Opinião

A variante ômicron e a desigual distribuição de vacinas pelo mundo

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22 de dezembro de 2021, 16h17

Historicamente, os efeitos da modernidade e a divisão — não só geográfica, mas político-ideológica  entre os países mais ricos e os países mais pobres são visíveis em diversas situações. A exploração sofrida pelo chamado sul-global, seja através do projeto mercantilista desenfreado sobre os recursos naturais, seja pelo açoite sobre os povos africanos pela escravidão, perdurou por mais de século.

Mesmo com as transformações ao longo dos anos, a pandemia por Covid-19 e o seu enfrentamento chamam a atenção para uma espécie de déjà-vu no que toca o incremento de desigualdades representado pelo não acesso aos esquemas vacinais e à imunização pelo planeta. Renovada, a chamada lógica colonial se espraia vorazmente em sua empresa desigual e desumanizadora [1]. Há flagrante avanço das linhas abissais [2] entre o norte-global e o sul-global em relação à distribuição desigual de vacinas para a população mundial.

Em face disso, o debate mundial tem sido pautado por discussões propositivas pela suspensão temporária de determinadas obrigações, mais conhecidas como waivers no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) [3], no que se refere às patentes das vacinas contra a Covid-19. A ideia que ganha força insere ferramentas antidiscriminatórias em uma perspectiva decolonial, com o objetivo de difundir o acesso vacinal de maneira justa e igualitária no contexto global.

Justamente por isso que vem a questão: para um eficaz combate à pandemia, é suficiente uma interpretação jurídica imbricada às regras comerciais ou é necessário adotar-se uma visão de mundo decolonial e antidiscriminatória? A população mundial tem sofrido as consequências sociais da pandemia pelo vírus Sars-Cov-2, desde o ano de 2020, com restrições de circulação de pessoas e impacto na economia e na saúde pública de todo o planeta.

As consequências disso também são conexas à política pública internacional, o que motiva o Direito na busca de soluções adequadas. Por isso, as demandas por respostas transformativas do quadro descrito são parte da disciplina jurídica do direito antidiscriminatório, como as que são dirigidas às desigualdades na distribuição e aplicação vacinal pelo globo. Quanto maior for a espera por inoculações amplas e igualitárias para enfrentar o coronavírus, com o devido alcance logístico e o acesso pleno ao direito à saúde e às medidas sanitárias, mais tempo a pandemia perdurará. Ou seja, o esforço deve ser solidário e coletivo, atento à toda a população mundial.

O resultado negativo da não chegada dos imunizantes para os países que não compõem o grupo dos mais ricos do mundo, como os que estão no continente africano, está aí. A descoberta da variante ômicron demonstra o quanto a quebra de isonomia com conteúdo discriminatório no que toca à chegada das vacinas atinge não só os vulneráveis, mas toda a humanidade. De nada adiantará que os países do norte-global vacinem as suas populações, assim como será contraproducente uma grande estocagem de doses, enquanto países do sul-global vivem um déficit na chegada das vacinas à população.

Não é em vão que a Organização Mundial da Saúde (OMS), há meses, propõe o acesso universal e igualitário às tecnologias, aos procedimentos e às vacinas, com o seu compartilhamento. Justamente em meio às discussões que adveio a ideia de suspensão temporária (waivers) das patentes sobre os procedimentos vacinais. É necessário ressaltar que a proteção científica e o seu fomento na esfera da propriedade industrial e comercial deve ser preservada. Contudo, o momento demanda medidas excepcionais para atender ao chamado pela proteção à saúde de todos.

Vale lembrar que no âmbito da propriedade intelectual, há mecanismos que viabilizariam a proposta. A proteção comercial da propriedade intelectual é afeita à Organização Mundial do Comércio (OMC), através do Acordo TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) de caráter multilateral e que elabora normas para proteção e sanções comerciais nos padrões de propriedade intelectual. Em seu regramento, o próprio acordo prevê flexibilidade (cláusula de exceção) em sua interpretação [4], principalmente no que se refere ao desenvolvimento de políticas públicas, em que se permita o bem-estar econômico e social através de medidas de proteção à saúde e atentas ao interesse público [5]. Nesse sentido, o contexto social de pandemia vivenciado autorizaria a adoção de waivers.

Como subsídio para fundamentar a flexibilização, uma visão decolonial sobre o problema é relevante para trazer à tona os motivos históricos e sociais que mantêm as desigualdades apontadas. A marcante vulnerabilidade de populações de determinadas localidades e a formação de hierarquias de exclusão são renovadas por séculos [6]. No mapa geopolítico mundial, há marcadores próprios, como os da América Latina e do continente Africano.

Resultado disso são as práticas institucionais colonialistas, cujas formas de dominação são estruturadas em um fluxo centro-periferia de alcance global [7]. Na atualidade, essa dinâmica histórica é novamente experimentada pelo contexto pandêmico na humanidade. Assim, as divisões norte e sul, permeadas por barreiras econômicas e políticas, estabelecem novos obstáculos.

Como se vê, as limitações impostas pela pandemia por Covid-19 atingem a saúde pública em todo o planeta, a permitir a adoção de waivers para o acesso universal às técnicas e procedimentos vacinais. Assim a cobertura da imunização frente a população mundial permitiria não só a defesa de indivíduos e grupos em face do vírus, como, também, uma retomada da vida social e econômica de toda a sociedade mundial. A relação direta entre waivers e os dados econômicos ligados ao progresso científico e propriedade intelectual não deve ser desconexa com aquilo que realmente é o fim da ciência: o impacto nas vidas das pessoas com uma reflexão sobre como melhorar, em concreto, as relações sociais e sem se colocar a lucratividade acima disso. E, pelo sensível quilate do tema, o Direito capta os dados da realidade e propõe abordagens e perspectivas de compreensões inseridas em um ambiente igualitário e democrático.


[1] BRAGATO, Fernanda Frizzo. Discursos desumanizantes e violação seletiva de direitos humanos sob a lógica da colonialidade. In Quaestio Iuris, vol. 09, nº 04, Rio de Janeiro.

[2] SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do sul. Coimbra: CES, 2009.

[4] RODRIGUES, Daniela Oliveira. As flexibilidades do Acordo TRIPS na nova dinâmica comercial internacional in Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 38, p. 11-33 – jan./jun. 2012.

[5] BRASIL, Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994.

[6] SIERRA-CAMARGO, Jimena. La importancia de decolonizar el derecho internacional de los derechos humanos: el caso de la consulta previa en Colombia in Revista Derecho del Estado n.º 39, julio-diciembre de 2017, pp. 137-186.

[7] Idem.

Autores

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    é advogado do escritório Tidra e Silva Advogados, doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bolsista Proex-Capes, mestre em Direitos Humanos pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter), pós-graduado em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

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