Opinião

O dilema dos municípios frente à judicialização do serviço público de saúde

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20 de dezembro de 2021, 6h32

Predomina nas searas doutrinária e jurisprudencial a solidariedade da obrigação do poder público em prestar assistência à saúde, cujo fundamento decorre da previsão de competência comum assegurada pelo artigo 23, II, da Constituição Federal. Partindo dessa linha de interpretação gramatical, o Judiciário vem dispensando tratamento aos entes federativos como se iguais fossem, quando é sabido que cada qual possui capacidades administrativa, orçamentária e financeira distintas para custeio do serviço público de saúde, resultando, a nosso sentir, em uma distorção sombria do pacto federativo em manifesto prejuízo do tesouro municipal.

A competência comum quanto à obrigação do poder público em garantir a assistência de saúde merece ser interpretada sem a exclusão da divisão de atribuições do entes federados, não se revelando razoável, tampouco proporcional, que a partir de decisões judiciais seja imposto aos municípios o cumprimento de obrigações que a lei reservou como sendo de competência dos estados ou da União, sob pena de subverter nossa forma de estado por restar ignorada as características básicas inerentes ao federalismo.

Longe do modelo ideal, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário de nº 855.178/SE (Tema 793), com repercussão geral, passou a reconhecer que apesar de existência de obrigação solidária dos entes federativos, os juízes devem identificar a qual ente compete a obrigação de fornecimento de determinado medicamento ou tratamento no caso concreto, em respeito aos primados da descentralização e da hierarquização do SUS, devendo ser assegurado em todo caso o ressarcimento de quem suportou o ônus financeiro indevidamente, consoante se extrai dos itens 1 e 2 da ementa do referido julgado:

"1) É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente.
2) A fim de otimizar a compensação entre os entes federados, compete à autoridade judicial, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, direcionar, caso a caso, o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro".

Analisando o julgado, percebe-se que o Pretório Excelso já reconhece que há repartição de competências no que se relaciona à assistência a saúde por parte do poder público, contudo, foi infeliz ao não limitar a solidariedade dos entes às obrigações impostas a cada uma pela ordem jurídica pátria, pois, como dito anteriormente, a dita solidariedade não pode ser absoluta a ponto de esvaziar outros preceitos constitucionais de igual forma aplicáveis na espécie, a exemplo da universalização, descentralização e hierarquização do SUS, o princípio do equilíbrio fiscal das contas públicas, sem prejuízo da divisão de atribuições já previstas em lei federal, pois, como já alertava o ministro Eros Grau no julgamento da ADI de nº 3.685-8/DF: "(…) Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços".

Com todas as vênias, ao fixar a tese o Pretório Excelso não levou em consideração os efeitos práticos dessa decisão sob os prismas processual, político-social, orçamentário e financeiro para os pequenos e médios municípios brasileiros. Em verdade, continuarão estes arcando com o custo, resultando em um rombo das finanças públicas, vez que se revela juridicamente impossível o ressarcimento por tal ônus dentro do mesmo exercício financeiro em que foi realizada a despesa pública, ensejando um desequilíbrio fiscal que na maioria dos municípios ultrapassa a cifra dos milhões anualmente.

Desconhece a Corte Suprema, por exemplo, que em grande parte dos municípios brasileiros, tão logo seja concedida uma tutela de urgência em sede de ação de obrigação de fazer, o oficial de Justiça de imediato "atravessa a praça" e se dirige pessoalmente à porta do gabinete do procurador ou prefeito para proceder a intimação por mandado — quando não em suas residências — para cumprimento da decisão judicial, sob pena de multa diária e bloqueio de verbas públicas para assegurar o direito vindicado, enquanto a intimação do estado, que não raras vezes também integra a polaridade passiva, é feita de forma eletrônica, sendo-lhe concedido uma tolerância de dez dias (artigo 5º, §3º, da Lei nº 11.419/06) para fins de leitura da intimação, quando a partir de então começa a fluir o prazo para cumprimento da decisão fixado no ato judicial.

Se descumprida a decisão judicial pela municipalidade — quando sequer a intimação do estado foi efetivada eletronicamente —, esta tem bloqueada suas contas públicas, ou o secretário de saúde é advertido de que responderá criminalmente por desobediência a ordem judicial, sem prejuízo da majoração da multa aplicada. Nessa altura, considerando a realidade dos pequenos e médios municípios brasileiros, enquanto já tramita ou executa medidas coercitivas no processo judicial, paralelamente a família, ou paciente, já se encontra acompanhada da imprensa local na "porta" da residência do prefeito, fazendo vigília para fins de cumprimento do ato judicial, ocasionando manifesto desgaste político-social, totalmente desnecessário caso a respectiva decisão já direcionasse o cumprimento ao ente competente para a prestação do serviço ou fornecimento de medicamento.

E aí poderá surgir mais um fato gravoso para o tesouro municipal, uma vez que não existindo serviço (tratamento) na rede municipal, deverá o município inserir o paciente no sistema de regulação gerido pelo estado para fins de transferência para determinado centro de saúde. O detalhe é que, a depender do serviço a ser prestado, a regulação poderá levar dias ou semanas para se efetivar, enquanto o paciente, que não pode ficar a mercê da falha do aparato estatal, pleiteia que seu tratamento seja custeado em rede privada de saúde, o que de pronto é deferido judicialmente, mais uma vez em manifesto desequilíbrio do orçamento e das finanças públicas.

Ainda que se diga que há possibilidade interposição de agravo de instrumento ou pedido de suspensão da tutela de urgência, o fato é que os tribunais seguem a tese da solidariedade absoluta, "ctrl c + ctrl v", com a única diferença de alteração de nome das partes, número do processo e, em alguns casos, o nome do medicamento ou tratamento objeto da obrigação de fazer, enquanto a sangria e desequilíbrio das contas municipais não parecem ser de interesse coletivo na insensível ótica da maioria dos julgadores, por manifesto comodismo.

Nada obstante o STF assegurar o ressarcimento do Tesouro municipal quando do custeio de um tratamento hospitalar ou fornecimento de medicamentos que seja de competência de outro ente, tal se encontra anos-luz de distância de solucionar o problema em debate, uma vez que o ressarcimento tem natureza de indenização, e como tal se submete ao regime de precatórios, podendo levar mais de década para seu recebimento, ou seja, a recomposição das finanças municipais jamais ocorrerá dentro do exercício financeiro em que a despesa pública se efetivou, resultando em um rombo no orçamento e colocando em risco a oferta de outros serviços públicos que deveriam beneficiar toda a coletividade.

Diante dessa incompreensível distorção constitucional que é a judicialização do serviço público de saúde no Brasil, á única solução que entendemos possível e adequada para o caso é a apresentação de projeto de emenda constitucional para inserir o parágrafo 7º no artigo 198 da Constituição Federal, tornando exigível que as ordens judiciais que venham a impor obrigação de fornecimento de medicamento ou tratamento observem a repartição de competência prevista em lei.

Atrelado a isso, de igual forma se revela pertinente projeto de emenda constitucional para inserir o parágrafo 21 ao artigo 100 do texto constitucional, no sentido de prever que eventuais ressarcimentos decorrentes do cumprimento de ordem judicial por parte dos municípios, estados e União, referente a custeio de medicamento ou tratamento, não se submetem ao regime de precatório. Consequentemente, adequada seria alteração na Lei nº 8.437/92, para permitir a concessão de tutela de evidência nas ações de ressarcimento propostas entre os entes, possibilitando o bloqueio de valores e assegurando a recomposição das finanças municipais dentro do exercício em que se efetivou a despesa.

Complementando, merece alteração o Código de Processo Civil, notadamente no que se refere à legitimidade passiva nas ações de obrigação de fazer com causa de pedir e pedido relacionado à assistência à saúde, passando a exigir que a respectiva demanda seja proposta contra o ente federado competente para tanto, sob pena de extinção. Na mesma linha, seria importante inserir dispositivo exigindo que os tribunais ou CNJ, em cooperação técnica com as agências reguladoras competentes, Anvisa ou ANS, conforme o caso, disponibilizassem lista de medicamentos e tratamentos ofertados pelo SUS, identificando a quem compete sua disponibilização, tornando possível a identificação de forma simples pelas partes e operadores do Direito.

Vejam que tais propostas não têm o condão de inviabilizar o acesso à Justiça, tampouco criam obstáculo à assistência à saúde por parte do poder público. Pelo contrário, corrigiria o anacronismo atualmente existente e tornaria eficiente o sistema, otimizando o trâmite e cumprimento das ordens judiciais correlatas, além de afastar um ônus que em regra é suportado injustamente pelos municípios, em manifesta lesão dos cofres públicos.

Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição (1988). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.  Acesso em: 14 dez. 2021.

_______. Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8437.htm>.  Acesso em: 14 dez. 2021.

_______.  Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>.  Acesso em: 14 dez. 2021.

STF – RE 855178 ED, Relator(a): LUIZ FUX, relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 23/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL  MÉRITO DJe-090 DIVULG 15-04-2020 PUBLIC 16-04-2020.

STF – ADI: 3685 DF, relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 22/03/2006, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 10-08-2006 PP-00019 EMENT VOL-02241-02 PP-00193)

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