Direito Eleitoral

Contribuições do CNJ na construção do Direito Internacional Eleitoral

Autor

  • Vítor de Andrade Monteiro

    É doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Complutense de Madrid mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas membro da Abradep professor de Direito e servidor da Justiça Eleitoral.

27 de dezembro de 2021, 8h05

No dia 14 desse mês, o Conselho Nacional de Justiça deu um passo importante no fortalecimento da efetividade de tratados de direitos humanos no Brasil. Refiro-me à aprovação do Ato Normativo 0008759-45.2021.2.00.0000, por meio do qual o órgão de controle do judiciário recomendou que os membros do poder judiciário, em suas decisões, observem os tratados e convenções de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário e realizem o controle de convencionalidade. Outro ponto importante dessa publicação foi a recomendação para que seja observada a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Poder-se-ia dizer que não estaríamos diante de qualquer novidade, já que inexiste qualquer inovação nas recomendações acima expostas, mas mera referência ao dever geral do Brasil de cumprimento dos deveres assumidos em tratados internacionais sobre direitos humanos. Ainda que me pareça que, em certo ponto, a afirmativa tenha fundamento, enxergo as recomendações com uma ótica mais otimista, ou melhor, emprestando a expressão de Suassuna, de maneira realista, mas esperançosa. Explico.

Acredito que o direito internacional dos direitos humanos não encontra o seu maior desafio no plano da previsão ou do reconhecimento de direitos. Em verdade, parece ser a sua efetivação/utilização, não só no aspecto quantitativo, mas também qualitativo, o verdadeiro óbice para o fortalecimento da proteção de direitos humanos no Brasil. Há inúmeros exemplos do afirmado em relação a diversos direitos humanos, contudo, neste texto me deterei apenas àqueles afetos ao processo eleitoral.

Embora se encontre resistência à intromissão do direito internacional em aspectos ligados ao processo eleitoral dos Estados, especialmente com fundamento numa ideia vestfaliana de soberania estatal, o fato é que restringir ao direito nacional a solução de questões envolvendo violação de direitos políticos por vezes pode não ser muito efetivo. É que não se pode contar com um comportamento democrático de governos ilegítimos, especialmente porque, por vezes, as instituições que poderiam realizar esse controle são aparelhadas para garantir a manutenção do governo arbitrário.

Com efeito, na atualidade, os direitos político-eleitorais são reconhecidos como uma categoria abarcada pela força expansiva da proteção internacional dos direitos humanos, incorporando, com isso, todo um conjunto de especial proteção a eles garantido. Esses direitos estão previstos em diversos tratados internacionais reconhecidos e incorporados pelo Brasil, tais como a Declaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Carta Democrática Interamericana, dentre outros.

Adotando-se a atual posição do STF sobre o status dos tratados de direito humanos incorporados pelo Brasil, tem-se que esses diplomas internacionais podem possuir duas posições hierárquicas no sistema jurídico brasileiro (teoria do duplo estatuto): a) natureza constitucional, caso sejam aprovados pelo rito previsto no §3º do art. 5º da Constituição Federal; ou b) natureza supralegal, para todos os demais.

Assim, partindo-se desse cenário, podemos constatar que os tratados de direitos humanos incorporados pelo Brasil, que versem sobre direitos político-eleitorais, possuem status superior a todas as normas eleitorais que tenham previsão infraconstitucional, já que aqueles seriam, no mínimo, supralegais. É dizer, os tratados internacionais de direitos humanos que se refiram a direitos político-eleitorais servem de fundamento de validade para o Código Eleitoral, Lei das Eleições, Lei de Partidos Políticos, Lei das Inelegibilidades dentre tantos outros diplomas eleitorais. Assim, a incompatibilidade de determinada norma eleitoral infraconstitucional com alguma norma prevista em um desses tratados tem o condão de gerar a invalidação da norma nacional.

Não obstante o controle de convencionalidade também possa ser desenvolvido pelo Poder Executivo – que pode vetar um projeto de lei por entender inconvencional, por exemplo; e pelo Poder Legislativo – ao realizar um controle preventivo de convencionalidade durante o processo legislativo; esse controle costuma ser mais notado em sua vertente judicial. No âmbito do Poder Judiciário, o controle de convencionalidade no Brasil pode ser realizado por todos os juízes e cortes nacionais. Assim, deve toda magistrada, ou magistrado, brasileiro, inclusive os eleitorais, exercer a tarefa de analisar a conformidade das normas pátrias com os diplomas internacionais de direitos humanos correspondentes. É por essa razão que se pode dizer que, no que diz respeito à Convenção Americana de Direitos Humanos, por exemplo, toda magistrada ou magistrado brasileiro é também uma juíza ou juiz interamericano.

Entretanto, o que se percebe na prática é que são extremamente raras as petições que invocam a Convenção para a defesa de direitos político-eleitorais, e ainda mais incomuns os julgamentos em que o documento é mencionado. Nesse sentido, Marcelo Peregrino Ferreira[1] afirma que “(s)e sob outras esferas do Direito a eficácia dos tratados internacionais de Direitos Humanos já é limitada, essa timidez é ainda mais contundente na Justiça Eleitoral”.

Em 2015 realizei levantamento[2] a fim de avaliar a presença do sistema interamericano de direitos humanos na jurisprudência eleitoral brasileira, tendo encontrado na oportunidade apenas três julgados fazendo referências a dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos e em nenhum dos casos foi feita menção a decisões da Corte IDH. Pesquisa idêntica foi realizada cinco anos depois, encontrando um notável fortalecimento da utilização do sistema interamericano, tanto no número de julgados, como no posicionamento do TSE, que passou a reconhecer o dever de realizar o controle de convencionalidade[3]. Esse entendimento, inclusive, foi consolidado pelo TSE em enunciado publicado em 2021 (Enunciado 5)[4].

Todavia, ainda que seja animadora a constatação do reconhecimento do dever de exercer o controle de convencionalidade pelo TSE, a análise do repertório jurisprudencial demonstra, em alguns temas, um distanciamento entre a jurisprudência da corte brasileira e da interamericana, especialmente ao invocar direito interno para justificar o inadimplemento de tratados[5], revelando que ainda há um longo caminho a ser percorrido para alcançarmos uma utilização adequada dos sistemas internacionais de direitos humanos para a proteção de direitos político-eleitorais no Brasil.

As recomendações do CNJ acima referidas terminam por admitir a existência desse déficit de implementação, o que, por si só já me parece positivo, uma vez que reconhecer o problema é um passo importante na busca por uma solução. Além disso, penso que o ato normativo do órgão de controle gera dois efeitos bastante interessantes: a) chamam a atenção dos membros do Judiciário, na qualidade de órgão de controle, para o dever de observar os tratados internacionais de direitos humanos; e b) reforçam a necessidade de seguir a jurisprudência da Corte Interamericana.

Esse segundo ponto merece uma atenção especial. É que a adequada aplicação das normas oriundas de tratados internacionais de direitos humanos exige que a atividade de controle de convencionalidade não se detenha ao texto do documento internacional, mas que utilize como paradigma a interpretação que foi dada pelo órgão a quem compete o controle de convencionalidade definitivo, no caso do sistema interamericano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Faz-se necessária, dessa forma, a construção de um diálogo entre as Cortes que realizam o controle de convencionalidade, a fim de evitar o que André de Carvalho Ramos[6] chamou de “truque de ilusionista”. Por meio desse artifício os Estados aceitam o teor dos documentos internacionais, mas, na prática, os descumprem, aplicando-os conforme seu próprio entendimento, e permitindo a existência de diversas “Convenções Americanas de Direitos Humanos”, cada órgão aplicador com a sua própria Convenção.

Hannah Arendt ensinava que os direitos humanos não são um dado histórico, mas um construído, resultado de um longo processo de construção e reconstrução. A publicação das recomendações do CNJ, em meu sentir, se apresenta como um impulso no sentido dessa construção[7]. Ainda as recomendações possam parecer desnecessária ou redundante para alguns, penso que elas se assemelham àquele grão de areia mencionado por Bobbio[8], que parece ser insignificante e improvável na tentativa de parar engrenagens de uma máquina monstruosa, mas que, considerando a natureza da missão, faz valer a pena desafiar o seu destino.

Referências
ARENDT, Hannah, As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

BOBBIO, Norberto. Diário de um século – autobiografia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1998.

CARVALHO RAMOS, André de, “O Diálogo das Cortes: o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos” in Amaral Júnior, Alberto do e Jubilut, Lyliana Lyra (orgs.), O STF e o Direito Internacional dos Direitos Humanos, São Paulo: Quartier Latin, 2009, v. 1, p. 805-850.

FERREIRA, Marcelo Peregrino, “O direito eleitoral frente aos tratados internacionais: o solipsismo da jurisprudência nacional e o ativismo pro persona no caso mexicano”, in Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, ano 16, n. 22, p.156-182, jan./jun., 2018.

FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino, O controle de convencionalidade da Lei da Ficha Limpa: Direitos Políticos e Inelegibilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

MONTEIRO, V. A.. A Influência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos no Direito Eleitoral Brasileiro: por um novo crivo na proteção dos direitos político-eleitorais. Revista De Derechos Humanos Y Estudios Sociales, Cidade do México, V. 24, P. 117-150, 2020.

MONTEIRO, Vítor Andrade, “Direitos humanos e direitos políticos: perspectivas e tendência do direito eleitoral perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos”, in Revista do Instituto Interamericano de Derechos Humanos, San José, C.R., n. 61, 2015. p. 173-200.

[1] Ferreira, Marcelo Peregrino, “O direito eleitoral frente aos tratados internacionais: o solipsismo da jurisprudência nacional e o ativismo pro persona no caso mexicano”, in R. Opin. Jur. Fortaleza, ano 16, n. 22, p.156-182, jan./jun. 2018. Acerca do tema, conferir o trabalho precursor do mesmo autor: FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino, O controle de convencionalidade da Lei da Ficha Limpa: Direitos Políticos e Inelegibilidades, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

[2] Pesquisa realizada em 19/11/2014. Foram pesquisadas as seguintes expressões: Convenção Americana de Direitos Humanos, direitos humanos, Pacto de San José, Corte Interamericana de Direitos Humanos, Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Corte IDH e CIDH. MONTEIRO, Vítor Andrade, “Direitos humanos e direitos políticos: perspectivas e tendência do direito eleitoral perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos”, in Revista do Instituto Interamericano de Derechos Humanos, n. 61 San José, C.R., IIDH, 2015. p. 173-200.

[3] MONTEIRO, V. A.. A Influência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos no Direito Eleitoral Brasileiro: por um novo crivo na proteção dos direitos político-eleitorais. Revista De Derechos Humanos Y Estudios Sociales, Cidade do México, V. 24, P. 117-150, 2020.

[4] Enunciado 5 – A Convenção Americana de Direitos Humanos e as demais normas que integram o sistema interamericano de direitos humanos podem ser invocadas como fundamento jurídico para a defesa de direitos políticos no Brasil, cabendo aos juízes e cortes eleitorais exercerem o controle de convencionalidade. Disponível em <https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/prt/2021/portaria-no-348-de-28-de-maio-de-2021>, acessado em 16/12/2021.

[5] MONTEIRO, V. A.. A Influência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos no Direito Eleitoral Brasileiro: por um novo crivo na proteção dos direitos político-eleitorais. Revista De Derechos Humanos Y Estudios Sociales, Cidade do México, V. 24, P. 117-150, 2020.

[6] Carvalho Ramos, André de, “O Diálogo das Cortes: o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos” in Amaral Júnior, Alberto do e Jubilut, Lyliana Lyra (orgs.), O STF e o Direito Internacional dos Direitos Humanos, São Paulo: Quartier Latin, 2009, v. 1, p. 805-850.

[7] Arendt, Hannah, As origens do totalitarismo, São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

[8] BOBBIO, Norberto. Diário de um século – autobiografia. 2ª ed. Trad. Daniela. Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 1998, p. 216.

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    É doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Complutense de Madrid, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas, membro da Abradep, professor de Direito e servidor da Justiça Eleitoral.

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