Opinião

Transporte rodoviário de cargas: primeiras impressões sobre o novo DT-e

Autores

  • Gustavo Abdalla

    é advogado head do Departamento Jurídico do Target Bank supervisor orientador do Grupo de Estudos Processuais do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (GEP PUC-RIO) especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro da Comissão OAB Vai à Escola no Rio de Janeiro.

  • Lucas Lavogade

    é advogado do Departamento Jurídico do Target Bank graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro pós-graduando em Direito Digital pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio) em conjunto com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro do Grupo de Estudos Processuais do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (GEP PUC-RIO).

19 de dezembro de 2021, 13h14

Ninguém duvida, e essa é uma narrativa persistente nos livros de história, que o nosso país tenha sido construído com base na distribuição e logística rodoviárias. Há muito as malhas ferroviárias perderam sua relevância como principal meio de transporte de cargas no Brasil, contemplando hoje uma parcela menor do escoamento produtivo [1], e o brasileiro mesmo é alimentado, vestido, medicado, e recebe tantos outros bens necessários para garantir qualidade de vida, em razão do caminhoneiro.

O caminhoneiro, seja ele contratado ou transportador autônomo de cargas (TAC) [2], tem um histórico de sofrimento para exercício de sua atividade que permeia o início do rodoviarismo no país [3], em meados do século 20. Isso é observado especialmente para o autônomo no momento e na forma do recebimento do frete, ou seja, do recebimento da sua remuneração e dos custos da viagem contratada, que muitas vezes podem inviabilizar a prestação do serviço se não antecipados. Afinal, o caminhoneiro é um profissional autônomo, que possui seu próprio caminhão e que presta serviço de transporte rodoviário de cargas para um embarcador, dono da mercadoria transportada, e cujos trajetos muitas vezes duram dias em um país de dimensões continentais como o Brasil. É preciso pagar a hospedagem, o diesel, a alimentação, entre outros custos que são suportados, custeados, pelo valor do frete.

Ocorre que o pagamento dessa rubrica sempre foi uma grande dor de cabeça para o caminhoneiro, já que a cadeia produtiva está em constante busca por mais prazo, inserindo intermediários para que o dinheiro chegue ao destinatário final sem que seja necessário o desembolso imediato. Esse é um problema de todo o sistema, pois o próprio dono da mercadoria, muitas vezes, só receberá por aquela venda a prazo, e não possui, no momento da contratação, os valores para adiantar ao caminhoneiro. Esse cenário propiciou o nascimento da famigerada carta frete, arrebentando a corda do lado mais fraco, o do caminhoneiro, que se vê obrigado a operar diversos descontos no valor da sua remuneração para receber antecipado e possibilitar a sua viagem. Normalmente esse desconto acontece em postos de combustíveis, onde o caminhoneiro abastece, sendo aplicado um deságio que diminui consideravelmente a margem de lucro final, já que no valor do frete estão incluídas as despesas da viagem e a sua remuneração [4].

Aliado ao desconto da carta frete, também houve o aumento do preço dos combustíveis nos últimos anos e o país já experimentou paralizações em razão de greves dos caminhoneiros por diversas vezes. Tudo isso mostrou ao poder público que há uma disfuncionalidade no setor e que precisa ser tratada.

Muitos avanços foram alcançados desde o início da expansão rodoviária no país, passando pela publicação da Lei nº 6.813, em 1980, até o advento da Lei 11.442/2007 [5], que trata do transporte feito por terceiro, pelo caminhoneiro autônomo, e que trouxe, apenas muito recentemente, com a edição da Lei 14.206/2021 (fruto da Medida Provisória nº 1.051/2021), uma nova perspectiva para esse setor com a criação do Documento Eletrônico de Transporte, o DT-e, conferindo nova redação para o artigo 5º-A da Lei nº 11.442/2007:

"Artigo 5º-A  O pagamento do frete do transporte rodoviário de cargas ao TAC será efetuado em conta de depósito ou em conta de pagamento pré-paga mantida em instituição autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil, de livre escolha do TAC prestador do serviço, e informado no Documento Eletrônico de Transporte (DT-e)".

Em outras palavras, isso significa que o pagamento do frete, a partir desse momento de forma expressa na lei, deve ser feito sem descontos, em conta pré-paga e de livre escolha do TAC. Essa norma deixa claro que o pagamento não pode ser feito atrelado a um meio restritivo, como um cartão pós-pago ou um instrumento aceito apenas em uma rede conveniada específica. Deve o valor do frete ser de livre movimentação para o caminhoneiro autônomo. Isso já vinha regulado em certa medida pela ANTT, nas suas Resoluções nº 3.658/2011 e, mais recentemente, nº 5.862/2019, mas agora é previsão legal, e bastante clara.

E não foi apenas essa a grande mudança trazida pela Lei 14.206/2021, mas principalmente a criação do DT-e, um documento único de transporte para desburocratizar e trazer mais segurança para as operações desse caminhoneiro autônomo e de todo o setor, inclusive de outros modais, como o ferroviário e o aquaviário.

O DT-e foi criado com diversos princípios em mente, sendo um deles justamente a liberdade econômica no setor de transportes, com o objetivo de auxiliar a fiscalização das operações e combater formas ilegais de pagamento pelos serviços de transporte, que estejam em desacordo com a Lei 11.442/2007, como é o caso da carta frete.

Esse é um avanço importantíssimo para o setor, que agora terá mais liberdade para escolha do seu meio de pagamento e recebimento. Com a regulamentação do DT-e, que está em fases finais no Ministério da Infraestrutura, será possível aos caminhoneiros optar entre: 1) os atores que de fato tragam vantagens para a sua atividade; ou 2) seguir o caminho de redução de custos, e não mais se vejam obrigados a contratar com aqueles que drenem sua remuneração sem qualquer contrapartida. Afinal, esse é um dos seus principais aspectos: a liberdade de escolha. Pretende-se que o DT-e seja gerado por qualquer pessoa jurídica, bastando que seja feito o cadastro da operação de transporte no banco de dados governamental no ato da primeira emissão do documento (artigo 10, Lei nº 14.206/2021). Depois, essa pessoa jurídica passa a ser uma geradora de DT-e, sem qualquer custo. É a democratização dessa atividade.

O DT-e virá para unificar em um documento único todas as informações e dados da operação de transporte. No que tange ao transporte rodoviário de cargas, o objetivo é que ali estejam as informações sobre a carga, sobre os contratantes, dados sanitários, de segurança, ambientais, comerciais e, claro, de pagamento, inclusive valor do frete, entre muitos outros. Além disso, também ali há integração com dados de outros entes da federação, como os estados e municípios. As informações fiscais, por exemplo, também estão previstas para fazerem parte do DT-e, ainda que em momento futuro (artigo 4º, §3º, da Lei 14.206/2021).

Ademais, outra mudança muito importante é que o DT-e servirá como um título de crédito, que poderá ser antecipado, caso o caminhoneiro tenha interesse em ter acesso imediato a todas as parcelas do seu frete (artigo 5º-A, §10º, da Lei 11.442, incluído neste ano pela Lei 14.206), sem sofrer os descontos da informalidade nos postos de combustíveis, atrelados à carta frete, já que possuirá maior liberdade e segurança para oferecer seus títulos a venda no mercado.

As alterações, porém, não se limitam aos meios de pagamento. Isso porque a emissão do DT-e também é orientada por outros valores como a proteção de informações e dados e a eficiência e desburocratização das operações relativas ao transporte de cargas, na esteira da tão recente LGPD.

O Brasil optou por proteger os dados pessoais de seus cidadãos acompanhando o movimento europeu de proteção de dados pessoais, decorrente da necessidade de conferir maior tutela aos indivíduos diante do uso descontrolado e inadequado das novas tecnologias. É óbvio que esse movimento também deve estar refletido na elaboração e no acesso às informações presentes no DT-e. Se o documento unificará diversos dados acerca da operação de transporte, inclusive pessoais do próprio caminhoneiro, é natural que se pense na aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) em conjunto com normas próprias relativas ao DT-e, e que venham conferir proteção a esse ator da cadeia.

Para além da proteção de dados pessoais, o conteúdo do DT-e deve ser preservado de acesso indevido por agentes envolvidos ou não na operação de transporte, pois a legislação acertadamente impõe que se garanta a segurança dos dados e o sigilo fiscal, bancário e comercial das informações contempladas (artigo 4º, §1º, Lei nº 14.206/2021). Da mesma forma, não faz sentido permitir acesso ao teor do documento por sujeito que não tenha relação direta com todo o conteúdo do DT-e (exempli gratia, nas operações de transporte com mais de um contratante dos serviços de transporte  transporte de carga fracionada  não se justifica que um contratante tenha acesso a informações referentes ao contrato de transporte feito por outro, ainda que todas as entregas sejam efetuadas pelo mesmo transportador).

Mas os deveres de segurança de dados e sigilo precisam ser compatibilizados com a necessidade de compartilhamento das informações entre entes do poder público nas esferas federal, estadual e municipal, bem como com as entidades emissora e geradora do DT-e, que precisarão ter acesso aos seus dados para exercerem a fiscalização relativa às obrigações legais, administrativas e fiscais referentes à operação de transporte (artigo 6º, Lei nº 14.206/2021). O compartilhamento das informações ainda é necessário para que se impeça o cometimento de ilícitos, como fraudes no setor. É uma das formas pelas quais se possibilita o cumprimento dos objetivos do novo documento de transporte, conforme se depreende dos artigos 3º e 4º da Lei 14.206/2021.

Entre esses objetivos estão a atribuição de eficiência e a desburocratização do setor, trazendo benefícios também ao embarcador e à transportadora. Assim, por todos esses motivos, especialmente a necessidade de proteção de dados de um documento que já nasce unificado, justifica-se a imposição de que o DT-e seja exclusivamente digital, aplicando-se a ele as determinações da Lei nº 14.129/2021 (Lei do Governo Digital), especialmente no que se refere à interoperabilidade de dados entre órgãos públicos (seção II do capítulo IV da lei).

A tendência pela desburocratização, evidenciada na própria unificação de informações no DT-e, por si só, já se mostra um grande benefício para todos os agentes participantes das operações de transporte, que poderão registrar as informações no documento e acompanhar eventuais alterações com facilidade, podendo, inclusive, se valer das mesmas como meio de prova perante o poder público. Igualmente para a Administração Pública, essa desburocratização será benéfica por facilitar a troca de informações entre órgãos federais e entre entes nos âmbitos federal, estadual e municipal, permitindo melhor fiscalização e prevenção contra ilicitudes. Para o caminhoneiro, esse documento será uma garantia de maior qualidade de vida nas estradas; para o transportador, facilidade na sua operação e menor burocracia; e para o embarcador, preços e prazos mais competitivos, além de maior qualidade no serviço.

Todos esses benefícios, entre outros mais, fomentarão a atividade de transporte no Brasil e, especialmente, possibilitarão uma vida melhor para a ponta da cadeia que estava precisando de maior atenção do Estado, o caminhoneiro.

Essa é uma classe que sofre há muitos anos com a falta de atenção do poder público e agora parece que avanços importantes estão vindo para mudar esse cenário. Esperamos que os princípios e valores gerais que nortearam a criação do DT-e pelos poderes constituídos de fato sejam aplicados no Brasil e orientem as condutas dos agentes envolvidos nas operações de transporte. Nosso dever, como operadores do Direito, é não apenas conhecer e estudar essas normas, mas pô-las em prática de acordo com o espírito legislativo que as criou. É mesmo com qualidade maior de trabalho que, ainda que lento, o avanço social vai se apresentando.

 


[1] Em 2018, o transporte ferroviário de cargas representava 15% dos transportes de cargas no país, conforme dados do BNDES (BNDES. As ferrovias no transporte de cargas brasileiro. Disponível em: <https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/conhecimento/noticias/noticia/ferrovias>. Acesso em: 15.12.2021), porém, atualmente, sua participação na matriz de transportes de cargas tem crescido (MINISTÉRIO DA INFRAESTRUTURA. Transporte de cargas pelas ferrovias do país cresceu 30% em março. Disponível em: <https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/noticias/2021/5/transporte-de-cargas-pelas-ferrovias-do-pais-cresceu-30-em-marco>. Acesso em: 15.12/2021), apesar de ainda não ser tão relevante quanto o transporte rodoviário que representava em 2020 cerca de 65% da matriz de transportes de carga no país (EXAME. Caminhoneiros na pandemia: volume de carga transportada por rodovias aumentou 62% em 2020. Disponível em: <https://exame.com/negocios/caminhoneiros-na-pandemia-volume-de-carga-transportada-por-rodovias-aumentou-62-em-2020/>. Acesso em: 15.12.2021), sendo o modal mais expressivo.

[2] Conforme definido pela Lei 11.442/2007.

[3] PAULA, Dilma Andrade de. Estado, sociedade civil e hegemonia do rodoviarismo no Brasil. Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 142-156, jul. 2010, p. 144.

[4] Nos termos do §1º do artigo 4º da Lei nº 13.703/2018: "Os pisos mínimos de frete deverão refletir os custos operacionais totais do transporte, definidos e divulgados nos termos de regulamentação da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), com priorização dos custos referentes ao óleo diesel e aos pedágios". A regulamentação mencionada na lei é a Resolução nº 5.867/2020, que prevê em seus anexos todos os custos compreendidos no piso mínimo do frete: os fixos, como, dentre outros, os referentes a pernoites e alimentação, e os variáveis, como os custos de manutenção do veículo, combustíveis, lubrificantes para motor etc.

[5] A regulação do setor pelo Poder Público se iniciou com a Lei nº 6.813/80, diante do contexto do Transporte Rodoviário de Cargas no país no período (TEDESCO, Giovanna Megumi Ishida; VILLELA, Thaís Maria de Andrade; GRANEMANN, Sérgio Ronaldo; FORTES, José Augusto Abreu Sá. Mercado de Transporte Rodoviário de Cargas no Brasil. Revista ANTT. Vol. 3, n. 2, novembro 2011 [documento eletrônico]. Disponível em: <http://appweb2.antt.gov.br/revistaantt/ed5/_asp/ArtigosCientificos-MercadoDeTransporte.asp#>. Acesso em: 10.12.2021. Nesse sentido, explicite-se que a evolução da regulação nesse setor econômico passou pelas Lei nºs 6.813/80 e 7.092/83 – esta última que criou o Registro Nacional de Transportes Rodoviários de Bens (RTB) e veio a ser considerada incompatível com a Constituição de 1988 – até chegar nas mais recentes regulações, previstas nas Leis nºs 11.442/2007 e 14.206/2021, bem como na Resolução ANTT nº 3.056/2009, posteriormente substituída pela Resolução ANTT nº 4.799/2015, e na Resolução ANTT nº 3.658/2011, sucedida pela Resolução ANTT nº 5.862/2019.

Autores

  • é advogado head do Departamento Jurídico do Target Bank, supervisor orientador do Grupo de Estudos Processuais do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (GEP PUC-RIO), especialista em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro da Comissão OAB Vai à Escola no Rio de Janeiro.

  • é advogado do Departamento Jurídico do Target Bank, graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, pós-graduando em Direito Digital pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio) em conjunto com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro do Grupo de Estudos Processuais do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (GEP PUC-RIO).

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