Licitações e Contratos

Alocação de riscos e revisão dos contratos: diálogo mais que competitivo

Autor

  • Guilherme Carvalho

    é doutor em Direito Administrativo mestre em Direito e políticas públicas ex-procurador do estado do Amapá bacharel em administração sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

24 de dezembro de 2021, 8h00

Um dos pontos mais discutíveis nos contratos firmados com a Administração Pública está relacionado à repartição dos riscos, sobretudo quando a instabilidade do mercado impõe modificações nas cláusulas previamente firmadas. Nota-se, por parte do legislador, um contundente empenho quanto à mitigação dos riscos que podem comprometer a exequibilidade do negócio jurídico firmado.

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Nesse sentido, a Lei nº 14.133/2021 enaltece a matriz de riscos como medida que antepara — e atalha — quaisquer possibilidades de reequilíbrio dos contratos, como se a fixação de riscos preestabelecidos extirpasse a modificação da estrutura contratual. No imaginário normativo, uma vez conhecidos os riscos, esses devem constar no contrato, distribuindo as áleas correlativamente às partes contratantes, na jactanciosa intenção de conter as modificações que decorrem do reequilíbrio. Tudo não passa, todavia, de uma incisiva ilusão.

Adiante-se que a matriz de riscos é algo deveras simples de explicar, difícil de aplicar e de duvidoso aproveitamento, porquanto fantasia e hiperboliza o mito do planejamento nas contratações públicas, notadamente no processo licitatório, tema esse que já foi objeto de outro artigo escrito aqui nesta mesma coluna.

Sobre o tema, o inciso XXVII do elucidativo artigo 6º (e respectivas alíneas) da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos dispõe:

"Art. 6º — Para os fins desta Lei, consideram-se:
XXVII – matriz de riscos: cláusula contratual definidora de riscos e de responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação, contendo, no mínimo, as seguintes informações:
a) listagem de possíveis eventos supervenientes à assinatura do contrato que possam causar impacto em seu equilíbrio econômico-financeiro e previsão de eventual necessidade de prolação de termo aditivo por ocasião de sua ocorrência;

b) no caso de obrigações de resultado, estabelecimento das frações do objeto com relação às quais haverá liberdade para os contratados inovarem em soluções metodológicas ou tecnológicas, em termos de modificação das soluções previamente delineadas no anteprojeto ou no projeto básico;
c) no caso de obrigações de meio, estabelecimento preciso das frações do objeto com relação às quais não haverá liberdade para os contratados inovarem em soluções metodológicas ou tecnológicas, devendo haver obrigação de aderência entre a execução e a solução predefinida no anteprojeto ou no projeto básico, consideradas as características do regime de execução no caso de obras e serviços de engenharia."

A significação da matriz de riscos definida pela norma é, por si só, complexa e delongada. Entretanto, desatenta-se, por completo, da imprevisibilidade, fenômeno sobre o qual nenhuma das partes pode infundir presciência. Logo, ao conceito de matriz de riscos se combinam outras regras, designadamente a norma constante no artigo 124, I, "d", da Lei nº 14.133/2021, que alberga a possibilidade de alteração contratual por consenso entre as partes quando se avizinha a imprevisão.

"Art. 124. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
II – por acordo entre as partes:

d) para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado, respeitada, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco estabelecida no contrato."

O dispositivo legal acima mencionado testifica a Teoria da Imprevisão, agregando ao contrato a possibilidade de alteração, que se opera, no mais das vezes, por meio da revisão, exclusive se houver a previsão contratual expressa de cláusulas sobre as quais as partes desejaram não aplicar qualquer mutabilidade.

Ocorre que a possibilidade de modificações contratuais emana justamente do que as partes não dispuseram preteritamente, pelo que, por mais esse motivo, a matriz de riscos não impede o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Assim fosse, aniquilar-se-ia a Teoria da Imprevisão e a cláusula rebus sic stantibus, proporcionando uma indesejada onerosidade excessiva para uma das partes.

Mais que isso, a consensualidade estampada no texto da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, seja no artigo 124, II, "d", seja, maiormente, no parágrafo único do artigo 151, oportuniza o reequilíbrio sempre que haja a necessidade de implementá-lo, sob pena de enriquecimento de uma das partes (o Poder Público contratante), o que é vedado pela Constituição Federal Brasileira de 1988 (artigo 37, XXI).

Quando a Lei imprime ao reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos a natureza jurídica de direito patrimonial disponível, podendo, portanto, ser objeto de consensualidade entre as partes, nem mesmo a existência da matriz de riscos impede que o contrato seja reequilibrado, a despeito da existência da norma prevista no § 5º do artigo 103 da Lei nº 14.133/2021.

Tal linha de raciocínio decorre, também, da redação encontrada no artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), cabendo ao administrador público avaliar as consequências práticas da decisão. Dito de outro modo, pertence à esfera discricionária da Administração Pública reequilibrar ou não o contrato, avaliando a sua exequibilidade.

Assim sendo, verificada a existência de condições que autorizem a alteração das cláusulas contratuais, é dever da Administração possibilitar que o contratado execute o objeto do contrato, calculando os efeitos práticos da decisão, em homenagem à norma disposta no caput do art. 20 da LINDB.

Para além de tudo, o referido § 5º do artigo 103 é enfático ao afirmar que somente se considera mantido o equilíbrio econômico-financeiro quando atendidas as condições do contrato e a alocação de riscos. A conjunção aditiva utilizada pelo legislador propõe uma combinação de dois fatores para que se pressuponha satisfeito o equilíbrio econômico-financeiro, fatores esses que não se reduzem à matriz de riscos, eis que, igualmente, é imperiosa a necessidade de atendimento das condições do contrato.

Dito isso, não se pode conceber como atendidas as condições do contrato quando há manifesto desequilíbrio causado por um evento que desestabilize a avença originariamente formada. Portanto — e avançando ainda mais nessa linha de argumentação — mesmo existindo a matriz de riscos, se os efeitos decorrentes do risco (ainda que constante do contrato) forem superiores à álea que pode ser suportada pelo contratado, o reequilíbrio deve ocorrer, mantendo as condições da proposta e do próprio contrato.

De mais a mais, matriz de riscos não pode ser interpretada como um bloqueio para a alteração do contrato. Ou seja, matriz de riscos jamais pode ser entendida como elemento impeditivo do reequilíbrio dos contratos firmados com a Administração Pública. O estabelecimento dos riscos no contrato — e a consequente distribuição dos riscos previamente diagnosticados — serve à segurança da relação contratual e não à paralisação da execução do contrato.

O contrato como operação econômica pressupõe riscos para ambas as partes e, por esse motivo, é louvável o empenho normativo em distribuir tais riscos entre as partes contratantes. No entanto, a existência da matriz de riscos jamais pode inibir a principal função do contrato, que reside na sua fiel execução. Pensar em sentido contrário é possibilitar um diálogo entre a alocação de riscos e o reequilíbrio dos contratos não consensual e, indesejavelmente, destrutivo. Nomeadamente, esse diálogo não pode ser competitivo!

Autores

  • é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do estado do Amapá, bacharel em Administração, sócio-fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

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