Opinião

Sistema híbrido do mínimo existencial: um caminho para o crédito responsável

Autores

  • Lillian Salgado

    é advogada sócia fundadora do escritório Lillian Salgado Sociedade de Advogados presidente do Comitê Técnico do Instituto Defesa Coletiva diretora de Proteção de Dados dos Segurados do INSS do Ieprev membro do Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais e conselheira do Fundo Estadual de Direitos Difusos (Fundif).

  • Everton Henrique de Paula Oliveira

    é bacharel em Direito pela UFMG e integrante da equipe jurídica do Instituto Defesa Coletiva.

26 de dezembro de 2021, 16h13

O consumo na sociedade atual se tornou uma prática marcada por implicações das mais diversas, causando desde o superendividamento, até mesmo graves problemas de saúde nos consumidores pelo mundo. A ideia que paira na contemporaneidade é que não basta consumir apenas para ter, mas sim para ser. O indivíduo busca, na experiência do consumo, se inserir e se individualizar em uma sociedade marcada pela generalização das pessoas, bem como pela efemeridade das relações, sejam elas com as pessoas ou com as coisas.

Nesse cenário, percebe-se que as instituições financeiras, com seu modus operandi predatório, com vistas sempre a exponenciar seus lucros, funcionam como verdadeiras molas propulsoras do consumo desequilibrado. O consumidor é constantemente assediado e compelido a contrair empréstimos muitas vezes desnecessários, que se tornam impagáveis, em razão da política de juros altos e desinformação perpetrada pelos bancos.

Essa bola de neve de dívidas resulta em um quadro de altíssimo superendividamento do consumidor brasileiro. Segundo o Mapa de Inadimplência do Brasil [1], elaborado pelo Serasa em maio de 2021, existem no país ao menos 60 milhões de inadimplentes, totalizando um valor de R$ 249,6 bilhões. Ainda conforme esse estudo, o valor médio de cada dívida por pessoa é de R$ 3.937,98, sendo que o setor bancário/cartão de crédito concentra o maior número dos débitos: 29,7%. Destaca-se também que 16,9% dos inadimplentes têm mais de 60 anos, o que gera maior preocupação, pois o quadro de endividamento de consumidores hipervulneráveis tem o condão de acarretar prejuízos financeiros e psicológicos ainda maiores. Verifica-se que vários outros países apresentam números alarmantes de endividados. Os Estados Unidos contam com 76,6% da sua população endividada; o Chile, com 70%; e a França, com 50% [2] .

Com todo esse cenário de exacerbada necessidade de consumir, os bancos figuram como as principais patrocinadoras desse preocupante modelo de consumo, pois eles são os detentores do crédito. Por isso, torna-se ainda mais exigível das instituições financeiras um comportamento leal e estritamente pautado pelas normas protetivas dos consumidores.

A Lei 14.181/2021 é um marco para a prevenção e o tratamento do superendividamento no país. A legislação tem o condão de, a um só tempo, criar o dever de concessão de crédito responsável por parte dos bancos e nortear a implementação de políticas públicas para intervenção no tema. A referida lei surgiu após o louvável trabalho capitaneado pela professora Cláudia Lima Marques que, junto ao Congresso Nacional, elaborou um robusto estudo sobre a questão do superendividamento no país e, ao final, concebeu uma norma protetiva do consumidor pessoa natural, que de boa-fé não consegue arcar com o pagamento da totalidade de suas dívidas, desafiando, por conseguinte, a atuação do Poder público para a elaboração de um plano de pagamento capaz de contemplar o adimplemento dos débitos, bem como a garantia de existência digna do cidadão.

É interessante pontuar que o procedimento elaborado para a intervenção na situação de superendividamento do consumidor muito se assemelha ao sistema de recuperação judicial previsto na Lei nº 11.101/2005. Destaca-se que nessa legislação o objetivo é salvar a atividade empresarial da bancarrota, por sua vez aquela norma, em relação ao consumidor, vai além de evitar a sua falência, pois constitui verdadeira política pública de caráter transformador do status quo das relações de consumo vigentes no país.

Atenta-se que a "falência" do consumidor pessoa natural significa a morte social do cidadão, com implicações para além da seara financeira, atingindo em cheio a sua existência digna. Um dos principais pontos esculpidos na nova lei diz respeito à necessidade de se promover um crédito responsável entre os consumidores brasileiros. Para tanto, a norma estipulou para as instituições financeiras o dever de promoverem a educação financeira do consumidor, a fim de refrear a busca por empréstimos muitas vezes desnecessários ou induzidos.

O comportamento dos bancos no país deve sofrer uma mudança substancial, considerando que a cultura de assédio para com os consumidores deverá, aos poucos, ser extirpada do mercado brasileiro, a medida em que a lei for de fato implementada, tendo em vista que não cabe mais nas relações consumeristas o "crédito pelo crédito". O crédito responsável tem de ser tratado como um verdadeiro princípio que deve iluminar as relações de consumo. Ademais, por meio da educação financeira espera-se que a busca pelo crédito seja realizada de forma mais consciente e informada.

Para além da implementação do dever de concessão de crédito consciente e promoção de educação financeira, a Lei nº 14.181/2021 traz como ponto central de abordagem do problema do superendividamento a garantia do mínimo existencial. Durante muito tempo o ordenamento jurídico brasileiro tratou do mínimo existencial nas relações consumeristas de forma tímida e até mesmo temerária, tomando por empréstimo o percentual de 30% definido como limite para descontos mensais de dívidas, previsto na Lei nº 10.820/2003 e, infelizmente,  consolidado na jurisprudência pátria. Contudo, esse parâmetro não é capaz de traduzir toda a complexidade do mínimo existencial, bem como promove uma generalização da situação financeira das mais diversas famílias brasileiras, o que onera sobremaneira o consumidor.

Ademais, esse percentual fora definido sem qualquer discussão junto à sociedade, contemplando apenas os interesses das instituições financeiras. Destaca-se que o resguardo de apenas 70% ou 60% da renda líquida do consumidor brasileiro não é capaz de efetivar o mínimo existencial em todos os seus aspectos. Pode-se apontar ainda que esse expediente constitui uma das grandes causas do superendividamento do consumidor brasileiro, que, ante essa ínfima proteção, viu-se compelido à completa desregulação da sua situação financeira.

Não há dúvidas que a falta de critérios objetivos relativos ao mínimo existencial na concessão de empréstimos em todas as suas modalidades ocasionou a recorrente prática de concessão irresponsável de crédito, pois de um lado existem os recordes na lucratividade das instituições financeiras e, do outro, o aumento significativo do superendividamento da população brasileira, conforme informa o estudo do desempenho dos bancos divulgado pela DIEESE [3] .

Assim, é premente a necessidade de dar protagonismo ao mínimo existencial, determinando que sua composição de fato expresse a carga protetiva capaz de resgatar o consumidor superendividado à dignidade. Nesse sentido, com a intenção de conciliar a substanciosa subjetividade do conceito de mínimo existencial com a urgente necessidade de concretizá-lo na sociedade, especialmente no que tange às relações consumeristas, sugere-se a adoção de critérios objetivos na concessão do crédito, por meio do escalonamento do percentual que deve ser calculado para cada nível de renda, observadas as despesas básicas de sobrevivência de cada grupo familiar brasileiro.

A ocasião da concessão do crédito constitui uma oportunidade importante na prevenção do superendividamento, na qual tanto fornecedor quanto consumidor devem orientar-se pelo crédito saudável e consciente. Porém, no contexto brasileiro, é possível esperar que as instituições financeiras tenham maturidade para que, nessa relação administrativa, respeitem uma norma aberta de mínimo existencial?

Em estudo aprofundado sobre o tema, a economista Adriana Fileto, coordenadora do Comitê Técnico de Educação Financeira do Instituto Defesa Coletiva,  elaborou um parecer técnico sobre o mínimo existencial, na qual descortinou critérios objetivos para se afirmar de forma precisa e razoável, com amparo em quesitos financeiros, sociais e jurídicos, quais as despesas devem ser consideradas para o cálculo dos percentuais do mínimo existencial, de acordo com o contexto sociofamiliar de cada consumidor brasileiro. Para tanto, utilizou-se, de forma adaptada, os dados da Pesquisa Sobre Orçamentos Familiares (POF) que é realizada pelo IBGE, desde 1974. A referida pesquisa avalia as estruturas de consumo, de gastos, de rendimentos e parte da variação patrimonial das famílias, oferecendo um perfil das condições de vida da população a partir da análise dos orçamentos domésticos.

O estudo técnico aponta que a composição do mínimo existencial deve abarcar as seguintes despesas: alimentação, habitação, vestuário, transporte, higiene e cuidados pessoais, assistência à saúde e educação.

Assim, considerando o gasto resultante da soma dessas despesas, bem como a faixa de renda de cada família brasileira, conclui-se pela fixação dos seguintes percentuais de mínimo existencial:

RENDA

MÍNIMO EXISTENCIAL (% SOBRE A RENDA) BRASIL

Até 1 SM

88

Mais de 1 até 1,5 SM

85

Mais de 1,5 até 3 SM

81

Mais de3 até 5 SM

77

Mais de 5 até 7,5 SM

72

Mais de 7,5 até 12,5 SM

67

Mais de 12,5 SM

59

 

Não se pode olvidar que o Brasil é um país continental, marcado por profundas diferenças regionais materializadas em manifestações culturais distintas, bem como cenários socioeconômicos que desafiam políticas públicas individualizadas e desenvolvidas com o intuito de atender as especificidades de cada região.

Assim, faz-se necessário o apontamento de porcentagens de mínimo existencial que contemple cada região do país. Senão vejamos:

 

Brasil (%)

Região Norte (%)

Região Nordeste (%)

Região Sudeste (%)

Região Sul (%)

Região Centro-oeste (%)

Até 1 SM

88

88

88

87

84

85

Mas de 1 até 1,5 SM

85

 

84

 

85

 

85

 

84

 

85

Mais de 1,5 até 3 SM

81

 

80

 

80

 

82

 

81

 

80

Mais de 3 até 5 SM

77

 

74

 

76

 

77

 

76

 

76

Mais de 5 até 7,5 SM

72

 

63

 

72

 

73

 

72

 

71

Mais de 7,5 até 12,5 SM

67

 

73

 

70

 

70

 

59

 

60

Mais de 12,5 SM

59

 

53

 

63

 

61

 

54

 

54

Ressalta-se que a recomendação de parâmetros objetivos para a fixação do mínimo existencial não exclui a possibilidade de ajuste em cada caso concreto, tomando em conta as especificidades de cada família brasileira. Nesse contexto, a fixação de um critério objetivo no momento da concessão do crédito, reflete muito mais do que a simples garantia da segurança jurídica, traduzindo verdadeira proteção ao consumidor hipervulnerável.

Por sua vez, no momento do tratamento do superendividamento, a abertura para a análise do caso concreto deve ser ainda maior. Nesse ponto, a aferição do mínimo existencial deve ser entendida como um processo aberto, maleável, no qual o julgador deverá, norteado pelos princípios consumeristas e da dignidade da pessoa humana, realizar um juízo de ponderação, a fim de dar ao conceito normativo do mínimo existencial sua adequada correspondência fática, assegurando, assim, a efetividade da referida norma protetora.

Conclui-se que a definição do mínimo existencial capaz de dar efetividade à Lei nº 14.181/2021, com a esperada proteção da dignidade do consumidor superendividado é tarefa complexa. Contudo, a sugestão de sistema híbrido ora apresentada mostra-se como uma alternativa extremamente interessante para viabilizar a imediata regulamentação da matéria.

 


[1] Mapa da Inadimplência do brasil. Disponível em: https://www.serasa.com.br/assets/cms/2021/Mapa-de-Inadimple%CC%82ncia-no-Brasil.pdf. Acesso em: 27 de outubro de 2021.

[2] Produto 2 — Cenário Superendividamento no Brasil e no mundo. Senacon, agosto de 2021.

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