Opinião

(Des)informação e ódio: breves notas sobre o fenômeno da 'censura reversa'

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28 de dezembro de 2021, 12h11

Uma das questões mais desafiadoras quando se analisa o crescente fenômeno das fake news e dos ataques odiosos nas redes sociais é a busca da justificativa jurídica para explicar como o crescente uso de táticas de desinformação tem contribuído para distorções no debate da esfera pública, em prejuízo à democracia. Parafraseando John Stuart Mill [1], se a única maneira de se obter progresso é conhecendo as mais variadas opiniões sobre diversos assuntos, banir a informação e a opinião  ainda que falsa ou odiosa  não seria um óbice ao progresso social?

O que Mill não poderia antecipar no século 19, no entanto, é como o poder público poderia inundar a esfera pública com teorias conspiratórias e ataque à reputação dos críticos, como tentativa de interdição do debate público. Se, em uma época com escassez de informação, o objeto da censura era controlar a divulgação de fatos desabonadores ao governo, por meio da cassação do direito à palavra de opositores, atualmente a estratégia é outra: coordenar redes de pessoas (ou robôs) para impulsionar conteúdos falaciosos produzidos pelo próprio governo, na internet, com objetivo final de transformar a incerteza "na única verdade objetiva" [2].

Tim Wu denomina esse fenômeno como "censura reversa" [3]. Enquanto tradicionalmente a censura é atrelada à redução possibilidades de discurso, na censura reversa o foco é na seleção do discurso que alcança o ouvinte. É o Estado manipulando a arquitetura algorítmica das redes sociais para reduzir o alcance do discurso que lhe é desfavorável. Quando politicamente motivada, pode envolver a disseminação de desinformação ou ataques coordenados à reputação de quem se apresenta como um contraponto ao governo da vez, com o propósito de distrair ou desacreditar opiniões e notícias que possam ser prejudiciais aos interesses daqueles que estão no poder.

A prática tem encontrado cada vez mais força em países com pouca tradição democrática. O governo chinês, por exemplo, produz, em média, cerca de 448 milhões de posts em diversas redes sociais ao longo do ano. Esse conteúdo é produzido de duas formas distintas: mediante contratação de um exército de pessoas ou uso de robôs (bots), que alimentam redes artificiais de popularidade, contribuindo para o impulsionamento de informações favoráveis ao governo [4]. Agências estatais e empresas russas, por sua vez, também têm sido acusadas de promover a prática para desestabilizar eleições e desacreditar o uso de vacinas ao redor do mundo.

O uso desse expediente por países, que tem à sua disposição ferramentas mais tradicionais de controle do discurso, evidencia a eficiência dessa nova espécie de censura na era das redes sociais.

O baixo custo para inserção de informações na internet torna escassa a atenção direcionada ao imenso fluxo de informações com qual nos confrontamos diariamente, portanto, se o intuito do Estado é calar vozes dissonantes é interessante interditar o debate na esfera pública com ataques a estas pessoas (trolling) ou com a divulgação de informações fraudulentas que coloquem em xeque a veracidade de uma crítica (disinformation) do que propriamente calá-las. Alcança-se resultado similar a instrumentos de censura prévia com um custo jurídico e político menor, visto que o caráter censor da prática não é evidente.

Com efeito, mesmo para um governo pouco democrático é, por vezes, interessante censurar por meio da produção de notícias falsas e ataques a opositores para se produzir um efeito similar aos mecanismos tradicionais de controle de conteúdo sem que lhe seja imputado a acusação de violação aos direitos humanos perante a comunidade política local e internacional.

Campanhas coordenadas de desinformação capitaneadas por agentes políticos devem ser encaradas, portanto, como uma nova forma de censura. Se em uma sociedade carente de informações, o controle do discurso se mostrava como a principal ferramenta para cerceamento do debate público, na era das redes sociais  onde a atenção é o produto em escassez  a amplificação do alcance de conteúdos nocivos passa a ser o principal risco ao exercício da liberdade de expressão e à democracia como um todo.

A despeito da maior tradição democrática brasileira  se comparada a China e Rússia —, é inequívoco que a "censura reversa" encontrou lugar fértil no modus operandi do atual presidente. Recentemente, o presidente não só foi reconhecido pela Polícia Federal como responsável por sua "relevante e direta" atuação na produção de desinformação sobre o sistema eleitoral como também deflagrou uma campanha de ameaças a funcionários do corpo técnico da Anvisa que liberaram a vacinação contra Covid-19 para crianças a partir de cinco anos, contrariando seu desejo pessoal.

Compreender a censura reversa é um passo no avanço por medidas de responsabilização jurídica em face dos agentes públicos que se valem de seu prestígio para coordenar ataques odiosos contra terceiros ou para produzir desinformação.

A identificação dessas medidas é um tema para outro artigo, o que não impede, entretanto, que se faça um alerta em resposta à provocação que inicia este texto. Mais (des)informação nem sempre significa maior liberdade de expressão. Ao contrário, a manipulação da arquitetura algorítmica das redes para viralização de teorias conspiratórias, mentiras e discursos de ódios configuram o novo aparato de censura de chefes de Estado que fazem do diversionismo e da intolerância seu principal projeto de governo.

 


[1] MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. L&MPocket. 2015. p.38.

[2] BALDI, Vania. A construção viral da realidade: ciberpopulismos e polarização dos públicos em rede. Observatorio (OBS*) Special Issue, (2018), 004-020.

[3] Tim Wu, Is the First Amendment Obsolete? MICHIGAN LAW REVIEW, VOL. 117, P. 547, 2018; COLUMBIA PUBLIC LAW RESEARCH PAPER NO. 14-573 (2018).

[4] KING, Gary, PAN, Jennifer, & ROBERTS, Margaret E, How the Chinese Government Fabricates Social Media Posts for Strategic Distraction, Not Engaged Argument, 111 Am. Pol. Sci. Rev. 484 (2017).

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