Lendo detidamente o artigo 3º da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), verifica-se nitidamente que, para a imputação de crimes ambientais a pessoas jurídicas, é necessário aferir se houve conduta indevida — praticada por dirigente/pessoa qualificada/colegiado dentro daquela organização empresarial — que visava o favorecimento ou benefício da pessoa jurídica.
Trata-se da teoria da dupla imputação, segundo a qual o ente moral, sendo uma ficção jurídica, não pode por si só praticar ações ou crimes. É, sem dúvida, uma forma de garantir o respeito aos princípios da culpabilidade e do nullun crimen sine actio humana, fundamentais à noção da responsabilização subjetiva na seara penal.
O julgamento do Recurso Extraordinário 548.181/PR, pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, teve grande repercussão no meio jurídico, por ter estabelecido parâmetros para a superação da teoria da dupla imputação, permitindo a imputação de crimes a empresas sem que uma pessoa física seja também acusada.
Tal decisão não está isenta de certa dose de polêmica, pois o julgamento foi realizado por um órgão fracionário do tribunal, com o apertado placar de 3 votos a 2.
Poderia esse precedente vincular todo restante do Poder Judiciário Brasileiro? Aplicando-se as regras do artigo 927 do CPC/2015, o precedente não é de observância obrigatória. E decerto não deve ser pequeno o número de pessoas jurídicas sendo julgadas por delitos ambientais com base em precedente carente de eficácia erga omnes.
Importante tecer algumas observações sobre as bases fáticas do precedente.
O RE 548.181/PR foi interposto contra decisão do Superior Tribunal de Justiça nos autos do RMS 16.696/PR, de relatoria do Ministro Hamilton Carvalhido, que dera "provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança para trancar a ação penal em relação à Petróleo Brasileiro S/A – Petrobras", em respeito ao requisito da dupla imputação.
Inconformado, o Ministério Público Federal opôs embargos de declaração, e, conforme explicou o relator, o escopo dos aclaratórios seria prequestionar a constitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 9.605/1998
Os embargos de declaração foram desprovidos, mas assentaram a matéria posteriormente discutida no recurso extraordinário nº 548.181/PR: a constitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 9.605/PR. Levado a julgamento pela ministra Rosa Weber, na 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, o recurso do Ministério Público Federal acabou provido, mas sem que ao precedente tenha sido conferida eficácia erga omnes.
Ou seja, sem efeito vinculante.
A interpretação feita pela 1ª Turma do STF chama atenção, ainda, ao tratar o disposto no artigo 225, §3º, como norma de aplicabilidade plena, em tese suficientemente densa para produzir efeitos diretos sobre a legislação infraconstitucional.
Entretanto, a eficácia da norma prevista no artigo 225, §3º da Constituição Federal é claramente limitada, ou seja, "somente produzem os seus efeitos essenciais após um desenvolvimento normativo, a cargo dos poderes constituídos”, sendo que “a sua vocação de ordenação depende, para ser satisfeita nos seus efeitos básicos, da interpolação do legislador infraconstitucional" [1]. É claramente o que se extrai de seu texto: "as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados".
As sanções penais e administrativas às quais a pessoa física e o ente moral estarão sujeitas devem ser disciplinadas pelo legislador ordinário.
A Constituição Federal não determina de forma alguma que, de modo automático, a pessoa jurídica deva ser processada individualmente por delitos ambientais relacionados às suas atividades. Foi conferida liberdade ao legislador para determinar quais as condutas serão criminalizadas e como será o respectivo procedimento. Para que os mandados de criminalização constitucionais produzam efeitos, é necessário a edição de lei pelo Poder Legislativo, em decorrência direta do princípio da legalidade [2].
Nesse sentido, o artigo 225, §3º autoriza a aplicação de sanções penais às pessoas jurídicas, mas, de modo algum, estabelece como e sob que circunstâncias isso deverá ocorrer.
Há inúmeros sistemas possíveis para a aplicação de sanções penais às pessoas jurídicas. O legislador brasileiro simplesmente optou por um deles para dar densidade ao artigo 225, §3º, da Constituição.
O legislador infraconstitucional, dentre as atribuições que lhe outorgou a Constituição, decidiu que a pessoa jurídica pode, sim, ser penalmente responsabilizada, mas quando for verificada decisão do representante legal ou de órgão colegiado. Ou seja, quando houver actio humana, por meio da identificação da decisão do seu representante.
Daí o artigo 3º da Lei nº 9.613/98, que tem natureza de norma de Direito Penal material.
A própria Ministra Rosa Weber afirmou em seu voto que "a Constituição Federal de 1988 (artigo 225, § 3º) permite a apenação da pessoa jurídica sem que, necessariamente, se atribua o mesmo fato delituoso à pessoa física". Permitir a apenação do ente moral não pode ser interpretada como desnecessidade automática de existência de ação humana (decisão de representante legal ou órgão colegiado), para fins de afastamento do citado artigo 3º.
Se a Constituição "permite a apenação", então o legislador ordinário pode criar dispositivos legais nesse sentido; essa norma constitucional não é autoexecutável, no máximo autorizando que a pessoa jurídica responda ao processo, nos termos estabelecidos pela legislação ordinária.
A ideia de que o texto constitucional estabelece, por si só, a possibilidade de persecução penal da pessoa jurídica sem a companhia de pessoa física no polo passivo é uma clara violação ao artigo 225, §3º, da Constituição Federal. O intérprete da Constituição, nesse caso, está indo muito além do que pretendeu o constituinte, deturpando, assim, a natureza do dispositivo.
A propósito, no acórdão do RE 548.181/PR foram estabelecidos uma série de requisitos para legitimar a acusação criminal exclusivamente contra a pessoa jurídica [3]. Se a norma do artigo 225, §3º, tivesse suficiente densidade para ser aplicada nos termos em que decidiu o órgão fracionário no RE 548.181/PR, não seria necessária uma construção jurisprudencial tão complexa a respeito dos requisitos para a acusação da pessoa jurídica.
Por sinal, os "requisitos" aos quais fez menção a ministra Rosa Weber estão longe de ser inovações. São, em síntese, aqueles contidos no artigo 3º da Lei nº 9.605/1998, justamente o dispositivo infraconstitucional que determina ser necessária a dupla imputação.
Ora, se restar comprovado que "o ilícito decorreu de deliberações" ou então de "atos cometidos por indivíduos vinculados à empresa" e "no interesse ou em benefício da entidade coletiva", naturalmente as pessoas físicas responsáveis deverão ser acusadas junto com o ente moral.
A construção feita no acórdão mostra como na prática não se pode afastar a teoria da dupla imputação nos crimes ambientais, sob pena de fazer ruir os princípios da pessoalidade da pena, da responsabilização subjetiva e da culpabilidade, todos acolhidos pela Constituição Federal.
Na sistemática constitucional vigente, todos os dispositivos previstos na Carta Magna vão no sentido de conferir ao direito penal um caráter subjetivo, individual e democrático. Essa lógica está em confronto direto com a responsabilização da pessoa jurídica que vêm sendo firmada após o julgamento do RE 548181.
Não parece hermeneuticamente adequado pinçar um único dispositivo da Constituição, de modo isolado, ignorando todo sistema penal construído em consonância com a Carta Republicana de 1988.
A discussão sobre a responsabilização penal da pessoa jurídica não pode ser tida por encerrada pelo julgamento do RE 548.181/PR. A matéria precisa ser revisitada, seja pelo plenário da Suprema Corte em regime de repercussão geral, seja pelo legislador, para que a questão possa ser dirimida, solucionando o presente o quadro de insegurança jurídica.