Opinião

Prescrição, marco interruptivo e direito fundamental no processo de controle externo

Autor

  • Angelo Ferraro

    é advogado especialista em Direito Público sócio do escritório Aragão e Ferraro Advogados e membro da Comissão Especial de Obras Concessões e Controle da Administração Pública da OAB Nacional.

20 de dezembro de 2021, 18h56

O Tribunal de Contas da União (TCU, auxiliar do Congresso no controle da accountability das contas públicas, conquistou, ao longo dos últimos anos, maior visibilidade, resultado de um fortalecimento de suas competências e arranjo interinstitucional.

Avanço esse que ainda não mitigou a hipertrofia e a superposição de funções e decisões, típicas do sistema de controle externo nacional. Reconhecer essas disfunções e naturalizar a sindicabilidade das decisões do TCU é parte da solução, assim como o é a garantia efetiva do devido processo legal no processo de contas, por essência, disruptivo, concentrando seus Ministros, como observou Alexandre Aroeira, "o papel de fiscalizar, acusar, instaurar, instruir, gerir as provas e decidir seus processos"[1].

O Supremo, mesmo que timidamente, tem assegurado em suas decisões a aplicação dos princípios constitucionais ao processo de controle, suprindo a sua legislação de regência, que deveria ter garantido, como toda norma procedimental, na dicção de Alexy, ser o resultado "com suficiente probabilidade e suficiente medida, conforme aos direitos fundamentais"[2].

O TCU, por sua vez, tem tergiversado em adotá-las, contribuindo para um ambiente de imprevisibilidade jurídica e judicialização elevada. Exemplo é a negativa de incorporação da jurisprudência constitucional sobre a prescrição sancionatória e ressarcitória, em que a densidade dos julgados tem sido esvaziada, a partir de frágeis controvérsias jurídicas sobre às condições de aplicação das causas interruptivas do prazo prescricional e do conceito de ato inequívoco.

A previsibilidade do regime jurídico aplicável à prescrição, termo inicial e marcos interruptivos, garante ao controlado os direitos fundamentais à segurança jurídica e ao devido processo legal, diminuindo a instabilidade ocasionada por decisões judiciais e administrativas conflitantes.

O STF, na ausência de uma legislação específica, consolidou o entendimento de que a competência sancionatória do TCU é quinquenal, a partir do julgamento do MS nº 32.201/DF (rel. Min. Barroso). Ao fazer uma interpretação histórica da vontade do legislador, rememorou que, já na Exposição de Motivos nº 400 da MP nº 1.708/1998 (convertida na Lei nº 9.873/1999), havia a proposta de regulamentar de modo uniforme a prescrição no âmbito da Administração Pública Federal.

Conferiu-se à Lei nº 9.873/1999, a partir dessa decisão paradigma, caráter regulatório geral da prescrição sancionatória, afastando-se a aplicação analógica das normas direito civil ao processo de controle. Interpretação essa acolhida por 17 tribunais de contas estaduais e o do Distrito Federal, bem como pelos demais Ministros do STF, v.g.: Cármen Lúcia (MS nº 37.628/DF), Dias Toffoli (MS nº 37.423/DF), Edson Fachin (MS nº 35.512/DF), Gilmar Mendes (MS n° 36.111/DF), Luiz Fux (MS nº 35.940/DF), Ricardo Lewandowski (MSs nº 37.664/DF), Alexandre de Moraes (MS nº 36.523/DF), Rosa Weber (MS nº 35.940/DF) e Nunes Marques (MS nº 37.563/DF).

Quanto à pretensão ressarcitória, o STF se manifestou em controle difuso (RE nº 636.886/AL), oportunidade em que decidiu ser "prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas" (Tema 899). Firmado o acórdão com força de título executivo (arts. 23 e 24 da Lei nº 8.443/1992), prescreverá a pretensão em cinco anos (art. 40 da LEF c/c artigo 140 do CTN).

O Supremo já havia decidido no Tema 897 ser imprescritível as ações de ressarcimento decorrentes de ato doloso de improbidade administrativa. A outros atos ilícitos atentatórios à probidade da administração, seria aplicável o Tema 666: "é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil". Assim, ao afastar a incidência do Tema 897, reafirmou não terem os tribunais de contas competência para apurar a existência de ato doloso de improbidade, cabendo-lhes unicamente a apreciação técnica das contas, a partir da fiscalização, justamente por não garantir o processo de controle o amplo resguardo do devido processo legal.

Essa evolução interpretativa sobre a prescritibilidade da pretensão ressarcitória não pode ser associada à uma relativização do poder punitivo estatal. Ao contrário, cabe ao Estado a busca judicial da reparação via ação civil de improbidade administrativa. Esta sim oferece as garantias do contraditório e da ampla defesa.

Como bem pontuado pelo Min. Alexandre (Tema 899), não é legítimo sacrificar direitos fundamentais para se tentar compensar a ineficiência do Estado, competindo aos agentes públicos, de forma geral, e ao Tribunal de Contas, especialmente, empreender os meios necessário para reduzir o tempo de tramitação dos processos, evitando-se “prolongamentos injustificados das etapas que separam um ato processual de outro”[3].

Outro entendimento consolidado, a partir do voto-vogal do Min. Gilmar no RE nº 636.886/AL, foi o reconhecimento da  incidência da prescrição quinquenal ressarcitória na fase antecedente à formação do título executivo (denominada "fase administrativa"). Enquanto nesta o regime é o da  Lei nº 9.873/1999, na fase judicial, correspondente à execução do acórdão, aplica-se o Código Tributário e a Lei de Execução Fiscal.

Ponto comum, portanto, trazido pelos julgados do Supremo, é o caráter regulatório geral dado à Lei nº 9.873/1999 nas pretensões sancionatórias e ressarcitórias. Isso não significa que o TCU assim venha decidindo. Continua a aplicar o paradigma firmado no Acórdão nº 1.441/2016, adotando ser imprescritível a imputação de débito e prescritível em 10 anos a aplicação de sanção, contrariando, inclusive, recentes manifestações de sua própria Secretaria de Recursos (Serur), que tem acolhido os entendimentos do STF: v.g., pareceres nos TCs nº 003.889/2016-5 e nº 027.624/2018-8.

Essas divergências também se refletem  nos marcos interruptivos de contagem do prazo, abrindo margem para subjetivismos interpretativos. Prazo esse, aliás, inaugurado (artigo 1º, caput, da Lei nº 9.873/1999) com a data da prática do ato (no caso de infração permanente, do dia que cessar), e não a partir do conhecimento da Corte de Contas do suposto fato, o que colocaria o agente público em submissão constante ao seu comportamento[4].

Substanciais, por sua vez, são as discussões sobre os marcos interruptivos do art. 2º da Lei nº 9.873/1999. Sustentamos que as hipóteses nele constantes não podem ser de livre aplicação pelo TCU. Devem ser interpretadas como uma sequência de atos processuais encadeados cronologicamente e sucessivamente, em uma relação de prejudicialidade, realizado o subsequente, o antecedente não se repete.

Ocorrido o fato, portanto, já se inicia o prazo prescricional, que só será interrompido com a citação ou notificação. O processo de apuração somente se instaura com a regular constituição da relação jurídica processual e penas com o estabelecimento do contraditório[5] é que se pode falar em primeiro ato interruptivo, sob pena de tornar imprescritível a pretensão, por via oblíqua.

Não há uma codificação uniformizando um regime geral de direito processual administrativo e de controle. Não há dúvida, contudo, que nesses dois casos, assim como no processo judicial, seja por uma visão fazzalariana[6] ou constitucionalista, devem ter a sua natureza definida, não pela angularização da relação jurídica, mas sim como procedimento que garanta aos interessados participação ativa no contraditório e assegure a observância dos direitos fundamentais constitucionais.

Ainda que exista um procedimento em trâmite na Corte de Contas, se não houver o estabelecimento do contraditório, com a concessão de oportunidade de manifestação efetiva dos envolvidos, não estará inaugurado efetivamente um processo de apuração, para o efeito de interrupção do prazo prescricional. Dentro da dialética processual, as demais causas interruptivas dos incisos II, III e IV do art. 2º da Lei nº 9.873/1999 só podem incidir a partir da observância de uma ordem cronológica dos eventos ensejadores da interrupção do prazo prescricional, iniciados, obviamente, com a citação ou notificação.

Cada um dos incisos deve ser considerado, em essência, um ato processual dentro de um iter procedimental, o que requer uma sequência de ordenação lógica e destinada a uma finalidade. E, como podem afetar a esfera dos direitos subjetivos, impondo deveres e ônus, exige-se, necessariamente, que sejam comunicados aos interessados (art. 28 da Lei 9.784/1999). Todos os atos processuais do artigo 2º são elos de uma estrutura normativa que compõe o procedimento, e que dependem, para serem válidos e eficazes, da regularidade do ato precedente, objetivando sempre favorecer a ocorrência de fatos que possibilitem a consecução de um provimento final.

A aplicação invertida da ordem sequencial de quaisquer dos incisos do artigo 2º, significa subverter a própria teleologia racional do processo em geral e, especialmente, o de controle, possibilitando interrupções discricionárias dos prazos. A interpretação da norma deve ser realizada, utilizando-se da expressão de Luhmann, para tornar "diminuto o espaço de manobra da decisão"[7], em razão da real possibilidade de criação de incidentes irrelevantes com o fim de se postergar a ocorrência da prescrição.

A incidência, portanto, das demais causas interruptivas no processo de contas, só ocorre se este já estiver instaurado com a regular constituição da relação jurídica. Nesse sentido, o inciso II ("qualquer ato inequívoco que importe na investigação do fato") se correlaciona diretamente com o artigo 1º, §1º da Lei nº 9.873/1999, ou seja, nos casos de prescrição intercorrente.

O principal debate sobre o inciso II é a ausência de convergência do conceito de ato inequívoco de apuração, o que tem esvaziado, na prática, a aplicação do instituto da prescrição, resultado da enorme imprevisibilidade acarretada pela indefinição de quais atos praticados no âmbito do processo de controle poderiam ser caracterizados como tal.

Entendemos que deve ser definido como inequívoco o ato dotado de relevância jurídica e grau de certeza sobre a determinação de seu fim. Não deve haver margem para dúvida ou ambiguidade, sua intencionalidade de produzir efeitos, a partir da efetiva apuração de determinado fato, deve ser literal. É justamente essa ausência de inflexão do adjetivo inequívoco que retira a possibilidade de se considerar qualquer ato produzido no curso de um processo de controle como suficiente para interromper a prescrição.

Há a necessidade, portanto, para a conformação do ato interruptivo ao texto legal (artigo 2º, II, da Lei nº 9.873/1999), de ser o ato inequívoco de apuração praticado dentro de um processo de controle em contraditório e com a finalidade específica de apurar a ocorrência de uma conduta ilegal, ilegítima ou antieconômica juridicamente relevantes e desde que presentes elementos prévios indiciários de autoria e materialidade[8]. É essa, inclusive, a leitura que se faz a partir da integração de três diplomas jurídicos: i) Instrução Normativa nº 71/2012 do TCU (artigo 5º, incs.); ii) Instrução Normativa nº 84/2020 do TCU (artigo 21, §3º, artigo 22, artigo 30, caput e §§); e iii) Lei 8.443/1992 (artigos 11 e 43, inciso II).

Atos, apuratórios ou não, praticados, na ausência do contraditório, em processos administrativos ou de controle de contas, não possuem as condições necessárias para a interrupção da prescrição. No direito penal (artigo 117 do CP), por exemplo, ela é interrompida pela primeira vez com o recebimento da denúncia ou queixa, não havendo nenhuma causa interruptiva durante a fase investigativa do inquérito.

É de se ressaltar que os tribunais ainda não trataram o tema com o cuidado e verticalidade necessários, ampliando a insegurança jurídica. O próprio Supremo, embora não tenha dado a ele o devido cuidado,  já sinalizou, em algumas oportunidades, que a mera autuação do processo de tomada de contas, ausente o contraditório, não se revela um marco interruptivo (v.g., MSs nº 35.539/DF, 37.664/DF e nº 36.461/DF).

Por privilegiar as garantias fundamentais, essa é a posição mais acertada, apenas após a cientificação do interessado é que se pode falar em um processo voltado à apuração de atos antieconômicos, ilegais ou ilegítimos. Não há razão jurídica para considerar a simples instauração da tomada de contas ou abertura de auditorias como um marco interruptivo, por si só, justamente por ser um ato burocrático de impulso processual.

Deve-se evitar a banalização do conceito de ato inequívoco, não devendo ser a ele correlacionados como interruptivos: i) a simples abertura de um procedimento interno; ii) os atos meramente preparatórios (STJ – AgRg no MS 13.072/DF); iii) os encaminhamentos instrutórios; iv) as manifestações das unidades técnicas; v) os atos que não demandem uma formal manifestação do tribunal (STJ – REsp 1.461.362/PR) e vi) os demais atos burocráticos ou de impulso processual.

Não estão pressentes nessas hipóteses o requisito objetivo da instauração de um procedimento formal, nem um fato determinado com indícios mínimos de materialidade e autoria, tal como no recebimento de uma denúncia penal, por exemplo. Um mero despacho ou uma burocrática movimentação processual não são aptos a interromper o lapso prescricional.

As demais causas interruptivas previstas nos incisos III ("decisão condenatória recorrível") e IV ("qualquer ato inequívoco que importe em manifestação expressa de tentativa de solução conciliatória") do artigo 2º da Lei nº 9.873/1999 não ensejam substantivas divergências em suas aplicações no âmbito do TCU. A justaposição destes, no entanto, reforça a nossa tese sustentada de uma ordem  cronológica de aplicabilidade dos incisos I, II, III e IV do artigo 2º.

Ressalte-se, por fim, que decisões tergiversantes e a ausência de um marco legal claro sobre os marcos interruptivos da prescrição nos processos de contas  afrontam  de maneira inegável os direitos e garantias fundamentais. Abre-se margem para subjetivismos na interpretação de quais atos podem ser considerados inequívocos, possibilitando a criação de inúmeros incidentes processuais que postergam indefinidamente a ocorrência da prescrição.

 

[12] SALLES, Alexandre Aroeira. O processo nos Tribunais de Contas: contraditório, ampla defesa e a necessária reforma da lei orgânica do TCU. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 15.

[2] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad.Virgilio Afonso da Silva. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 473.

[3] Cf. GIAMUNDO NETO, Giuseppe. As garantias do processo no Tribunal de Contas da União: Princípios Constitucionais, Código de Processo Civil/2015 e a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro : LINDB. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p.195.

[4] Cf. DANTAS, Bruno; SANTOS, Caio Victor Ribeiro. Prescrição no Tribunal de Contas da união: uma análise do Acórdão 1441/2016 – TCU. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília, n. 17, 2020.

[5] Cf. PELEGRINI, Marcia. A competência sancionatória do Tribunal de Contas: contornos constitucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p.215-217

[6] Cf.FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Tradução de Elaine Nassif. Bookseller: Campinas, 2006.

[7] LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo Procedimento. Tradução M. C. Côrte-Real. Brasília: UnB, 1980, p.26.

[8] Cf. PRATES, Marcelo Madureira. Prescrição administrativa na Lei 9.873, de23.11.99: entre simplicidade normativa e complexidade interpretativa. Boletim de Direito Administrativo, ano XXI, nº 8, agosto de 2005, p. 898-910.

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Público, sócio do escritório Aragão e Ferraro Advogados e membro da Comissão Especial de Obras, Concessões e Controle da Administração Pública da OAB Nacional.

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