Controvérsias Jurídicas

Teoria da vida útil e a garantia contratual

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

30 de dezembro de 2021, 8h00

Em decisão proferida recentemente pelo ministro Vilas Bôas Cueva, o STJ firmou posicionamento paradigmático quanto ao prazo dado ao consumidor para reclamar de vício oculto presente em produto por ele adquirido. O REsp debruçou-se quanto à verificação da responsabilidade da empresa fornecedora de produtos eletrodomésticos sobre vícios ocultos que somente ficaram perceptíveis ao consumidor cerca de quatro anos após a compra, e três anos após o término da garantia contratual.

Preliminarmente, há de se reforçar a natureza dos prazos estabelecidos no artigo 26, CDC. O prazo decadencial para a reclamação de defeitos no produto não pode se confundir com o prazo de garantia de qualidade do bem, que pode ser convencional, acrescido do prazo legal.

O artigo 26 do CDC não traz explicitamente um prazo de garantia legal para o fornecedor responder pelos vícios do produto. Unicamente estabelece que, havendo vício de imediata constatação, tornando o defeito aparente, poderá o consumidor requerer a reparação do prejuízo, de forma que, estando no prazo legal, ainda será necessária a averiguação da responsabilidade por parte do fornecedor.

Não se propõe a responsabilização eterna do fornecedor pelos vícios dos produtos por ele disponibilizados no mercado de consumo. Contudo, a dinâmica mercadológica dos dias atuais não pode limitar sua responsabilização unicamente pelos prazos da garantia contratual e legal. É nesse contexto que o STJ decidiu que a responsabilidade do fornecedor deverá ser medida pela natureza do vício no produto, mesmo que já esgotado o prazo de garantia.

Quando o vício é aparente, de fácil constatação, o consumidor terá o prazo de 90 dias para exigir a reparação, em se tratando de bens de consumo duráveis, iniciando-se a contagem do prazo a partir da efetiva entrega do produto, descontando o prazo da garantia contratual. Em se tratando de bens de consumo não duráveis, para vícios de imediata identificação, o prazo cai para 30 dias. Todavia, no que tange aos vícios disciplinados no artigo 26, §3º, CDC, adotou a legislação a teoria da vida útil do bem, em detrimento ao critério exclusivo da garantia, possibilitando a responsabilização do fornecedor pelo vício contido no bem por longo espaço de tempo, mesmo que expirada a garantia contratual e legal. Nesse sentido, explanou o ministro Vilas Bôas Cueva:

"A dificuldade, no entanto, apresenta-se quando o defeito aparece após o prazo da garantia contratual, hipótese retratada nos autos. Nessas situações, em virtude da ausência de um prazo legal preestabelecido para limitar a responsabilidade do fornecedor, consagrou-se, a partir de valiosos provimentos doutrinários, o entendimento de que o fornecedor não é eternamente responsável pelos vícios observados nos produtos colocados em circulação, mas a sua responsabilidade deve ser ponderada, de forma casuística, pelo magistrado, a partir do conceito de vida útil do produto" [1].

O mesmo entendimento é compartilhado pela ministra Maria Isabel Gallotti:

"Em se tratando de vício oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria fabricação, e relativo a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, o prazo para reclamar pela reparação se inicia no momento em que ficar evidenciado o defeito, não obstante tenha sido ocorrido depois de expirado o prazo contratual de garantia, devendo sempre ter-se em vista o critério de vida útil do bem, que se pretende seja ele durável" [2].

Esse também já era o posicionamento consagrado pelo ministro Luis Felipe Salomão:

"Porém, em se tratando de vício oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria fabricação, o prazo para reclamar a reparação se inicia no momento em que ficar evidenciado o defeito, mesmo depois de expirado o prazo contratual de garantia, devendo ter-se sempre em vista o critério da vida útil do bem, que se pretende 'durável'. A doutrina consumerista — sem desconsiderar a existência de entendimento contrário — tem entendimento que o CDC, no § 3º do artigo 26, no que concerne à disciplina do vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, e não o critério da garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois de expirada a garantia contratual. Assim, independentemente do prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um defeito de adequação (artigo 18 do CDC)" [3].

Doutrinariamente, citamos o entendimento de Rizzatto Nunes:

"Claro que sempre haverá, como vimos, a hipótese do vício oculto, que gera início de prazo para reclamar apenas quando ocorre, o que pode se dar após o término do prazo da garantia contratual" [4].

Comente-se que o vício apresentado no produto, conforme expresso nos trechos dos julgados supra, não é algo que decorre da utilização ordinária do bem, mas, sim, de uma anormalidade intrínseca a este, que somente será revelada com sua utilização a longo prazo. Nasce daí, portanto, o direito do consumidor de ser reparado pelo prejuízo, dentro do prazo legal de 90 dias, mesmo que expirada a garantia contratual, pois, se o vício era até então desconhecido, jamais se iniciou a contagem do prazo decadencial.

O prazo conferido para o consumidor reclamar seus direitos não é perpétuo. Em razão aos princípios da boa-fé objetiva, razoabilidade e vedação do enriquecimento ilícito, para que a reclamação seja legítima, faz-se necessária a verificação da vida útil do produto acometido pelo vício. Nesse sentido, a análise do caso concreto será referencial para verificação do decurso do prazo decadencial. Apenas a título argumentativo, citamos o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que considerou que a vida útil de um aparelho de televisão gira em torno de dez a 20 anos [5].

Diante de todos os argumentos expostos e em consonância com o entendimento jurisprudencial e doutrinário mais avançado acerca do tema, entendemos que a doção do critério da vida útil esperada do produto melhor se coaduna teleologicamente com os princípios trazidos pelo CDC, uma vez que tem o consumidor expectativa legítima de utilizar o bem que adquiriu por um prazo razoável de tempo, não sendo surpreendido por defasagem no desempenho deste por atualizações programadas ou por avarias já projetadas pelo fabricante, com a mera utilização normal do produto.

Perfeitamente plausível, nesse contexto, o afastamento da regra carreada pelo artigo 445, §1º, CC: "Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis", por tratar-se de norma mais favorável ao fornecedor, sendo que o princípio a ser sempre obedecido é o da aplicação da norma ou interpretação mais benéfica ao consumidor, em razão de sua condição de vulnerabilidade na relação de consumo.


[1] STJ, REsp nº 1.787.287-SP, rel. ministro Ricardo Vilas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. 14/12/2021.

[2] STJ, REsp nº 547.794-PR, rel. ministra Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, j. 15/02/2011.

[3] STJ, REsp nº 984.106-SC, rel. ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 04/10/2012.

[4] NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor, 13ª edição. Ed. SaraivaJur, 2019, p. 447.

[5] TJ-RS — Recurso Cível 71002661379, Caxias do Sul — 3ª Turma Recursal Cível, rel. desembargador Ricardo Torres Hermann — j. 09.11.2010 — DJERS 19/11/2010.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!