Opinião

Decisão de Fux no caso Kiss está calcada em farta legislação e jurisprudência

Autor

  • Sauvei Lai

    é promotor de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro (desde 1999) membro-auxiliar da Procuradoria-Geral da República perante os Tribunais Superiores (desde 2021) mestrando (desde 2022) pós-graduado professor e autor de artigos jurídicos.

23 de dezembro de 2021, 18h09

I. Dos fatos
1. Na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, uma catástrofe se abateu em Santa Maria (RS) e no Brasil com o incêndio da boate Kiss, que resultou na morte de 242 pessoas e no ferimento de outras 636, em sua maioria jovens.

2. Após quase oito anos e a interposição de vários recursos pelos advogados de defesa, em 10 de janeiro de 2021 quatro réus foram condenados por homicídio doloso, ainda que eventual, pelo Tribunal do Júri gaúcho.

3. Na sentença, o juiz destacou: (1) a motivação dos réus, que promoveram inadequadamente um espetáculo pirotécnico, a fim de potencializar o lucro econômico em detrimento da segurança do público; (2) o intenso sofrimento das vítimas, que demoraram de 3 a 5 minutos, em média, para morrer queimadas e sufocadas; (3) a idade delas, como dito, a maioria jovem, ceifando de forma tão tenra sonhos, planos e expectativas; (4) as consequências gravosas que desabaram sobre a cidade, os familiares e os sobreviventes, com o desenvolvimento de doenças psiquiátricas, submissão a extenuantes cirurgias, surgimento de sequelas e cicatrizes, além dos casos de suicídio, dentre outras tragédias; e (5) o comportamento dos réus depois do início do incêndio, que fugiram levando os seus equipamentos, ao contrário de algumas vítimas, que, mesmo já em segurança, retornaram à boate para salvar pessoas e morreram heroicamente.

II. Ineficiência do Tribunal do Júri brasileiro
4. A título de esclarecimento, em 2019, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) constatou que somente 65% das ações são julgadas, no mérito, pelo Tribunal do Júri, seja para condenar o réu, seja para absolvê-lo.

5. Em outras palavras, 35% são extintas sem o julgamento do mérito, em regra, pela prescrição ou pelo óbito do réu.

6. E, quando há o julgamento, sabe-se que a demora leva anos, como no caso emblemático do jornalista Pimenta Neves.

7. No caso da boate Kiss, é importante notar que os advogados dos réus interpuseram vários recursos em face da decisão de pronúncia (recurso em sentido estrito, embargos infringentes e recurso especial, entre outros), atendendo-se ao primado da ampla defesa e do contraditório.

8. De outra sorte, vale lembrar que a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, a quem agora se dirigem os advogados dos réus do processo da boate Kiss, condenou o Brasil anteriormente (vide Ximenes Lopes versus Brasil) por insuficiência de salvaguarda dos interesses da vítima, em outras palavras, por descumprimento do princípio da vedação da proteção deficiente pelo Estado.

III. Do pano de fundo jurídico
9. A execução imediata do veredito condenatório, com o recolhimento dos réus à prisão, está legalmente prevista no artigo 492, I, "e", do Código de Processo Penal (CPP).

10. Apesar dos debates acadêmicos e jurisprudenciais, a constitucionalidade do dispositivo (artigo 5°, LVII), em cotejo com o princípio da presunção de inocência, está sendo julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no RE 1.235.340/SC (tema 1.068), com dois votos favoráveis (min. Luís Barroso e Dias Toffoli) contra um (ministro Gilmar Mendes), até o momento.

11. Aliás, rememore-se que o ministro Dias Toffoli, que votou contra o cumprimento antecipado da condenação em segunda instância, no julgamento do ADC 43 se limitou a considerar o art. 283 (que impede tal possibilidade) constitucional, deixando claro que poderia estabelecer a execução imediata de condenações, se o legislador infraconstitucional assim o desejasse.

12. Ademais, a problemática é tão tormentosa que recebeu três soluções distintas pelo próprio STF em breve intervalo de tempo, justamente em função da complexidade da questão.

13. De outra sorte, embora a execução antecipada da condenação pelos jurados e do acórdão condenatório de segunda instância proferido por desembargadores sejam temas parecidos, não são exatamente iguais por causa das especificidades do Tribunal do Júri, ou seja, da soberania constitucional dos vereditos dos jurados (artigo 5°, XXXVIII), algo que os julgadores togados não possuem, e em razão da impossibilidade de reforma da decisão da Corte Popular pelo Tribunal de Apelação, que só pode cassar uma única vez, na hipótese de o veredito ser manifestamente contrário às provas dos autos, submetendo o réu a novo julgamento pelo Tribunal do Júri (artigo 593, § 3º, do CPP).

14. Por outro lado, apesar de a alteração do artigo 492 do CPP ser posterior aos fatos ocorridos na boate Kiss, trata-se de lei meramente processual, de modo que não se aplica o princípio constitucional da irretroatividade da lei de natureza penal (artigo 5°, XL).

15. Embora não se desconheça a polêmica no meio jurídico, é preferível se adotar o princípio da incidência imediata da norma processual, previsto no artigo 2° do CPP.

16. Finalmente, não se pode perder de vista que o TJ gaúcho, ao rejeitar a aplicação do artigo 492 do CPP, na prática, considerou tal dispositivo inconstitucional, em franco desrespeito ao princípio da reserva do Plenário, reclamado pelo artigo 97 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88) e pela Súmula Vinculante 10.

17. Descumprida a súmula vinculante do STF, o artigo 102, I, "l" da CR/88, possibilita o ajuizamento de reclamação pelo MP-RS para essa Corte.

IV. Da possibilidade de suspensão de liminar pelo presidente do Supremo Tribunal Federal
18. Em havendo risco de grave lesão ao interesse público e um juízo mínimo de plausibilidade do fundamento jurídico invocado pelo Ministério Público (MP) gaúcho, a legislação e a jurisprudência pacífica, gostemos ou não, autorizam a suspensão da liminar impugnada, inclusive a decorrente de Habeas Corpus concedido, como na hipótese, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), atribuindo essa tarefa ao Presidente do Tribunal que julgará o recurso ou a reclamação, no caso, o ministro Luiz Fux do STF.

19. Basta a leitura do artigo 25 da Lei n° 8.038/90, do artigo 4º da Lei n° 8.437/1992, do artigo 15 da Lei n° 12.016/09 e do artigo 297 do Regimento Interno do STF, além da Suspensão de Liminar 453 de 2010 dessa Corte, entre outros precedentes.

20. Por sinal, o artigo 4°, § 8° da Lei n° 8.437/1992 permite que a suspensão da liminar tenha efeitos prospectivos até o julgamento do mérito da ação principal, como determinou o ministro Luiz Fux.

V. Da petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
21. Na petição dirigida à CIDH, a alegada violação da súmula 691 do STF pelos advogados dos réus, que veda o exame de HC impetrado no STF contra o indeferimento de liminar de HC por uma Corte inferior, não é causa de nulidade, pois não guarda semelhança com a hipótese. Ademais, a sua obediência é excepcionada pelo próprio STF em diversas ocasiões, como no HC 96.415/DF.

22. Tampouco há transgressão do artigo 7.6 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), que impede a suspensão de HC, porque a suspensão liminar em apreço cinge-se àquele motivo específico, qual seja, a decisão do TJ local que reputou o artigo 492 do CPP inconstitucional, ao arrepio do princípio da reserva do Plenário.

23. Por derradeiro, argumenta-se que existiu violação da presunção de inocência e do duplo grau de jurisdição, porém o artigo 8.2 da CADH estabelece que "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa".

24. Na hipótese, o Tribunal Popular, competente e soberanamente, nos termos constitucionais e legais, considerou as provas e reconheceu a culpa dos réus, condenando-os.

25. Além disso, a execução imediata do veredito condenatório não obsta a interposição de apelação com pedido defensivo de efeito suspensivo, o que, em tese, permite aos réus responderem em liberdade, desde que o recurso não seja protelatório e os advogados demonstrarem a plausibilidade de sua tese, na forma do § 5º do artigo 492 do CPP.

26. Em suma, independente do acerto ou não da decisão do STF, o que não se discute aqui, reconhece-se que ela está calcada em farta legislação e jurisprudência, devendo o inconformismo das partes ser objeto dos recursos jurídicos cabíveis, evitando-se eventual exploração política e maniqueísta, uma vez que não há respostas simplistas às complexidades postas no caso.

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