Direito Civil Atual

Cláusulas gerais, um passado 'marrom'? (Parte 1)

Autor

  • Diogo Pitta

    é advogado em São Paulo mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE) com período de mobilidade acadêmica na Eberhard-Karls Universität Tübingen (Baden-Württemberg).

13 de dezembro de 2021, 16h35

Só recentemente a comunidade jurídica brasileira tem tomado conhecimento do passado "marrom" (1) de ilustres juristas alemães, como Franz Wieacker e Karl Larenz (2). Estes, como membros da assim chamada Escola de Kiel (Kieler Rechtsschule), muito contribuíram para a incorporação de elementos da ideologia nacional-socialista ao Direito alemão nos anos 1933-1945. Tal esforço de "acerto de contas" histórico, no entanto, não deve se limitar à exposição desse passado dos juristas vinculados ao nazismo: deve, necessariamente, passar pela revisão das estratégias do pensamento e prática do direito nazista (3). Nesse sentido, sobretudo depois da obra de Bernd Rüthers, "A interpretação ilimitada: da transformação da ordem jurídico-privada nos tempos do nacional-socialismo" (4), tornou-se incontroverso o fato de que as cláusulas gerais fizeram parte da estratégia jurídica do regime hitlerista em sua particular "perversão" do Direito democrático da República de Weimar.

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Especialmente para o debate brasileiro, no qual as cláusulas gerais foram recepcionadas de maneira bastante efusiva, a ponto de um respeitável observador alemão constatar que "é bastante difundida no Brasil a visão de que todas as controvérsias de direito privado podem ser resolvidas com base em princípios e cláusulas gerais" (5), convém conhecer a história das cláusulas gerais no país que as concebeu, inclusive o seu passado também "marrom". A impressão geral é que os autores brasileiros nem sequer cogitam desses vínculos histórico-teóricos das cláusulas gerais com o nacional-socialismo.

Em primeiro lugar, diferentemente da visão amplamente propagada neste lado do Atlântico, não foi a subsunção e o estrito legalismo que legitimaram as barbáries do período nazista; antes, o complexo processo de constituição do Direito nazista passou pela supressão dos fundamentos positivistas do pensamento e da prática jurídica. Assim, no que diz respeito às cláusulas gerais, a experiência nazista veio a confirmar o vaticínio de Justus Wilhelm Hedemann, que, em seu opúsculo "A fuga para as cláusulas gerais: um perigo para o Direito e para o Estado" (6), alertou de modo paradigmático para o perigo de instrumentalização das cláusulas gerais pelo poder político. Paradoxalmente publicada no ano que marca a eclosão do "ovo da serpente" do nazifascismo e por um autor que veio a se associar ao regime, a obra associa a flexibilidade das cláusulas gerais à discricionariedade judicial irrestrita, que termina por corromper a função de controle do poder por parte das normas jurídicas, elemento essencial da ideia de Estado de direito (ou rule of law, de maneira mais abrangente).

Para os nazistas, porém, não havia o que se temer, dado que as cláusulas gerais poderiam servir ao movimento da "renovação alemã do Direito" (Deutsche Rechtserneurung). O famoso publicista alemão Carl Schmitt, em um artigo denominado "Nacional-socialismo e Estado de direito”, conclama abertamente que "todos os conceitos jurídicos indeterminados, todas as assim chamadas cláusulas gerais são essenciais e devem ser interpretadas irrestritivamente em sentido nacional-socialista" (7). Recepcionando explicitamente o chamado de Schmitt, o civilista Wolfgang Siebert conclui que "a insegurança jurídica na aplicação das cláusulas gerais desaparecerá paulatinamente, quanto mais forte e segura for a concepção jurídica do nacional-socialismo" (8).

As cláusulas gerais, portanto, passaram a ser celebradas como "pontos de entrada" (Einbruchstellen) através dos quais o novo pensamento jurídico inunda o antigo" (9). Nesse contexto, as mais importantes cláusulas gerais do Código Civil alemão (Bürgerliches GesetzbuchBGB), a saber, a boa-fé objetiva (Treu und Glauben) do §242 (10) e o dispositivo do §138, I (11), referente aos bons costumes (gute Sitten), passaram a ser associados ao "sadio sentimento popular" (gesunde Volksempfinden) e à "comunidade étnica" (Volksgemeinschaft), preenchendo-se o seu conteúdo com a visão de mundo racista e autoritária do nazifascismo. A propósito, uma contribuição marcadamente "marrom" ao tema das cláusulas gerais será a atribuição de uma nova função à boa-fé objetiva, até então desconhecida na literatura jurídica alemã, que seria a sua função "cultural" (Kulturfunktion). Nas palavras de Gerhard Hubernagel, o §242 teria a função de "abrir espaço para novos desenvolvimentos ideológicos, econômicos, políticos-estatais e técnicos na ordem jurídica" (12). Havia, ainda nesse contexto, um esforço evidente por parte da doutrina nazista em se enfatizar a origem germânica (e, consequentemente, "ariana") da fórmula Treu und Glauben, assumida como um valor genuinamente alemão, a exemplo da afirmação de Karl Larenz de que "todo alemão sabe o que se quer dizer com boa-fé" (13).

Essa nova compreensão doutrinária das cláusulas gerais engendrada ao longo dos anos 1933-1945 penetrou fortemente na jurisprudência. O Reichsgericht RG, a mais alta instância judicial da época, decidiu nos seguintes termos em 1943 (14):

"(…) A visão de mundo nacional-socialista, fundada na comunidade étnica e moral do povo alemão, tem validade geral para a interpretação e apreciação das leis vigentes e dos contratos, e a partir dela é que devem ser determinados os conteúdos dos conceitos de boa-fé (§§ 157, 242 BGB) e dos bons costumes (§138, BGB)'.

Ainda digno de nota, é o fato de a jurisprudência do Reichsarbeitsgericht — RAG (tribunal superior ordinário para Direito do Trabalho), em um dos episódios mais obscuros de sua história, ter passado a admitir, justamente com base no §242 do BGB, a resilição unilateral dos contratos de trabalho firmados entre "arianos" e judeus, com base unicamente no arbítrio daqueles (15). Por fim, a posição preeminente da boa-fé objetiva na experiência nazista é evidenciada pela sua consagração expressa na forma da regra fundamental nº 16 do Projeto de "Código Civil do Povo" (Volksgesetzbuch), que submetia o exercício de todo e qualquer direito subjetivo ao crivo da boa-fé (16). Empreendida pela "Academia Alemã de Juristas" (Akademie für Deutsches Recht) (17), organização que congrevava os juristas vinculados ao regime, o Projeto de "Código Civil do Povo" foi uma tentativa fracassada de substituir o BGB, retratado à época como demasiadamente individualista, materialista, formalista, positivista, conceitualista, numa palavra-chave: "não ariano" (18).

Na próxima coluna, será realizado um balanço histórico das cláusulas gerais no século 20, considerando não apenas o referido período nazista, mas também o restante da experiência histórica alemã.

 

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


(1) A expressão alude à cor dos uniformes dos membros do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, que, por antonomásia, virou sinônimo de nazista. Também se afigura possível a tradução pela expressão "camisas-pardas", utilizada preferencialmente no português europeu.

(2) A influência de autores nazistas e suas ideias sobre o Direito Civil brasileiro tem sido objeto das investigações de: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Editora alemã faz acerto de contas histórico com autores nazistas. Revista Consultor Jurídico, 28 de julho de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-28/direito-comparado-editora-alema-faz-acerto-contas-historico-autores-nazistas. Acesso em 13-12-2021. Especificamente sobre os autores citados: "Franz Wieacker e Karl Larenz são particularmente relevantes, dada sua enorme influência no pensamento jurídico brasileiro da segunda metade do século XX e até aos dias de hoje" In: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. A influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX. O Direito (Lisboa), v. 147, p. 102, 2015.

(3) Sobre o colaboracionismo jurídico em regimes autoritários, na mesma linha, Airton Seelaender: "Não se trata propriamente de julgar condutas pessoais, mas sim de tentar compreender a função do direito, de seus teóricos e dos centros de ensino nesses períodos históricos específicos" (SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite. Juristas e ditaduras: uma leitura brasileira. In: FONSECA, Ricardo Marcelo; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite. História do Direito em Perspectiva: Do Antigo Regime à Modernidade. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 430).

(4) RÜTHERS, Bernd. Die unbegrenzte Auslegung: Zum Wandel der Privatrechtsordnung im Nationalsozialismus. 8. ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 2017 (tradução livre).

(5) SCHMIDT, Jan Peter. Alegação de invalidade como comportamento contraditório proibido? — Comentários ao Acórdão do REsp 1.461.301/MT. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 7, ano 3, p. 431, abr./jun. 2016.

(6) HEDEMANN, Justus Wilhelm. Die Flucht in die Generalklauseln: eine Gefahr für Recht und Staat. Tübingen: J.C.B. Mohr, 1933 (tradução livre). Ironicamente, o próprio Hedemann veio a se envolver ativamente com o regime nacional-socialista, integrando a "Academia Alemã de Juristas" e sendo um dos redatores do Projeto de "Código Civil do Povo", mais adiante referenciados, v. MOHNHAUPT, Heinz. Justus Wilhelm Hedemann als Rechtshistoriker und Zivilrechtler vor und während der Epoche des Nationalsozialismus. In: STOLLEIS, Michael; SIMON, Dieter (Orgs.). Rechtsgeschichte im Nationalsozialismus. Beiträge zur Geschichte einer Disziplin. Tübingen: Mohr Siebeck, 1989, p. 107-159.

(7) SCHMITT, Carl. Nationalsozialismus und Rechtstaat. Juristische Wochenschrift — JW, v. 63, 1934, p. 717 (tradução livre).

(8) SIEBERT, Wolfgang. Verwirkung und Unzulässigkeit der Rechtsausübung: ein rechtsvergleichender Beitrag zur Lehre von den Schranken der privaten Rechte und zur exceptio doli (§§ 226, 242, 826 BGB.), unter besonderer Berücksichtigung des gewerblichen Rechtsschutzes (§ 1 UWG.) Marburg i. Hessen: Elwert, 1934, p. 154 (tradução livre).

(9) LANGE, Heinrich. Generalklauseln und neues Recht. Juristische Wochenschrift — JW, v. 62, 1933, p. 2858 (tradução livre).

(10) No original, "§ 242 Leistung nach Treu und Glauben. Der Schuldner ist verpflichtet, die Leistung so zu bewirken, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern". Em tradução livre, "§ 242 Prestação conforme a boa-fé. O devedor está adstrito a cumprir a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego jurídico". O § 242 do BGB tem como correspondente no Código Civil brasileiro o artigo 422, a ver: "Artigo 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".

(11) No original, "§ 138 Sittenwidriges Rechtsgeschäft. (1) Ein Rechtsgeschäft, das gegen die guten Sitten verstößt, ist nichtig". Em tradução livre, "§ 138 Negócio jurídico contrário aos bons costumes. (1) Um negócio jurídico que contrarie os bons costumes é nulo". O § 138 do BGB tem como correspondente no Código Civil brasileiro o artigo 122, a ver: "Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes".

(12) HUBERNAGEL, Gerhard. Nationalsozialistische Rechtsauffasung und Generalklauseln. In: FRANK, Hans (Org.). Nationalsozialistisches Handbuch für Recht und Gesetzgebung. München: Franz-Eher-Verlag, 1935, p. 971 (tradução livre).

(13) LARENZ. Karl. Vertrag und Unrecht. Band. I. Hamburg: Hanseatische Verlagsanstalt, 1936, p. 109 (tradução livre).

(14) Cf. julgado do Tribunal Imperial em 28.01.1943, transcrito em: RÜTHERS, Bernd. Die unbegrenzte Auslegung… p. 219 (tradução livre).

(15) Cf. julgado do Tribunal Imperial do Trabalho em 05.07.1939, refrerido em: DUVE; Thomas; HAFERKAMP, Hans-Peter. § 242. Leistung nach Treu und Glauben. In: SCHMOECKEL, Mathias; RÜCKERT, Joachim; ZIMMERMANN, Reinhard (Orgs.). Historisch-kritischer Kommentar zum BGB. Band II. Schuldrecht: Allgemeiner Teil §§ 241-432. Tübingen: Mohr Siebeck, 2007, p. 346.

(16) No original, "Grundregel n. 16. Die Ausübung aller Rechte muß sich nach Treu und Glauben und nach den anerkannten Grundsätzen der völkischen Gemeinschaft richten. Das Wohl der Gemeinschaft ist dem eigenen Nutzen voranzustellen". Em tradução livre, "Regra fundamental n. 16. Todos os direitos devem ser exercidos conforme os mandamentos da boa-fé e dos reconhecidos preceitos fundamentais da comunidade étnica. O bem-comum deve se sobrepor ao proveito individual". O Projeto de "Código Civil do Povo" previa a substituição da influente parte geral do BGB por um conjunto de "regras fundamentais" (Grundregeln), caracterizadas por um alto grau de vagueza semântica.

(17) Instituída por lei em 1933, desta organização participaram diversos juristas citados ao longo deste texto (como Karl Larenz, Wolfgang Siebert, Franz Wieacker, Justus Wilhelm Hedemann e Heinrich Lange) até a finalização de seus trabalhos em 1944. Neste período, discutiu-se fervorosamente a reforma do direito privado alemão e sua sistemática, culminando na elaboração do referido Projeto de "Código Civil do Povo", v. BRÜGGEMEIER, Gert. Oberstes Gesetz is das Wohl des deutschen Volkes: Das Projekt des Volkgesetzbuches". JuristenZeitung – JZ, v. 45, p. 24-28, 1990.

(18) Representativa nesse sentido é a obra: LANGE, Heinrich. Liberalismus, Nationalsozialismus und Bürgerliches Recht. Tübingen: J.C.B. Mohr, 1933.

Autores

  • é advogado em São Paulo, mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), com período de mobilidade acadêmica na Eberhard-Karls Universität Tübingen (Baden-Württemberg).

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