Controvérsias Jurídicas

Promotor natural e atuação dos grupos especiais

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

23 de dezembro de 2021, 8h00

A Constituição Federal dispõe que o Ministério Público é instituição autônoma e permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Inserido no capítulo das Funções Essenciais à Justiça [1], o MP foi dotado de prerrogativas e garantias imprescindíveis à correta e eficiente defesa da sociedade.

Conforme dispõe o artigo 127, § 1º, da CF, são princípios institucionais expressos do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. Unidade significa que o Ministério Público é um só órgão, sob única direção, com atuação coesa e coerente com a doutrina institucional definida impessoalmente pelos órgãos superiores colegiados. Indivisibilidade diz respeito à possibilidade de substituição de um membro por outro, dentro dos critérios legais, sem que haja solução de continuidade na atuação. Independência funcional, por sua vez, significa liberdade de convicção, ou seja, no exercício de sua atividade, o membro do Ministério Público presta contas à lei e à sua consciência.

Além desses princípios, a atuação do Ministério Público também encontra fundamento no princípio do Promotor Natural, definido por Hugo Nigro Mazzilli como: "(…) decorrência do princípio da independência funcional. Consiste na existência de um órgão do Ministério Público investido nas suas atribuições por critérios legais prévios" [2]. É o oposto ao promotor de exceção, de encomenda, designado especificamente para acusar determinado cidadão. Ruy Barbosa enxergava neste princípio uma garantia constitucional, destinada a "manter os poderes no jogo harmônico de suas funções, no exercício contrabalanceado e simultâneo das suas prerrogativas" [3].

Na CF de 1988, está previsto no artigo 5º, LIII, segundo o qual: "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente". Trata-se de garantia individual do cidadão de que somente será processado por autoridade, cuja atribuição esteja previamente fixada por regras gerais, abstratas e impessoais. Não tem cabimento no regime democrático a designação específica de membro do MP para acusar pessoa determinada.

Os requisitos essenciais do princípio do promotor natural, são: a) investidura no cargo mediante concurso público; b) regras objetivas e impessoais fixando previamente a atribuição do órgão de execução; c) lotação por titularidade e inamovibilidade do promotor de justiça com atribuição legal.

O promotor natural é, portanto, o oposto do chamado "promotor de encomenda", escolhido arbitrariamente por critérios pessoais e subjetivos para analisar caso específico. A inamovibilidade não teria sentido se dissesse respeito apenas à impossibilidade de se afastar o promotor do cargo: é mister agregar-lhe as respectivas funções — esse o escopo da garantia constitucional [4]. A designação de promotor específico para caso determinado ofende a inamovibilidade, pois desloca do caso, arbitrariamente, o promotor legalmente dotado de atribuição. O promotor natural está protegido de ingerências políticas e tem resguardada sua imparcialidade, assim como a credibilidade da instituição, fundamentais para a tutela do interesse público e social.

O artigo 129, I, CF, garante ao Ministério Público a titularidade privativa para propositura de ações penais públicas, tendo o STF firmado o entendimento de sua legitimidade também para conduzir as investigações criminais nos casos de sua competência [5]: "O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX) (…)".

A possibilidade de o Ministério Público promover investigações deriva da denominada "Teoria dos Poderes Implícitos" (Implied Powers Doctrine), de origem norte-americana e cunhada no caso McCulloch v. Maryland, de 1819, ao afirmar que quando o Texto Constitucional outorga de forma expressa competência a determinado órgão estatal, implicitamente também assegura os meios necessários para sua efetiva realização. Assim, ao analisar a questão dos poderes investigatórios do Ministério Público, entendeu o STF que a denúncia poderia ser fundamentada no chamado Procedimento Investigatório Criminal – PIC [6].

O PIC é um procedimento investigatório criminal, sumário e desburocratizado, de natureza administrativa, instaurado e presidido pelo membro do Ministério Público com atribuição criminal, com a finalidade de apurar a ocorrência de infrações penais de iniciativa pública. Não se trata de condição de procedibilidade ou pressuposto processual para o ajuizamento de ação penal e não exclui a investigação pela Polícia ou outros órgãos legitimados [7].

Excepcionalmente, dependendo da complexidade do caso, o Ministério Público pode designar promotores auxiliares ou grupos especiais para atuar. Em virtude das recomendações do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça (CNPJ), surgiram grupos especializados de atuação para investigação, promoção e acompanhamento de ações penais em situações excepcionais.

Nesse contexto, de acordo com a Lei nº 8.625/1993, Lei Orgânica Nacional do MP, as funções afetas a um órgão somente poderão ser exercidas por outro no caso de concordância do titular, podendo o procurador-geral, sob esta condição, delegar suas funções a grupos ou outro membro do MP [8]. Na mesma esteira, o STF, no julgamento da ADI nº 2.854/DF [9], aplicou a interpretação conforme à Constituição ao preceito, firmando o entendimento de não ser possível ao procurador-geral de Justiça realizar designações arbitrárias, com afastamento compulsório das atribuições legais do membro do Ministério Público dotado de atribuição legal, sob pena de afronta à garantia da inamovibilidade e ao princípio do promotor natural. As avocações/designações estão condicionadas à aceitação do próprio promotor natural, ilidindo a figura do "promotor de encomenda".

No caso dos grupos de atuação especial, estes são designados para atuar de forma coordenada com os órgãos de execução competentes e sua atuação somente ocorrerá por solicitação ou concordância expressa do Promotor de Justiça Natural, mediante designação do Procurador-Geral de Justiça. Como ensina Hugo Nigro Mazzilli "as designações do Procurador-Geral só se podem admitir quando decorram de taxativa hipótese legal, pois, se não, sob a roupagem de mera portaria de designação, poder-se-ia burlar indiretamente a inamovibilidade. Deixando-se o Promotor na Comarca ou na Promotoria, mas suprimindo lhe, senão todas, mas suas principais funções, estar-se-ia facilmente elidindo a garantia constitucional de inamovibilidade, que se refere ao cargo, mas visa substancialmente a proteger a própria função".

O princípio do promotor natural, indissociável da independência funcional, consiste na existência de um órgão independente do Ministério Público, escolhido por critérios legais prévios, e não casuisticamente para o caso concreto, ao qual incumbirá exercer, com liberdade, as atribuições que a lei conferiu à instituição [10]. Protege a sociedade e os membros do Parquet contra ingerências arbitrárias nas atividades do órgão de execução.

Quando o PIC for instaurado no âmbito de um núcleo especializado, deverá ser distribuído livremente a um dos promotores criminais dotado de atribuição legal e somente após sua livre distribuição, caso o promotor escolhido solicite ou concorde, o grupo especializado poderá atuar por designação naquele caso específico [11].

A título de exemplo, citamos o artigo 5º, § 2º, do Ato Normativo nº 554/2008, que institui o Grupo de Atuação Especial de repressão à formação de cartel e à lavagem de dinheiro e recuperação de ativos: "A atuação do Gedec em procedimentos de atribuição de outras Promotorias de Justiça Criminais somente ocorrerá por solicitação do Promotor de Justiça Natural, com designação do Procurador-Geral de Justiça".

Diante do exposto, os Grupos Especiais de Atuação do Ministério Público, antes de iniciar atos investigatórios ou oferecer ação penal, deverão distribuir, por sorteio, o Procedimento de Investigação Criminal (PIC) ao promotor natural, dotado de atribuição legal, de acordo com regras objetivas e impessoais preexistentes, e dele colher concordância para atuação conjunta, sob pena de nulidade absoluta por afronta direta a princípio constitucional do processo penal.


[1] CF/88: artigos 127, 128,129, 130, e 130-A.

[2] O Ministério Público na Constituição de 1988, 4ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 46.

[3] Jaques de Camargo Penteado. O Princípio do Promotor Natural. Justitia, São Paulo, 47 (129): 114-124, abr./jun. 1985

[4] Mazzilli: IV Seminário Jurídico dos Grupos de Estudos do Ministério Público do Estado de São Paulo (RT 494/269, 500/426 e 559/269; "Justitia" 95/175 e 245 e s.).

[5] STF, Tribunal Pleno, RE 593727, rel. min. Cezar Peluso, julgado em 14/05/2015.

[6] RE 535.478, 2.ª T., Rel. Min. Ellen Gracie, j. 28.10.2008, DJE de 21.11.2008.

[7]CNMP: Resolução Nº 181/2017. Dispõe sobre instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público.

[8] Lei nº 8.625/1993, art. 29, IX.

[9] ADI nº 2.854/DF Relator ministro Marco Aurélio, Plenário, 13/10/2020

[10] “A natureza das funções do Ministério Público e sua posição no processo penal”, Revista dos Tribunais, vol. 805, p. 464 (São Paulo, Brasil, Editora Revista dos Tribunais, novembro de 2002).

[11] MPSP: Resolução Nº 554/2008 – PGJ (*Nova denominação dada ao ATO NORMATIVO pelos artigos 1º e 4º da Resolução nº 1.177/2019-PGJ/CGMP/CSMP/CPJ, de 11/11/2019)

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