Opinião

Impactos da aprovação da lei que regulamenta o Difal

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28 de dezembro de 2021, 7h14

Às vésperas do início do recesso legislativo, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei Complementar nº 32/2021, que prevê a regulamentação da cobrança do diferencial de alíquotas do ICMS (Difal) incidente sobre operações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte.

No texto aprovado constam dispositivos necessários à cobrança e ao pagamento do tributo, como o fato gerador, o contribuinte responsável pelo recolhimento e a base de cálculo do ICMS. Assim, nas situações em que o consumidor final não for contribuinte do ICMS, o pagamento do Difal caberá ao ente federativo em que ocorrer a entrada física da mercadoria/bem ou o fim da prestação do serviço, mesmo que tenham passado pelos territórios de outros estados até o destino.

O artigo 3º do projeto expressamente condiciona a produção dos efeitos da futura lei ao decurso do prazo de 90 dias contados da data da sua publicação no Diário Oficial, em atenção ao disposto na alínea "c" do inciso III do artigo 150 da Constituição Federal [1]. Agora, o presidente da República tem até o dia 11 de janeiro de 2022 para se manifestar pelo veto parcial ou total ou pela sanção do projeto. O decurso do prazo em branco importará em sanção tácita da lei.

Em um cenário ideal para os estados, caso seja sancionada até o final deste ano, a cobrança do Difal já poderia ser realizada a partir do mês de abril de 2022 sob a égide da nova lei. Contudo, ao contrário do que parece, esse cenário não colocará fim à discussão jurídica em torno da cobrança do Difal sobre operações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte.

A proposta da lei foi justificada pela necessidade de regulamentação formal das alterações introduzidas no texto da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 87, de 16 de abril de 2015 (conhecida como Emenda do Comércio Eletrônico). A emenda estabeleceu que o ICMS incidente nas operações com bens e serviços destinados a não contribuintes do imposto, antes devido totalmente ao estado de origem, passasse a ser dividido, cabendo ao estado de origem o ICMS calculado com base na alíquota interestadual e ao estado de destino, o diferencial entre a alíquota interestadual e sua alíquota interna.

Com a promulgação da nova emenda, rapidamente os estados e o Distrito Federal aprovaram o Convênio ICMS 93/2015, autorizando a cobrança do Difal a não contribuintes e dispondo sobre obrigação tributária, contribuintes, bases de cálculo/alíquotas e créditos de ICMS, assuntos que estão dentro da esfera de regulamentação própria da lei complementar.

Levada ao STF por meio da ADI 5469/DF e do RE 1287019/DF (tema 1093 da repercussão geral), a discussão sobre a constitucionalidade do Convênio ICMS 93/2015 e da cobrança do Difal a consumidor final, não contribuinte, foi resolvida em fevereiro desse ano, quando os ministros, por maioria, declararam a inconstitucionalidade: 1) formal do convênio, por ofensa à reserva de lei complementar [2]; e 2) da cobrança do Difal, sem a edição de lei complementar que veicule as normas gerais introduzidas pela EC 87/2015.

No entanto, os ministros do STF modularam os efeitos da decisão, autorizando a produção dos efeitos da decisão somente a partir de 2022, considerando que haveria tempo necessário para a aprovação da referida lei pelo Congresso Nacional.

Os ministros excluíram da regra da modulação somente aqueles contribuintes que já possuíam ações judiciais em curso ao tempo do julgamento (e os optantes do Simples Nacional, que já não recolhem o Difal desde a data da concessão da medida cautelar nos autos da ADI nº 5.464/DF em 2017). Na prática, mesmo após o reconhecimento da inconstitucionalidade do Convênio ICMS 93/2015, a cobrança do Difal a não contribuintes tem sido mantida para aqueles contribuintes que não ingressaram no Judiciário contra a cobrança.

A modulação foi aprovada sob o pretexto da necessidade de fazer valer o objetivo da EC nº 87/2015, evitando que a declaração de inconstitucionalidade do Convênio ICMS 93/2015 pudesse colocar os entes federativos em situação fiscal pior do que aquela na qual se encontravam antes da mudança constitucional.

Ocorre que, em atenção ao princípio da anterioridade nonagesimal, a nova lei complementar, que poderá ser sancionada pelo presidente da República ainda neste mês, produzirá efeitos somente após 90 dias da sua publicação, o que acabará gerando uma lacuna na regulamentação da cobrança do Difal dentro desse período da vacatio legis a partir de janeiro de 2022.

A lacuna pode se estender por mais tempo caso a lei não seja sancionada até o final deste mês, pois, além da anterioridade nonagesimal, também deve ser observada a anterioridade anual no caso da cobrança do ICMS, o que poderia autorizar legitimidade da cobrança apenas em 2023. O princípio da anterioridade, em ambos os casos, é consagrado pelo STF como cláusula pétrea, e, em última análise, se justifica na garantia da segurança jurídica, evitando que o patrimônio do contribuinte seja prejudicado pela ingerência estatal.

Com isso, vislumbram-se dois cenários possíveis ao contribuinte: 1) caso a lei seja sancionada ainda neste ano, há possibilidade de buscar judicialmente o direito de não recolher o Difal a não contribuintes no período dos 90 dias da vacatio legis; 2) caso a lei seja sancionada em 2022 (expressa ou tacitamente), há possibilidade de buscar judicialmente o direito de não recolher o Difal a não contribuintes durante todo o exercício fiscal de 2022.

Não há dúvidas de referida (futura) lei está submetida à anterioridade, pois o voto do ministro Dias Toffoli no acórdão da ADI 5469/DF, no qual o relator afirma que a "a EC nº 87/2015 criou uma nova relação jurídico-tributária entre o remetente do bem ou serviço (contribuinte) e o estado de destino nas operações com bens e serviços destinados a não contribuintes do ICMS. Houve, portanto, substancial alteração na sujeição ativa da obrigação tributária".

Muito embora a lei complementar ainda não tenha sido publicada, existem situações de estados que já editaram as suas próprias leis, após a decisão do STF e antes da publicação da lei complementar. É o caso do estado de São Paulo, por exemplo, que publicou a Lei nº 17.470, de 13/12/2021, dispondo sobre a cobrança do Difal a não contribuintes no estado. Com o cumprimento do período da noventena, a nova lei entrará em vigor já em março de 2022 para os contribuintes paulistas, antes mesmo do início da vigência da lei complementar federal. Entretanto, o próprio STF, em situação similar, já definiu que a lei estadual só é válida após o início da vigência da lei complementar [3].

Portanto, embora o grande tempo hábil dado ao Legislativo para solucionar a discussão, envolvendo o Difal, o que se vê é que a aprovação do PL nº 32/2021, ao apagar das luzes deste ano, gerará mais motivos para a judicialização, com base na insegurança jurídica. Quanto aos estados, deve-se evitar o afã arrecadatório e aguardar a publicação de suas próprias leis, após a publicação da lei federal, observando ainda o princípio da anterioridade.


[1] "Artigo 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios:
(…)

III – cobrar tributos:
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b".

[2] "Artigo 146 -Cabe à lei complementar:
II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários".

[3] Tema 1.094 – RE 1.221.330/SP

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