Contas à Vista

Ações e omissões normativas contribuíram para o caos fiscal de 2021

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28 de dezembro de 2021, 8h00

2021 caminha para o fim. Em breve será chegada a hora de apurar os resultados gerais do exercício por meio do balanço geral anual em todos os entes da federação, nos moldes do artigo 101 da Lei 4.320/1964 [1].

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O foco do balanço anual aqui pretendido, contudo, vai além dos fenômenos e variações orçamentárias, financeiras e patrimoniais. Interessa-nos, em particular, registrar as ações e omissões normativas que contribuíram — direta ou indiretamente — para o caos fiscal em que nos encontramos atualmente.

A confusão das regras fiscais brasileiras se assemelha à forma como a Física se apropria da noção de caos: "sistema sem estabilidade, dinâmico, que se altera no tempo a cada pequena alteração das suas condições iniciais" [2].

Desordem, desorganização, abismo e bagunça são outros sentidos associados ao caos e também eles podem ser estendidos ao arcabouço normativo que rege as nossas finanças públicas. Isso porque tal arcabouço é estruturalmente incapaz de oferecer tanto estabilização de expectativas, quanto equidade fiscal.

Vale lembrar que a lei orçamentária da União do presente exercício só foi editada praticamente no final do primeiro quadrimestre (Lei 14.144, de 22 de abril de 2021), quando idealmente deveria já estar a produzir seus efeitos desde 1º de janeiro. O atraso na LOA/2021 só não foi maior que o da lei de diretrizes orçamentárias, a qual sequer foi apreciada pela Comissão Mista de Orçamento e teve de ser remetida para votação diretamente no plenário do Congresso. Cabe destacar que a Lei 14.116 (LDO/2021) foi promulgada no limite do prazo hábil para reger a execução provisória do projeto de lei orçamentária, ou seja, de 31 de dezembro de 2020, quando o esperado seria que ela tivesse sido votada até o final do primeiro semestre do ano passado.

Burla ao devido processo legislativo orçamentário, afronta ao planejamento setorial das políticas públicas e trato balcanizado de recursos públicos têm sido cada vez mais recorrentes. A confusão não é neutra, contudo. O caos é deliberadamente causado pelos que se aproveitam dos atrasos na tramitação de soluções universais, das capturas na relação entre Legislativo e Executivo, das opacidades na aplicação dos recursos públicos, do esvaziamento dos instrumentos republicanos de pactuação federativa, bem como dos compadrios na relação do Estado com o mercado e com o terceiro setor.

Se, em 2020, tivemos a excepcional e limitada vigência do Orçamento de Guerra; em 2021 experienciamos o Orçamento d'A Guerra Eleitoral iminente. Todo o debate fiscal deste exercício foi marcado pela expectativa de impactar as eleições de 2022, algo que o teto dado pela Emenda 95/2016 se mostrou francamente inepto para regular e conter. Tanto é assim que o teto foi alterado três vezes somente em 2021, do que dão prova as Emendas 109, 113 e 114, respectivamente de 15 de março, 8 de dezembro e 16 de dezembro deste ano.

Em matéria orçamentário-financeira, a Constituição de 1988 tem sido tratada praticamente como uma espécie de LDO com quórum qualificado, porquanto redesenhada incessantemente. Tal fúria reformista esconde, na verdade, uma falsa promessa de cumprimento das regras fiscais recém alteradas, já que foram solenemente ignoradas (descumpridas), por exemplo, a previsão do subteto de R$ 44 bilhões em créditos extraordinários para o auxílio emergencial, a que se refere o artigo 3º, §1º da EC 109/2021, assim como o plano de redução à metade das renúncias fiscais prometido pelo artigo 4º, também da Emenda Emergencial.

Em meio aos engodos normativos, retrocedemos ao padrão predatório dos Anões do Orçamento, a despeito de quatro alterações constitucionais terem tentado regular as emendas parlamentares de modo minimamente republicano, impessoal, isonômico e transparente. As Emendas 86/2015, 100/2019, 102/2019 e 105/2019 buscaram fixar parâmetros para as emendas parlamentares individuais e de bancada. Todavia, em 2021, tomamos ciência do quanto as emendas de relator, marcadas pelo identificador de resultado primário 9 (RP9), pragmaticamente puseram a perder o sentido teleológico dessas regras anteriores.

No balanço de omissões normativas, o maior déficit histórico reside, porém, no descumprimento das recomendações trazidas pelo relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Orçamento (disponível aqui) de 1994. Repetimos — sob regime de autoengano circular permanente — os mesmos esquemas de desvio de recursos públicos, enriquecimento ilícito e direcionamento do orçamento para o curto prazo eleitoral dos mandatários políticos de ocasião. Não me canso de insistir na denúncia do Orçamento Secreto como uma renovação do que vivemos há quase três décadas. Basta ver o seguinte rol exemplificativo de recomendações solenemente ignoradas da CPMI do Orçamento:

1. Definição de percentual mínimo de aplicação de recursos em continuidade de obras:

"É necessário que se estabeleça um limite mínimo de aplicação de recursos de investimentos para continuidade de obras em curso. Consideramos que apenas 2/3 deles devam ser para tal fim apropriados, para que obras em andamento não tenham sua finalização postergada por falta de verbas, ao se conferir prioridade a novas realizações e passem a cumprir sua função em razoável espaço de tempo" (p. V.III-13-14).

2. Limitação do poder de emendar a lei orçamentária — proposta de restrição de emendas a "unicamente emendas de autoria de comissão, bancada e partido político, fixados os seus valores através de critérios de proporcionalidade" (p. V.III-14);

3. Fortalecimento dos Sistemas de Controle Interno e Externo;

4. Extinção das subvenções sociais;

5. Limitação das transferências federais voluntárias:

"Nas últimas décadas, a União assumiu, paulatinamente, maior controle sobre os Estados, enfraquecendo-os mais e mais, mercê de crescente centralização, chegando-se quase a implantar, na prática, situação semelhante à verificada no Estado Novo. A fim de manter fidelidade política que lhes garantisse maioria parlamentar, os governos de feição castrense restituíam, mediante as “transferências voluntárias”, parcela dos tributos arrecadados aos Estados, realizando obras ou subvencionando as chamadas ações sociais. Tal sistema facilitou a ação de poderosos agentes econômicos junto àqueles que decidiam, entre quatro paredes, a distribuição dos recursos. […] Exceções devem ser unicamente as transferências destinadas a casos de calamidade pública, execução de planos nacionais ou regionais e em caso de guerra externa ou comoção intestina" (p. V.III-17).

6. Mudança na legislação referente aos créditos suplementares — vedação no 1º trimestre e limite máximo de 30% da receita prevista;

7. Abolição do sigilo fiscal e bancário para mandatários políticos — no período entre a diplomação e o término do respectivo mandato;

8. [Limitação do risco de abuso da] Imunidade Parlamentar.

O elenco de sugestões que o próprio Congresso apresentou em 1994 para aprimorar o ciclo orçamentário brasileiro caiu no esquecimento e, como não aprendemos com os erros do passado, somos condenados a repeti-los. Anões do orçamento agora se tornaram gigantes, os quais operam como agenciadores de um balcão de negócios cada vez maior. Tal manejo fragmentado do orçamento no Brasil parece almejar uma ampliação parlamentarista do poder real, mas é altamente propenso à iniquidade e à baixa qualidade do gasto público. Chegamos, aliás, à expressiva cifra de mais da metade dos investimentos da União determinados pulverizadamente pelos parlamentares, sem maior clareza acerca dos fins se espera alcançar e mesmo diante de um estoque considerável de obras paralisadas/ atrasadas.

O exercício de 2021, de certa forma, acirrou conflitos antigos e permitiu a culminância de toda sorte de extorsões, dada a nossa inépcia em ordenar legitimamente prioridades orçamentárias conforme o planejamento setorial das políticas públicas. A Constituição de 1988 foi aviltada e o teto desmoralizado.

O único mérito a computar neste balanço anual foi o desvendamento inexorável da constatação de que nenhum limite protocolar como o teto consegue, por si só, conter a força bruta da maré de curto prazo eleitoral.

Neste ano que chega ao seu ocaso, os créditos extraordinários para atender a despesas previsíveis somaram-se às emendas balcanizadas, ambos como cheques em branco desatrelados do dever de planejamento. Enquanto as emendas parlamentares (sobretudo as transferências especiais e as emendas de relator) repetem — em larga escala — o modo de operação dos Anões do Orçamento; os créditos extraordinários abertos no segundo ano de enfrentamento à pandemia da Covid-19 repetem a lógica inconstitucional de burla que levou o STF, em 2008, ao julgamento paradigmático da ADI 4048.

O balanço de 2021 é, nesse sentido, um resgate de décadas. Não é possível fazer a retrospectiva apenas dos últimos doze meses, porque nossos impasses se repetem ao longo de várias gerações.

Na origem do presente caos fiscal, está a falta de densificação orçamentário-financeira da ordenação de prioridades constitucionalmente determinada desde 1988. O arcabouço fiscal brasileiro ignora a extrema desigualdade na sociedade e nega custeio suficiente aos direitos fundamentais inscritos no nosso pacto constitucional civilizatório, a pretexto de limites fiscais seletivamente incidentes apenas sobre despesas primárias.

Todo o restante vem desse atropelo privadamente utilitarista (mas republicanamente insano) que, diante da escassez, passa sempre seu pirão à frente ou recusa-se a contribuir conforme sua capacidade contributiva para o custeio das ações coletivas que resguardam a vida em sociedade.

A maior iniquidade fiscal do país reside no fato de que, enquanto o teto apenas tenta controlar despesas primárias, a riqueza privada subtributada é relativamente bem remunerada, com liquidez imediata e risco zero na dívida pública (sobretudo mediante as operações compromissadas). A regressiva matriz tributária e a ausência de balizas normativas para as despesas financeiras são ocultadas e naturalizadas por uma agenda de ajustes fiscais que incide exclusivamente sobre o controle de despesas primárias (austeridade seletiva).

O resultado final é um profundo déficit democrático, em que todos sofremos com a instabilidade não só das nossas regras fiscais, como também do nosso horizonte coletivo de vida justa. Não há projetos de futuro comum em um país onde impera a pilhagem extrativista de curto prazo. Nesse contexto, não há como projetar nada diferente para 2022, para além da tendência de que seja repetido o caos de 2021.


[1] Cujo inteiro teor é o seguinte: "Art. 101. Os resultados gerais do exercício serão demonstrados no Balanço Orçamentário, no Balanço Financeiro, no Balanço Patrimonial, na Demonstração das Variações Patrimoniais, segundo os Anexos números 12, 13, 14 e 15 e os quadros demonstrativos constantes dos Anexos números 1, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 16 e 17".

[2] Extraído de https://www.dicio.com.br/caos/, acesso em 27/12/2021.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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