Diário de Classe

Para o Natal: mais uma vez integridade

Autores

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

  • Maicon Crestani

    é doutorando em Direito Público na Unisinos-RS e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

25 de dezembro de 2021, 9h15

"Viremo-nos para o segundo exemplo de experiência que mencionei, a saber, a reconciliação. É uma das mais profundas experiências que os homens fazem, pois, na experiência da recon-ciliação, apresenta-se algo da verdadeira historicidade interna do homem; portanto, da possibilidade do seu crescimento interior. É esse, de fato, o segredo da reconciliação: onde quer que exista a desunião, a desavença e a cisão, onde entre nós estivermos divididos, onde a nossa convivência se desfez, quer se trate de um Eu ou Tu, ou de uma pessoa e a sociedade, ou eventualmente do pecador e da Igreja – em toda a parte experimentamos que, com a reconciliação, um mais entra no mundo. Só através da reconciliação se pode superar a alteridade, a ineliminável alteridade, que separa o homem do homem e se eleva, sim, à admirável realidade de uma vida e de um pensamento comuns e solidários. Por isso, a mensagem cristã anuncia que somente através da aceitação da mais extrema reconciliação, a do crucificado – e esta aceitação chama-se fé – se vence a mais extrema alteridade da mortalidade, do estar votado à morte."[1][2]

Oferecemos essa coluna ao professor Lenio Streck. Finais de ano servem para refletirmos sobre tudo o que fizemos e tudo aquilo que queremos realizar ou transformar no mundo. Ainda essa semana o professor Lenio fez seus pedidos de natal[3] e podemos sintetizá-los em um grande eixo central: a busca pela integridade no Direito. Tendo em vista que hoje é Natal, pretendemos revisitar o romance em cadeia e o interpretativismo , a partir do exemplo literário trazido por Dworkin em o Império do Direito. Na verdade, a alegoria literária do Scrooge, de Um Conto de Natal, de Dickens, como bem coloca o querido professor Douglas Pinheiro, foi utilizada ainda em 1982, quando da publicação do artigo "De que maneira o direito se assemelha à literatura", que posteriormente virou o famoso cap. 6 do livro Uma questão de princípio.

A concepção dworkiniana do Direito como integridade iluminou o debate jurídico, porque permitiu uma leitura mais rica sobre este fenômeno, em resposta ao convencionalismo e ao pragmatismo. Afinal, "o direito como integridade deplora o mecanismo do antigo ponto de vista de que 'lei é lei', bem como o cinismo do novo realismo[4]." Com razão, é sob o império do Direito que a democracia se estabelece, porquanto se assenta no compartilhamento de princípios intersubjetivos. Isso quer dizer, a pressuposição de padrões normativos extraíveis das práticas e instituições sociais a partir da melhor interpretação possível naquele momento.

Com base na obra Um conto de natal, Dworkin exemplifica o desenvolvimento de sua concepção interpretativa, que consiste na figura do romance em cadeia. Para ele, o Direito é uma prática interpretativa, melhor compreendida a partir de uma analogia da prática jurídica com o projeto de um romance em cadeia, escrito por um grupo de romancistas que, cada um a sua vez, deve escrever um novo capítulo de forma a criar o melhor romance unificado possível[5].

Quanto à figura de Scrooge, ele surge para que a partir de seu caráter, façamos o exercício reflexivo acerca das possíveis interpretações relacionadas  com o contexto da narrativa. Questiona-se: ele nasceu mau ou, ao contrário, nasceu bom, mas foi corrompido pelo capitalismo? Podemos mudar de interpretação conforme o decorrer da história? Como proceder, então, se afirmamos que de fato existem respostas corretas e, ao mesmo tempo, que elas podem se transformar?

Há muitos fatores que podem surgir nesse exercício interpretativo, mas merece ser explorado o questionamento de qual interpretação torna a obra melhor "como um todo", após realizadas as questões de ajuste, de ordem formal e estrutural. E, nesse sentido, é preciso lembrar que integridade e interpretação estão particularmente relacionadas na teoria dworkiniana. Tal relação se dá a partir da epistemologia desenvolvida pelo autor em que ele reconhece, de um lado, a normatividade pressuposta na compreensão e aplicação de conceitos jurídicos e, de outro, a necessidade de coerência entre os mesmos. Estes são alguns aspectos do holismo proposto por Dworkin em seus textos: a ideia de que nossas concepções jurídicas, morais e políticas devem fortalecer-se mutuamente.

Nesse sentido, trazemos de volta a importância da reconciliação de que fala Gadamer na epígrafe desta coluna. Afinal, re-conciliar é retomar a unidade perdida, trazer novamente a harmonia entre as partes. Nisso reside, para o próprio Gadamer, a ideia do clássico na literatura: reapresentar aquilo que é comum, apesar das diferenças históricas e culturais. Podemos traçar, portanto, um paralelo com Dworkin. A integridade, como delineado acima, significa, no Direito, aquilo que é compartilhado, intersubjetivo.

Fazemos, então dos pedidos do professor, os nossos. Sabemos que o elemento fantasmagórico utilizado em Um Conto de Natal buscava, por fim, passar uma mensagem de grande significado: generosidade, caridade e por que não reconciliação?.  Assim, numa palavra final, como bem refere Dickens , "Que eles possam assombrar a casa de vocês de forma agradável e que ninguém queira se livrar deles"[6]. Os fantasmas da vida real são os desafios interpretativos com os quais nos deparamos seja na atividade jurídica ou não. Por isso neste ano, fazemos votos de reconciliação e integridade!

 


[1] GADAMER, Hans-Georg. O elogio da teoria. Lisboa: Edições 70, 2001. p. 20-21

[2] Agradecemos ao colega Luã Jung que, ao revisar o texto, lembrou desta passagem que nos serve de epígrafe, afinal, Gadamer nunca é demais.

[3] Coluna disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-23/senso-incomum-papai-noel-nao-esquece-falar-fux-pautar-juiz-garantias

[4] DWORKIN, R. O império do Direito. 3.a ed ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 274.

[5] MORBACH, Gilberto; BERNSTS, Luísa. Justiça para artesãos: Ronald Dworkin e a renovação da tradição a partir do direito como literatura. Disponível em: http://seer.rdl.org.br/index.php/anacidil/article/view/365

[6] Dickens, Charles. Prefácio de Um Conto de Natal.

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