Reflexões Trabalhistas

A discriminação vedada pela Constituição Federal e pela lei ordinária

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24 de dezembro de 2021, 8h00

A estabilidade no emprego, que já foi consagrada pela Consolidação das Leis do Trabalho, para os empregados com dez ou mais anos de trabalho ao mesmo empregador, como asseguravam o artigo 492 e seguintes, restou superada como garantia geral, inicialmente pela Lei  5107/1966, que introduziu o fundo de garantia do tempo de serviço, e posteriormente, pelo texto do artigo 7º, I e III, da Constituição Federal.

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Não obstante, com autorização da lei maior, o legislador criou hipóteses de estabilidade em situações específicas, que justificam o tratamento diferenciado. No caso do empregado portador de deficiência, sua dispensa só é lícita se outro empregado em iguais condições for admitido, em substituição.  Caso contrário o ato empresarial deverá ser considerado ilícito à luz da determinação legal.

Veja-se a propósito acórdão da 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, da relatoria do ministro Maurício Godinho Delgado (Proc. TST 221-20.2016.5.05.0531):

"RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014 E ANTERIOR À LEI 13.467/2017. 1. PESSOA COM DEFICIÊNCIA. PROTEÇÃO LEGAL AO EMPREGADO. LIMITAÇÃO AO DIREITO POTESTATIVO DO EMPREGADOR DE RESILIR UNILATERALMENTE O CONTRATO DE TRABALHO. ARTIGO 93 DA LEI 8.213/91. SISTEMA DE COTAS E CONDICIONAMENTO DA DISPENSA À CONTRATAÇÃO DE SUBSTITUTO EM CONDIÇÃO SEMELHANTE. REINTEGRAÇÃO DEVIDA. A Constituição Federal de 1988, em seus princípios e regras essenciais, estabelece enfática direção normativa antidiscriminatória. Ao fixar como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), o Texto Máximo destaca, entre os objetivos da República, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, IV). A situação jurídica do obreiro com deficiência encontrou, também, expressa e significativa matiz constitucional no artigo 7º, XXXI, da CF, que estabelece a 'proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência'. Logo a seguir ao advento da então nova Constituição Federal, o Brasil ratificou a Convenção nº 159 da OIT (Decreto Legislativo n. 129/91), que estipulou, em seu artigo 1º, item 2, que 'todo país membro deverá considerar que a finalidade da reabilitação profissional é a de permitir que a pessoa deficiente obtenha e conserve um emprego e progrida no mesmo, e que se promova, assim, a integração ou a reintegração dessa pessoa na sociedade'. A legislação previdenciária (Lei nº 8.213/91), no intuito de dar efetividade a tais preceitos, agregou restrição indireta à dispensa de empregados com necessidades especiais ou que estejam em reabilitação funcional: estipulou um sistema imperativo de cotas, entre 2% e 5%, no caput do artigo 93, e, visando a garantir a máxima efetividade à cota de inclusão social, determinou que o obreiro portador de deficiência ou beneficiário reabilitado somente poderia ser dispensado mediante a correlata contratação de outro trabalhador em situação semelhante (artigo 93, §1º, da Lei 8.213/91). Trata-se, portanto, de norma autoaplicável, que traz uma limitação ao poder potestativo do empregador, de modo que, uma vez não cumprida a exigência legal, devida é a reintegração no emprego, sob pena de se esvaziar o conteúdo constitucional a que visa dar efetividade. Com efeito, o caput do artigo 93 da Lei n.º 8.213/91 tem por finalidade promover a inclusão da pessoa humana com deficiência e/ou reabilitada. Esta é a norma geral, que realiza a teleologia da Constituição e dos diplomas internacionais ratificados. Já o disposto no §1º do mesmo artigo estabelece, sim, uma forma indireta de se criar uma garantia provisória de emprego aos trabalhadores com necessidades especiais já contratados, ao impor ao empregador a contratação de empregado substituto em condição semelhante, na hipótese de dispensa de trabalhador reabilitado ou deficiente, sempre objetivando ser mantido o percentual estabelecido no caput do artigo. Nessa lógica, conclui-se que o cumprimento da exigência estabelecida no §1º do artigo 93 da Lei 8.213/1991 não afasta a obrigação de observância da regra geral disposta no caput do referido artigo. Aliás, a implementação da contratação substitutiva tem como objetivo justamente a manutenção permanente da reserva de vagas para os trabalhadores com deficiência, conteúdo substancial da norma em comento. A propósito, a jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que a dispensa de trabalhador portador de deficiência e/ou reabilitado está condicionada ao preenchimento dos requisitos dispostos no caput e §1º do artigo 93 da Lei 8.213/1991. No caso dos autos, o Tribunal Regional reformou a sentença por entender que a previsão legal contida no artigo 93, §1º, da Lei 8.213/1991, não confere garantia individual ao trabalhador reabilitado ou com deficiência, concluindo que, 'ocorrendo a despedida imotivada sem que providencie a empresa o preenchimento da cota de deficiente nos termos fixados por lei, não tem o empregado direito a ser reintegrado no emprego, justamente pela total ausência de suporte no ordenamento jurídico vigente'. Todavia, extrai-se da decisão recorrida que a Reclamada não comprovou que, com a dispensa do Reclamante, houve a contratação de outro empregado em condição semelhante, tampouco que a cota imposta pelo artigo 93, §1º da Lei 8.212/1991 estava preenchida. Portanto não pode prevalecer a interpretação da Corte de origem atribuída ao caso, de modo que a nulidade da dispensa sem juta causa do Reclamante, pessoa com deficiência, consoante fundamentação supra, é medida que se impõe. Recurso de revista conhecido e provido quanto ao tema. 2. DISPENSA INDEVIDA DO EMPREGADO REABILITADO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. A conquista e afirmação da dignidade da pessoa humana não mais podem se restringir à sua liberdade e intangibilidade física e psíquica, envolvendo, naturalmente, também a conquista e afirmação de sua individualidade no meio econômico e social, com repercussões positivas conexas no plano cultural  o que se faz, de maneira geral, considerado o conjunto mais amplo e diversificado das pessoas, mediante o trabalho e, particularmente, o emprego. O direito à indenização por dano moral encontra amparo no artigo 5º, V e X, da Constituição da República, e no artigo 186 do CCB/2002, bem como nos princípios basilares da nova ordem constitucional, mormente naqueles que dizem respeito à proteção da dignidade humana, da inviolabilidade (física e psíquica) do direito à vida, do bem-estar individual (e social), da segurança física e psíquica do indivíduo, além da valorização do trabalho humano. O patrimônio moral da pessoa humana envolve esses bens imateriais, consubstanciados, pela Constituição, em princípios fundamentais. Afrontado esse patrimônio moral, em seu conjunto ou em parte relevante, cabe a indenização por dano moral, deflagrada pela Constituição de 1988. Na hipótese, depreende-se, do acórdão regional, o descumprimento pela Requerida do percentual mínimo previsto no caput do artigo 93 da Lei 8.213/1991, bem como a dispensa de empregado portador de deficiência sem a contratação de outro na mesma condição. Verifica-se, portanto, que a conduta da Reclamada é considerada ilícita (art. 186 do CCB), pois contraria a ordem jurídica nacional, consubstanciada nos fundamentos (art. 1º, caput, III) e também objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (artigo 3º, caput, IV), consoante decisões desta Corte Superior que perfilham da mesma diretriz. Recurso de revista conhecido e provido quanto ao tema."

Como decidiu a Corte Superior, ao contrário do que afirmou a instância recorrida, o ato da empresa resultou ilegal, tendo sim fundamento jurídico a postulação inicial. Não se olvide que o ordenamento jurídico reclama interpretação harmônica e coerente de todas as normas que o compõem.

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