Opinião

Soberania do júri e prisão antes do julgamento da apelação: ainda a Boate Kiss

Autor

  • Alberto Zacharias Toron

    é advogado mestre e doutor em Direito Penal pela USP professor de Processo Penal na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca conselheiro federal da OAB e ex-presidente do IBCCrim.

27 de dezembro de 2021, 17h21

É grosseira a confusão entre a permissão para recorrer em liberdade após a condenação pelo júri e a ofensa à soberania da decisão do júri. O núcleo duro desta garantia constitucional (CF, artigo 5º, inciso XXXVIII, letra "c") tem a ver com a impossibilidade de o tribunal de apelação ou qualquer outro da República, inclusive superior, modificar o mérito da decisão do conselho de sentença. Já a possibilidade de recorrer em liberdade aparece entre nós com a Lei Fleury (Lei nº 5.941/73) e veio sucessivamente ampliada e reafirmada, indicando apenas a suspensividade da executoriedade da condenação.

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Dessa forma, soberania das decisões do júri é uma coisa; execução imediata da sentença, como emanação do resultado do julgamento, é outra. Não se arranha a primeira se a prisão se dá após o julgamento da apelação ou mesmo após o trânsito em julgado da decisão.

Daí a jurisprudência consolidada nas duas turmas especializadas em matéria penal do STJ ter, com total acerto, expresso a ideia de que a: "Soberania dos veredictos não é absoluta e convive em harmonia com o sistema recursal desenhado pela Lei Adjetiva Penal. O fato de a Corte revisora, no julgamento de apelação contra decisão do Tribunal do Júri, não estar legitimado a efetuar o juízo rescisório, não provoca a execução imediata da sentença condenatória, pois permanece incólume a sua competência para efetuar o juízo rescindente e determinar, se for o caso, um novo julgamento, com reexame de fatos e provas" (HC nº 438.088, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 01/6/2018).

Como advertia Frederico Marques, a soberania das decisões do júri não pode ser compreendida de modo metafísico, mas, sim, na forma da lei. Tanto que se admite, a despeito do dissenso após a reforma de 2011 no CPP, que introduziu a absolvição imotivada do acusado pelo júri, a interposição de apelação por parte do MP e da defesa contra as decisões reputadas "manifestamente contrárias" à prova dos autos (CPP, artigo 593, III, "d"). Por outro lado, revisões criminais também podem ferir o mérito do veredicto para absolver o peticionário, sem sujeita-lo a novo júri (STF, ARE nº 674.151, relator ministro Celso de Mello, DJe 18/10/2013).

Ao tratar da garantia constitucional da soberania dos veredictos, a 1ª Turma do STF, tendo como relator o ministro Alexandre de Moraes, com precisão, assinalou que a nota característica desta é a de ser "a única instância exauriente na apreciação dos fatos e provas do processo" e destacou a "impossibilidade de suas decisões serem materialmente substituídas por decisões proferidas por juízes ou Tribunais togados". O que, por óbvio, traduz uma "exclusividade na análise do mérito" (RHC nº 170.559, com voto convergente do ministro Luiz Fux; DJe 04/11/2020). Mas, temperando seu raciocínio, diz:

"2. A introdução do quesito genérico na legislação processual penal (Lei nº 11.689, de 09 de junho de 2008) veio claramente com o intuito de simplificar a votação dos jurados — reunindo as teses defensivas em um quesito —, e não para transformar o corpo de jurados em 'um poder incontrastável e ilimitado'.
3. Em nosso ordenamento jurídico, embora soberana enquanto decisão emanada do Juízo Natural constitucionalmente previsto para os crimes dolosos contra a vida, o específico pronunciamento do Tribunal do Júri não é inatacável, incontrastável ou ilimitado, devendo respeito ao duplo grau de jurisdição."

Ao relatar o HC nº 100.693, o ministro Luiz Fux, com clareza lapidar, sustentou que "o princípio da soberania dos veredictos não é infirmado por força da determinação legal de um novo julgamento pelo tribunal popular" (DJe 13/9/2001). Vale dizer, a apelação dos réus pode ter como consequência a anulação do julgamento por vício de forma (CPP, artigo 593, III, letra "a") ou mesmo de fundo (CPP, artigo 593, III, "d"), sem que isso interfira com a soberania dos jurados. Mais, pode a sentença ser modificada quanto à fixação da pena quer por que mal aplicada (desproporcional, por exemplo), quer porque desconforme ao decidido pelos jurados (CPP, artigo 593, III, letras "b" e "c"). Por outro lado, é importante ter presente que a qualificadora é "elemento acidental do crime, e não circunstância da pena" (STF, Pleno, HC nº 66.334-6, relator ministro Moreira Alves, DJ 19.5.89), mas acolhida ou rejeitada pelo júri, só ele poderá revê-la. Portanto, eventual acolhimento ou rejeição de uma ou de todas as qualificadoras de forma manifestamente contrária à prova dos autos, pode levar à determinação de novo júri.

Estabelecida a primazia do conselho de sentença para a decisão sobre o mérito da imputação, essência da garantia da soberania das suas decisões, impor o cumprimento da pena logo após a condenação dos réus, ou não, em nada altera a garantia em exame. Ao contrário. A executoriedade imediata da condenação, ainda sujeita à reexame em grau de apelação sob vários aspectos, esbarra, choca-se, com a garantia da presunção de inocência.

É, aliás, o que, sem divergência, mesmo após a Lei nº 13.964/2019, decidiu a 2ª Turma do STF ao julgar o HC nº 174.759, da relatoria do ministro Celso de Mello:

"E M E N T A: 'HABEAS CORPUS' – CONDENAÇÃO RECORRÍVEL EMANADA DO JÚRI — DETERMINAÇÃO DO JUIZ PRESIDENTE DO TRIBUNAL DO JÚRI ORDENANDO A IMEDIATA SUJEIÇÃO DO RÉU SENTENCIADO À EXECUÇÃO ANTECIPADA (OU PROVISÓRIA) DA CONDENAÇÃO CRIMINAL — INVOCAÇÃO, PARA TANTO, DA SOBERANIA DO VEREDICTO DO JÚRI — INADMISSBILIDADE — A INCONSTITUCIONALIDADE EXECUÇÃO PROVISÓRIA DE CONDENAÇÕES PENAIS NÃO TRANSITADAS EM JULGADO — INTERPRETAÇÃO DO art. 5º, INCISO LVII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA — EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE PRÉVIO E EFETIVO TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO CRIMINAL COMO REQUISITO LEGITIMADOR DA EXECUÇÃO DA PENA (…) (DJe 22/10/2020)".

Um pouco da história do nosso processo penal ajuda a compreender a ilogicidade e a inconstitucionalidade de se prender logo após o julgamento pelo júri, sobretudo quando, entre nós, vigora a garantia da presunção de inocência até o trânsito em julgado e que o STF, em decisão do seu Plenário, ao julgar o artigo 283 do CPP, espelho do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, afirmou ser constitucional nas ADCs 43, 44 e 54.

Sob o CPP de 1941, a prolação da sentença condenatória, salvo a hipóteses de se livrar pelo estreitíssimo cabimento da fiança, sujeitava o condenado à prisão como modalidade de execução provisória da pena (artigo 669, I, na redação original). A executoriedade era imediata, mas o Estado Novo, de inspiração fascista, não tinha nenhum compromisso com a presunção de inocência; pelo contrário, repeli-a com a presença da prisão preventiva obrigatória para crimes graves apenados com pena, no máximo, igual ou superior a dez anos (artigo 312 na redação original). Ademais, o artigo 594 era claro na determinação da prisão para apelar, sob pena de não conhecimento do apelo.

Esse quadro mudou em plena ditadura militar com a providencial Lei nº 5.941/1973, mais conhecida como Lei Fleury, que permitiu ao condenado primário e de bons antecedentes recorrer em liberdade, mesmo que o delito não fosse afiançável. Era uma lei espúria, pois voltada a acudir o delegado que lhe empresta seu nome, mas justa porque se afinava com a presunção de inocência.

A Lei 6.416/77 introduziu o parágrafo único do artigo 310 do CPP instituindo a possibilidade de o juiz conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, quando o juiz verificar "a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (artigos 311 e 312)". Assim, quem estava em liberdade no primeiro grau e recorria, permanecia, em princípio, em liberdade. Sem embargo, como parece evidente, o grande salto na matéria veio com a promulgação da Constituição de 1988, que introduziu o princípio da presunção de inocência (CF, artigo 5º, inciso LVII) e obrigou a uma releitura restritiva da prisão cautelar, pois de modo algum poderia ser aplicada como antecipação de pena [1].

Passados mais de 30 anos da promulgação da Constituição de 88, a Lei 12.403/2011 estabeleceu o caráter absolutamente excepcional, de ultima ratio, da custódia cautelar ao proclamar no artigo 282, §6º, do CPP que esta só "será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (artigo 319)". Mais do que isso, o artigo 283 do CPP, na linha da garantia constitucional da presunção de inocência, só admite a prisão antes do trânsito em julgado quando houver algum pressuposto de natureza cautelar. O mesmo fez o pacote "anticrime", Lei nº 13.9864, ao reafirmar o disposto no artigo 283.

É verdade, no entanto, que o pacote "anticrime", ao alterar o disposto no artigo 492, I, legra "e", contraditoriamente, autorizou que o juiz, logo após a condenação pelo júri à pena igual ou superior a 15 anos, determine a execução da pena, "sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos". Voltamos para o regime do CPP do Estado Novo, ignorando o comando constitucional da presunção de inocência.

O STF, como vimos acima, além de ter uma decisão da 2ª Turma julgando inconstitucional essa disposição (HC nº 174.759), tem pendente o julgamento da mesma matéria no RE nº 1.235.340, ao qual já se atribuiu repercussão geral (Tema nº 1.068), e também duas ações diretas de inconstitucionalidade questionando esse dispositivo legal (ADIs nºs 6.735 e 6.783).

É curioso perceber que na vigência da Carta de 1937, quando não havia soberania das decisões do júri, pois o tribunal de apelação, sem sujeitar o réu a novo júri, poderia condená-lo, o problema da executoriedade imediata da condenação não se colocava. Essa era a regra. E também não se colocou quando a Lei nº 263/1948, na linha da proclamação da soberania das decisões do júri, determinada pela Constituição de 1946, também se prendia logo após o julgamento. Com ou sem soberania do júri, a prisão se dava logo após a condenação. Aliás, nos termos do artigo 312 da época, a prisão preventiva era obrigatória se se tratasse da imputação de homicídio doloso, ainda que simples. Da mesma forma, quando os réus passaram a apelar em liberdade, mesmo sem ser até o trânsito em julgado, isso não afetava a "soberania" das decisões do júri, pois esta se compreende apenas como a impossibilidade de outro órgão judicante desfazer o refazer o mérito destas (HC nº 100.693, ministro Luiz Fux). De idêntica maneira, não se questionou a soberania das decisões do júri quando se permitiu a permanência em liberdade até o transito em julgado da condenação, como no conhecido caso do jornalista Pimenta Neves, que matou sua companheira. Com o trânsito em julgado, ele foi para a prisão.

De tudo, como disse o desembargador Roberto Porto, do TJ-SP, extrai-se que: "(…) Mesmo não sendo possível alterar-se o juízo sobre os fatos, há a possibilidade, ainda que eventual, de modificação do quantum da pena imposta o que poderia, até mesmo, ensejar a alteração do regime prisional inicial fixado" (8ª Câmara Criminal, HC nº 2207122-22.2018.8.26.0000, j. 25.10.2018). Ou, na síntese do ministro Celso de Mello:

"Não cabe invocar a soberania do veredicto do Conselho de Sentença, para justificar a possibilidade de execução antecipada (ou provisória) de condenação penal recorrível emanada do Tribunal do Júri, eis que o sentido da cláusula constitucional inerente ao pronunciamento soberano dos jurados (CF, art. 5º, XXXVIII, 'c') não o transforma em manifestação decisória intangível, mesmo porque admissível, em tal hipótese, a interposição do recurso de apelação, como resulta claro da regra inscrita no art. 593, III, 'd', do CPP (HC n. 174.759, DJe 22/10/2020)".

Parece desnecessário dizer que toda essa discussão sobre a soberania do júri e a imediata prisão para cumprimento de pena atina com a interpretação ao artigo 492, I, do CPP, e não propriamente com a garantia constitucional da soberania das decisões do Tribunal Popular propriamente dita. O artifício, que em outro artigo publicado na ConJur ("Justiça para todos: o caso da boate Kiss") chamei de "drible da vaca", serviu mais para procurar legitimar a decisão do presidente da Suprema Corte na Suspensão de Liminar nº 1.504. Essa pseudolegitimação acaba por deslegitimar o nosso sistema de Justiça. Cria-se uma espécie de vale-tudo processual que gera insegurança e, no futuro, servirá de armadilha para a própria corte quando outro ministro, com outra visão, fizer o mesmo, mas em sentido contrário. Erodido, o sistema deixa de funcionar e, com ele, claudica o Estado de Direito, que deixa de ser de garantias para se apresentar como despótico.


[1] Sobre o tema, é de leitura obrigatória o trabalho de Antonio Magalhães Gomes Filho, Presunção de inocência e prisão cautelar (São Paulo: Ed. RT, 1991) e na jurisprudência o voto vencido do Min. Sepúlveda Pertence no HC 80.717 (caso do Juiz Nicolau do TRT de São Paulo, 05.03.2004).

Autores

  • Brave

    é advogado, doutor e mestre em Direito Penal pela USP, especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca, professor de Processo Penal da FAAP, conselheiro federal da OAB eleito por São Paulo, autor do livro "Habeas corpus e o controle do devido processo legal" (ed. Revista dos Tribunais) e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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