato e de direito — por constituírem nova causa de pedir e, portanto, nova ação — põem fim à eficácia da coisa julgada, que permanece incólume, todavia, em relação a todos os desdobramentos da relação jurídica permanente e a todas as reiterações das relações jurídicas sucessivas até ali verificadas. Em outras palavras, se o desdobramento da relação jurídica permanente já se produziu, ou se a reiteração da relação jurídica sucessiva já ocorreu, sobre eles (desdobramento ou reiteração) incide a eficácia estabilizadora da coisa julgada, e, por isso, tais fenômenos operados não serão, nem poderão ser, atingidos pelas novas circunstâncias de fato e de direito.

A alteração do estado de fato ou de direito constitui o termo ad quem dos efeitos prospectivos da coisa julgada. Dúvida pode haver, ainda, em precisar se essa alteração produz efeitos imediatos e automáticos ou se depende de manifestação prévia do juízo.

O artigo 505 do CPC de 2015 confere à parte interessada a faculdade de provocar o juízo para pedir a revisão do que foi estatuído na sentença, sempre que houver modificação no estado de fato ou de direito em relações jurídicas continuativas. A regra tem como predecessora o artigo 471 do CPC de 1973, que possuía o mesmo conteúdo.

Há quem defenda não haver a necessidade de intervenção judicial obrigatória. Para os adeptos dessa corrente, a mudança do estado de fato ou de direito opera efeitos imediatos, pondo fim à eficácia prospectiva da coisa julgada, independentemente de provocação judicial.

Para outra corrente, é sempre necessária a intervenção judicial, seja por meio de ação rescisória, seja pela citada ação revisional.

Essa é uma — das muitas — questões que o Supremo será chamado a decidir no julgamento dos Temas 881 e 885 de repercussão geral.

Uma coisa parece certa: a declaração de (in)constitucionalidade não tem o efeito de retroagir sobre a coisa julgada, ou seja, não atinge os fatos já ocorridos sob o império da coisa julgada e da norma declarada inconstitucional. Embora não atinja a coisa julgada, a declaração de (in)constitucionalidade pode limitar a sua eficácia no tempo, fazendo cessar sua cogência e imperatividade. A dúvida é saber se, para os efeitos prospectivos da coisa julgada, a parte interessada precisará, ou não, ajuizar a ação rescisória ou a ação revisional.

A declaração de (in)constitucionalidade pode ser encarada como circunstância nova de natureza substancial, uma verdadeira alteração no estado de direito, já que a norma declarada inconstitucional é expurgada do mundo jurídico e, portanto, deixa de existir (ou, ao revés, a declaração de constitucionalidade afirma a validade da norma que a sentença deixou de aplicar).

Em 28 de maio de 2014, o Plenário do Supremo decidiu, nos autos do já citado RE nº 730.462/SP, Tema 733 da repercussão geral, que a decisão transitada em julgado que contraria decisão posterior do Supremo — a qual declara, em sede de controle concentrado, a inconstitucionalidade da norma —, encontra-se imunizada, não mais sendo possível sua rescisão, acaso transcorrido mais de dois anos do seu trânsito, hipótese em que se tornará incabível a ação rescisória.

A ementa desse recurso, todavia, excepcionou os efeitos futuros da sentença que regule relações jurídicas de trato continuado, deixando em aberta, nesse caso, a possibilidade de não se exigir a ação rescisória como instrumento necessário para inibir os efeitos prospectivos da sentença, que poderiam ser neutralizados automaticamente pela simples declaração de inconstitucionalidade da norma em que se baseou a sentença (ou de sua constitucionalidade, quando tenha sido ela declarada inconstitucional).

É justamente nesse espaço, excepcionado pelo citado precedente, que radicam os Temas 881 e 885, os quais cuidam dos efeitos das decisões do Supremo, em controle concentrado e em controle difuso de constitucionalidade, sobre a coisa julgada tributária continuativa.

Caso o Supremo venha a concluir que suas decisões impactam diretamente os efeitos prospectivos da coisa julgada tributária, sem a necessidade de ação rescisória ou de ação revisional, precisará definir quais das suas decisões são aptas a descontinuar a coisa julgada e a partir de que momento a sentença transitada em julgado deixa de produzir seus efeitos para o futuro.

O Parecer PGFN nº 492/2011 oferece alguns parâmetros interessantes para responder a essas indagações. Segundo esse ato normativo, vinculante para a administração fiscal, as decisões do Supremo aptas a descontinuar os efeitos prospectivos da coisa julgada em matéria tributária são: 1) as tomadas em controle concentrado de constitucionalidade; 2) as tomadas em controle difuso e ratificadas por resolução do Senado; 3) as tomadas em controle difuso, anteriormente a 3 de maio de 2007, desde que sejam plenárias e tenham sido ratificadas por precedentes posteriores; e 4) as tomadas em controle difuso, posteriores a 3 de maio de 2007, desde que submetidas ao regime do artigo 543-B do CPC/1973.

Nesse parecer, a Fazenda defende que o termo a quo para que o Fisco possa voltar a cobrar o tributo antes declarado inconstitucional é o trânsito em julgado da decisão ou a publicação da resolução do Senado. Ou seja, para a própria PGFN, a data do trânsito em julgado do acórdão do STF configura, como regra, o termo a quo para a descontinuação da coisa julgada tributária.

Assim, sob essa ótica, até que transite em julgado a decisão do Supremo, a coisa julgada opera todos os seus regulares efeitos e os atos por ela acobertados somente poderão ser desconstituídos por meio de ação rescisória.

Espera-se que essas e outras incertezas, que gravitam em torno dessa sensível questão jurídica, sejam dissipadas no julgamento definitivo dos Temas 881 e 885, pautados para a sessão plenária de 11 de maio de 2022. Até lá, a comunidade jurídica terá que conviver com mais essa inquietante indefinição na sempre conturbada relação entre Fisco e contribuintes.

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