Apartheid à americana

Contratos residenciais perpetuam segregação racial nos Estados Unidos

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31 de dezembro de 2021, 12h57

Há boas notícias e más notícias no combate ao racismo nos Estados Unidos. Entre as más, uma vem se destacando ultimamente: a segregação racial continua viva no mercado imobiliário do país, apesar de legalmente proibida.

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Muitos condomínios nos EUA têm regras racistas para ocupação de suas casas
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Não é disfarçada ou sutil. Está explícita em contratos residenciais, escrituras de compra e venda, convenções e estatutos de condomínio (de casas, sobretudo) e de associações de vizinhança — documentos (chamados em inglês de covenants) que reservam áreas das cidades para brancos caucasianos ou da raça ariana.

Em 1948, a Suprema Corte declarou que tais contratos, escrituras e convenções não são executáveis. Em 1953, o estado de Minnesota proibiu restrições raciais na compra ou ocupação de imóveis — medida seguida por outros estados. Em 1968, o Congresso baniu a segregação de minorias raciais na habitação por meio do Fair Housing Act.

Mesmo assim, tais documentos continuam em vigor — ou continuam nos "livros" (de registros públicos do mercado imobiliário), como dizem os americanos.

Mas, se a Justiça já desautorizou os dispositivos de segregação racial nos covenants, por que lutar para tirá-los dos "livros"? Uma pergunta feita e respondida no relatório "Mapping Prejudice", publicado no site da Universidade de Minnesota. Porque o mal já está feito e muito há de se fazer para o país se livrar das consequências de seu legado racista — consequências que persistem por décadas, responde o relatório.

Esses covenants criaram compartimentos em milhares de cidades dos EUA: áreas de brancos, caucasianos, áreas de negros e áreas de latinos e outros. Segundo o "Mapping Prejudice", as áreas de brancos recebem mais recursos, como ruas mais bem cuidadas, parques públicos e áreas verdes, melhores escolas (com professores mais bem pagos e currículos mais avançados).

Negros e latinos ficam, em muitos casos, circunscritos a áreas próximas a rodovias, estradas de ferro, aterros sanitários, bem como a centros de cidades e bairros decadentes.

A boa notícia é que mais e mais brancos, entre os quais advogados que lutam individualmente ou formam coalisões, estão tentando livrar o país desses resquícios de racismo — às vezes com a ajuda de vereadores, outros políticos e de moradores brancos desses condomínios residenciais.

Também é boa notícia o fato de que mais e mais brancos estão participando de manifestações do movimento Black Lives Matter. Lembre-se que em agosto de 2020 dois homens brancos foram assassinados e um terceiro foi gravemente ferido pelo jovem miliciano Kyle Rittenhouse quando protestavam contra a violência policial contra negros.

As vítimas constantes desse tipo de discriminação racial são negros ou "pessoas de sangue africano", como estipulam alguns contratos. Mas os dispositivos desses contratos residenciais também discriminam latinos, judeus, muçulmanos, chineses, japoneses, turcos, mouros, mongóis e seus descendentes.

Exemplos de covenants raciais
A Universidade de Minnesota e uma coalisão de meios de comunicação — as emissoras de rádio e TV National Public Radio (NPR), KPBS, St. Louis Public Radio, WBEZ e o inewsource (site de jornalismo investigativo sem fins lucrativos) — fizeram um exaustivo levantamento e concluíram que tais covenants raciais existem em praticamente todo o país. E deram alguns exemplos de suas cláusulas:

— Convenção da Associação de Moradores de Prairie Village, nos subúrbios de Kansas City, com 1,7 mil casas: "Nenhuma parte dessa terra pode ser transmitida, usada, possuída, ocupada por negros, como proprietários ou inquilinos" (os textos usam a palavra negroes, que é uma forma depreciativa de se referir à população negra nos EUA).

— Texto padrão de covenants em Mineápolis: "Tais propriedades não podem, a qualquer tempo, ser vendidas, transferidas, arrendadas, sublocadas a qualquer pessoa ou pessoas que não sejam puro-sangue da raça caucasiana ou branca".

— Contrato em The Greater Vile, St. Louis: "Nenhuma parte desta propriedade, nem qualquer porção dela, pode ser, por um período de 50 anos, ocupada por qualquer pessoa que não seja da raça caucasiana, ficando proibido o uso e ocupação de tal propriedade por negros ou pessoas da raça mongol".

— Escritura em St. Louis Hills: "Nenhum lote constante dessa escritura ou parte dela pode ser vendido, revendido, transmitido, doado, arrendado, alugado, ocupado ou usado de qualquer forma por qualquer pessoa que não seja da raça caucasiana; nenhuma pessoa excluída pode residir no prédio principal ou prédio subsidiário de qualquer dos lotes". A escritura abre exceção para empregados domésticos e outros serviçais, que podem ocupar espaços na residência de brancos.

— Escritura em El Cerrito, San Diego: "Nenhuma das propriedades ou parte delas pode, jamais, ser arrendada, vendida, transferida, herdada, adquirida por qualquer pessoa que não seja da raça caucasiana". A escritura também abre exceção para criados ou empregados domésticos que, efetivamente, prestam serviços na casa.

— Condado de Hennepin e estado de Minnesota: "Sob pena de anulação de contrato, nenhum proprietário, seus herdeiros, executores, administradores ou cessionários podem vender, alugar ou permitir a ocupação das residências por pessoas das raças africana e semita. Nenhuma pessoa de qualquer raça que não seja a ariana pode ocupar qualquer prédio ou lote". Abre exceção para empregados domésticos, que podem residir nas casas.

— Anúncio de vendas de casas novas em Lake of the Isles, em Minnesota: os compradores "concordam que as residências não podem, a qualquer tempo, ser transmitidas, financiadas ou arrendadas para qualquer pessoa ou pessoas de sangue ou descendência chinesa, japonesa, moura, turca, mongol, semita, negra ou africana".

— Contrato de restrições imobiliárias em St. Louis: "Os proprietários de casa não podem vender, transmitir, alugar a casa a 'negro' ou 'negroes' (…) Nas ruas não podem existir 'matadouros, lojas de coisas usadas, nem podem ser ocupadas por catadores de materiais descartados'".

— Convenção da Associação de Moradores de Mundelein, em Tucson, Arizona: "O morador não pode vender, transferir ou alugar sua propriedade a pessoas das raças africana ou negra, japonesa, chinesa, judaica ou hebraica ou a seus descendentes".

Reportagem da NPR cita a vereadora Inga Selders, de Kansas City, a advogada Maria Cisneros, a moradora de Mundelein Nicole Sullivan e seu marido como exemplos de pessoas brancas que dedicam um tempo extraordinário à árdua luta para excluir essas cláusulas de covenants — sem sucesso. O máximo que conseguem é anexar um adendo ao documento, que declara tais cláusulas inválidas.

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