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Gurgel da Silva: Outro olhar sobre o direito à cidade

25 de dezembro de 2021, 6h34

Por Carlos Sérgio Gurgel da Silva

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As cidades são centros para onde as pessoas convergem visando a realização de diversos aspectos da vida humana. Do ponto de vista jurídico-constitucional, as cidades são espaços territoriais limitados por uma 'malha' urbana, a qual é dotada de múltiplas funcionalidades. Nesse contexto, podemos concretamente afirmar que as cidades não são um fim em si mesmas, mas tão somente um meio para a realização de direitos. Sendo assim, as cidades precisam ser planejadas com muita responsabilidade e ética, uma vez que o espaço da urbe é um território plural, com diversas facetas, oriundas de um processo histórico comum e bastante desigual.

É certo que as desigualdades são traços da natureza humana, sendo utópico falar em sua superação absoluta. No entanto, devemos sempre pensar e empreender melhorias que possam trazer mais conforto e dignidade ao maior número de pessoas. Nesse sentido, o conforto é o principal objeto por traz da realização do princípio da dignidade da pessoa humana. Não estamos a destacar o conforto em termos mercadológicos, próprios de processos de acumulação de capital, mas da fruição de condições mínimas de bem-estar, sem as quais não poderíamos sequer efetivar outros direitos. Nessa perspectiva até arriscaria afirmar que o direito ao conforto humano é um direito fundamental, na mesma linha de raciocínio do direito à felicidade, o qual, inclusive, já foi até objeto de proposta de emenda à constituição (PEC n° 19, de 2010), de autoria do senador Cristovam Buarque [1] .

Segundo Le Corbusier, em obra que comenta a Carte de Atenas [2] , as cidades são só uma parte de um conjunto econômico, social e político que constitui a região. Trata-se de apenas um dos aspectos da discussão proposta na Carta de Atenas, mas que tem total pertinência com o recorte que propomos nessas sucintas linhas. Sendo assim, não podemos deixar de enxergar a cidade na perspectiva regional, tendo em vista que os quadros urbanos das grandes áreas metropolitanas brasileiras são realidades conturbadas e que, portanto, precisam de um planejamento integrado que leve em consideração o atendimento das necessidades básicas dos diversos grupos sociais que se estabelecem em seus territórios.

Segundo a já referida Carta de Atenas, as cidades precisam cumprir, no mínimo, quatro funções sociais, a saber: 1) habitação; 2) trabalho; 3) circulação, e 4) recreação. Tais funções representam o modelo-base que influenciou as políticas de planejamento e de gestão na maior parte das cidades da contemporaneidade. Frise-se, no entanto, que com a 'nova Carta de Atenas' de 2003, percebeu-se a necessidade de repensar as funcionalidades urbanas para acrescentar a perspectiva das cidades conectadas, que trouxe a proposta de interligação entre cidades pequenas e grandes cidades. A nova discussão propõe ainda que haja equilíbrio social, incluindo pessoas e comunidades, tudo com o objetivo de combater problemas como acessibilidade, educação, saúde e outros bens sociais. Por fim, convém também asseverar que citado documento prega novas estruturas sociais e econômicas que possibilitem reduzir a ruptura social causada pela exclusão, pobreza, desemprego e criminalidade.

Pautado nesse último aspecto, ou seja, na questão da criminalidade, podemos anotar que este tem grande influência sobre a não apropriação do espaço públicos por parte da população que ali reside. Isolando-se intramuros, os habitantes das grandes cidades brasileiras, quando podem, abandonam espaços de convívio e de integração. Tal fato traz inúmeros reflexos e prejuízos à funcionalidade urbana e também à psique humana.

Nesse aspecto, pode-se afirmar que a cidade partida ou fragmentada, que faz aflorar o individualismo isolacionista tem como principal fato motivador a ausência de segurança e a explosão da criminalidade, que aliado ao desejo de exclusividade da classe média e da classe média alta, favorece a proposta dos condomínios fechados. Tal fato tem feito com que inúmeras famílias se esforcem ao máximo para viver nesses 'ambientes controlados', os quais contam com uma administração privativa. Sabe-se, por óbvio, que nem todos terão condições de "escapar" da falência do estado em garantir um mínimo de segurança pública. Infelizmente, muitos ficam à mercê da sorte, estando muito mais vulneráveis à criminalidade urbana.

Claro que não podemos nos conformar com tal realidade. As populações das cidades têm o direito de usufruir de todas as funcionalidades urbanas e, desta forma, desfrutar de livre acesso aos bens e equipamentos (públicos e privados), indispensáveis à sua realização humana.

E quanto aos espaços públicos de convivência, como as praças? O que fazer para que voltem a ter o protagonismo social e de lazer de outrora? Tais espaços precisam conquistar a confiança da população, que precisa sentir que aqueles são ambientes agradáveis e seguros. As 'praças virtuais', ou seja, as redes sociais, além de um passatempo ou de uma fonte de informações (e também de fake news), contribuem para o isolamento diário de muitas pessoas, que mesmo nos finais de semana se limitam a navegar pela internet. Destaque-se que o quadro da pandemia (ainda em curso) agravou ainda mais a realidade ora descrita.

A grave crise de segurança pública no Brasil é tão intensa que faz do simples ato de caminhar em espaços públicos uma aventura repleta de perigos. Percebe-se então, nessas breves linhas, que uma mudança de cultura e de mentalidade precisa ser gerada. Com vistas a execução de tal missão, o Poder Público precisa fazer a sua parte, integrando às políticas de segurança pública (combate ao crime organizado, combate ao tráfico de drogas, realização de policiamento ostensivo, criação de postos fixos para o policiamento nos espaços públicos) outras políticas públicas, como: a) as que favoreçam a geração de emprego e renda; b) as que ampliem a oferta e o acesso cursos e capacitações para populações de baixa renda, com estímulo ao empreendedorismo social; c) as que melhorem as estruturas urbanísticas em comunidades vulneráveis (estabilidade geológica dos terrenos, saneamento ambiental, regularização fundiária urbana, requalificação ou renovação urbana, etc.); d) as que elevem a competitividade territorial (melhorias urbanísticas e de mobilidade) em Áreas de Especial Interesse Social (Aeis) ou Zonas de Especial Interesse Social (Zeis); entre outras ações, as quais devem ser executadas de forma  concomitante, até onde o orçamento público comportar (princípio da reserva do possível).

Temos a certeza de que somente políticas integradas como essas são capazes de gerar um quadro de transformações urbanísticas aptas a elevar o status de realização de direitos fundamentais nos espaços urbanos.

Na visão do sociólogo e filósofo francês Henri Lefebvre, em apertada síntese, o direito à cidade é o direito que todos os segmentos sociais têm ao usufruto das funções sociais das cidades. Ao colocarmos o questionamento: cidade para quem? A resposta deve ser: para todos. Sabe-se que atender todas as necessidades não é tarefa fácil. No entanto, tal dificuldade não pode, jamais, paralisar projetos que intentem elevar o grau de realização de direitos fundamentais no espaço urbano.

Todos têm direito a um espaço urbano multifuncional, inclusivo, smart e sustentável, tanto as elites quanto as populações de baixa renda, uma vez que são atores reais no quadro de estados capitalistas. No entanto, a tensão entre tais agentes deve ser dirimida e mitigada pelo Estado, sempre visando a harmonia social e a amplificação do alcance e realização de direitos sociais e econômicos, sem descuidar, por óbvio, dos aspectos ambientais, base do próprio direito à vida.

 


[1] Maiores informações disponíveis em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/97622. Acesso em 20 de dezembro de 2021.

[2] CORBUSIER, Le. A carta de atenas. São Paulo: Hucitec, 1993.