Observatório Constitucional

Nova declaração de princípios da liberdade acadêmica no espaço interamericano

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18 de dezembro de 2021, 8h00

A publicação do relatório Free to Think 2021 [1] pela Scholars at Risk (SAR), no último dia 9 de dezembro, dá conta de um diagnóstico trágico (mas não surpreendente!) em relação à extensão do risco à liberdade acadêmica no Brasil. A sua conclusão é a de que, entre nós, a liberdade acadêmica é merecedora de profunda preocupação. Algumas razões para isso são ali elencadas e remontam a episódios frequentes no Brasil nos últimos anos: a politização do ensino superior em processos de nomeação de reitores universitários, as ações judiciais visando punir professores por suas opiniões e as proibições de que estudantes se manifestem politicamente nos campi. O relatório culmina com um apelo "às autoridades públicas do Brasil para respeitar, proteger e promover a liberdade acadêmica" [trad. nossa].

Vem em boa hora, portanto, a publicação dos Principios Interamericanos sobre Libertad Académica y Autonomía Universitaria [2] pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A declaração, que abriga de modo inaugural no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) o tratamento da liberdade acadêmica no âmbito do ensino superior [3], inspira-se em alguns dos já consagrados documentos sobre a temática, como a Declaración de Principios sobre Libertad Académica y de Cátedra de la Asociación Americana de Profesores Universitarios (AAUP) y de la Asociación de Facultades Americanas e a Declaración de Lima sobre Libertad Académica y Autonomía de las Instituciones de Educación Superior, mas avança tanto no que diz respeito ao seu alcance, quanto (e sobretudo) ao equilibrar a formulação detalhada de conceitos com a diversidade e identidade cultural dos países americanos, mostrando-se também atenta aos profundos impactos da internet e das novas tecnologias no ensino na pesquisa.

Acertadamente, a declaração toma como ponto de partida o reconhecimento de um direito humano autônomo à liberdade acadêmica, que se relaciona — mas não se confunde! — com os direitos à liberdade de expressão, à educação, à reunião e ao progresso científico, entre outros, o que torna não apenas aconselhável, mas mesmo exigível conceder-lhe um tratamento jurídico próprio, especialmente no que diz respeito aos seus limites e restrições.

Ainda em sua base está o reconhecimento do enlace entre democracia e liberdade acadêmica [4], sustentado pelo exercício desta última de maneira afinada ao pluralismo de ideias como forma de combater autoritarismos de qualquer natureza nos espaços acadêmicos.

Nestas primeiras notas sobre a Declaração de Princípios, conferimos particular atenção à delimitação do âmbito de proteção da liberdade acadêmica empreendida pela CIDH, aspecto que, em nosso juízo, constitui o ponto de partida para a compreensão de todas as demais temáticas contidas no documento.

Em seu Princípio 1, a declaração define o âmbito de proteção da liberdade acadêmica, reconhecendo suas dimensões individual e coletiva.

A primeira delas equivale ao "direito de todos de buscar, gerar e transmitir conhecimentos, fazer parte de comunidades acadêmicas e realizar trabalhos autônomos e independentes para executar atividades de acesso à educação, docência, aprendizagem, ensino, pesquisa, descoberta, transformação, debate, busca, divulgação de informações e ideias de forma livre e sem medo de retaliação" [trad. nossa].

Assim considerada, a liberdade acadêmica assenta-se como um direito amplo que acolhe, a princípio, todo tipo de atividade relacionada à produção e difusão do conhecimento científico, e por isso mesmo abarca o que podemos designar "liberdades parciais", à exemplo das liberdades de ensinar e de pesquisar. E nesse seguimento, atenta ao processo de desterritorialização da educação [5], a declaração é exitosa ao desatrelar o exercício da liberdade acadêmica de espaços físicos e formais de educação superior, apregoando que "a liberdade acadêmica é protegida da mesma forma dentro e fora dos centros educacionais, bem como em qualquer lugar onde se desenvolva o ensino e a pesquisa científica" [trad. nossa], com o uso de meios analógicos e digitais.

Nesse particular, além de reconhecer a pulverização dos espaços de ensino e pesquisa, notadamente com a inserção de tecnologias no processo educacional, a declaração avança — de acordo com a nossa leitura por ocasião dessa primeira reflexão sobre o seu teor — ao incluir no âmbito de proteção da liberdade acadêmica o que se pode chamar de sua "dimensão extramuros", a qual, grosso modo, refere-se ao direito de o professor/pesquisador manifestar-se em público, na condição de cidadão, sobre assuntos não relacionados precisamente com sua área de expertise, para isso sendo acobertado pela liberdade acadêmica, e não pelo direito à liberdade de expressão em geral, por uma série de razões que já desenvolvemos em outra oportunidade [6].

Quanto à dimensão coletiva da liberdade acadêmica, a declaração a relaciona ao direito de cada um de ter acesso ao conteúdo produzido na academia e beneficia-se dos resultados de pesquisas, inovação e do progresso científico de maneira geral. De tal definição é possível extrair uma imediata conexão entre a dimensão coletiva da liberdade acadêmica e uma de suas "liberdades parciais", qual seja a liberdade de pesquisar.

Segundo a Declaração de Princípios da AAUP (Associação de Professores Universitários), que inspira a CIDH, em virtude da sua liberdade acadêmica "os professores têm direito à plena liberdade na pesquisa e na publicação dos resultados, sem prejuízo ao desempenho adequado dos seus outros deveres acadêmicos…" [trad. nossa]. Assim, enquanto de um lado há o direito de pesquisar, de outro há o direito de acesso aos resultados de pesquisas, que pode se dar tanto no plano das relações de ensino — o que enaltece a profícua, embora não necessária, relação de precedência temporal entre liberdade de pesquisar e liberdade de ensinar —, como também por intermédio de publicações científicas e mesmo por meio da conversão dos resultados de pesquisas científicas em benefícios coletivos, o que põe em relevo a relação (nem sempre simples) entre instituições de ensino superior e de pesquisa, Estado [7] e mercado [8].

Consta, ainda, no Princípio 1, que a "a liberdade acadêmica protege a diversidade de métodos, temáticas e fontes de investigação afins às práticas e regras de cada disciplina" [trad. nossa]. O aspecto é da maior importância [9], uma vez que, se o que caracteriza o conhecimento acadêmico (e o distingue da mera informação) é a produção conduzida por um método científico, sem liberdade para a realização de escolhas metodológicas, todas as demais condutas amparadas pelo âmbito de proteção da liberdade acadêmica, tais como o ensino e a pesquisa, resultam comprometidas, cabendo inclusive sustentar, a nosso ver, que decidir sobre aspectos metodológicos compõe parcela do núcleo essencial da liberdade acadêmica.

Por fim, o dispositivo revela especial atenção à temática indígena, reforçando o que em parte já se encontra no artigo XV da Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas [10], ao ressaltar que a proteção da liberdade acadêmica deve afinar-se ao reconhecimento da educação dentro de suas comunidades e para os seus membros, ofertando-se na língua falada pelo grupo, e observando-se a sua identidade cultural, seu conhecimento tradicional, bem como suas aspirações de ordem social e econômica.

Com estas breves notas, manifestamos o nosso desejo de chamar atenção para a relevância do debate acerca da liberdade acadêmica no Brasil, e, especialmente, nossa aspiração de que as Instituições de ensino superior e pesquisa brasileiras incorporem em suas praxes os princípios traçados pela OEA, em proveito do princípio democrático (CF, artigo 1º), do objetivo educacional de preparar cidadãos (CF, artigo 205) e do desenvolvimento da pesquisa para o bem público (CF, artigo 2018, § 1º).

Além disso, a despeito da sua condição (por ora) de soft law, isto é, de não ter o caráter vinculante de um tratado internacional devidamente ratificado pelo número necessário de países e, no caso do Brasil, aprovado pelo Congresso Nacional e incorporado ao ordenamento interno, a declaração (e aqui só tivemos condições, dado o espaço disponível, de oferecer uma breve introdução ao seu teor), oferece parâmetros normativos de alta relevância, destinados a orientar a compreensão e aplicação do conteúdo e do alcance do direito humano e fundamental à liberdade acadêmica consagrado na nossa CF (conforme entendemos em seu artigo 206, II). Já por essas razões, urge que a declaração seja por todos conhecida e lida.


[1] Trata-se de relatório anual do Projeto de Monitoramento da Liberdade Acadêmica do Scholars at Risk, que em 2021 chegou a sua sétima edição, realizando a análise de mais de trezentos casos de violação da liberdade acadêmica em diferentes países ocorridos entre 01/11/2020 e 31/08/2021, v. SCHOLARS AT RISK. Free to Think 2021: Report of the Scholars at Risk Academic Freedom Monitoring Project. Disponível em: https://www.scholarsatrisk.org/resources/free-to-think-2021/#about-free-to-think-2021. Acesso em: 13 dez. 2021.

[2] OEA/CIDH. Principios Interamericanos sobre Libertad Académica y Autonomía Universitaria. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/relatorios/questionarios.asp&Q=43. Acesso em: 13 dez. 2021.

[3] A Declaração demarca a educação superior como o seu campo de incidência, destacando que o tratamento conferido pela OEA à educação básica é aquele que se encontra no Protocolo de San Salvador.

[4] O principal motivo para apostar na relação entre liberdade acadêmica e democracia, segundo Robert Post, é que "aqueles que possuem conhecimento especializado são menos vulneráveis à persuasão pautada em argumentos débeis e, além disso, tornam-se mais eficientes na fiscalização da atividade governamental" [trad. nossa], v. POST, Robert C. Democracy, expertise, and academic freedom. Yale: Yale University Press, 2012. p. 33.

[5] Sobre o ponto, v. TRAVINCAS, Amanda C. Thomé Travincas. Liberdade acadêmica extramuros: um retorno à questão. In. ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos fundamentais, dignidade, Constituição: estudos em homenagem a Ingo Wolfgang Sarlet. Londrina: Thor, 2021. p. 451-65.

[6] Já exploramos o tema em SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet; TRAVINCAS, Amanda C. Thomé. O direito fundamental à liberdade acadêmica — notas em torno de seu âmbito de proteção: a ação e a elocução extramuros. Revista Espaço Jurídico. v. 17, nº 2, 2016. p. 529-45.

[7] Destacando a relevância coletiva da pesquisa no plano de um determinado Estado e de uma comunidade como limite à liberdade de pesquisar, p. ex., POST, Robert C.; FINKIN, Matthew W. For the common good: principles of american academic freedom. New Haven: Yale University Press, 2009. p. 53 et seq.

[8] Sobre o tema, p. ex., ETZKOWITZ, Henry. The second academic revolution and the rise of entrepreneurial science. IEEE Technology and Society Magazine. v. 20, n. 2, 2001. p. 19-29.

[9] Em geral, os estudos sobre liberdade acadêmica centram-se na definição do que pode ou não, em termos de conteúdo, ser abordado em sala de aula ou servir como objeto de uma pesquisa. A questão da liberdade metodológica surge normalmente de maneira tímida e em momento posterior, conforme EGAN, Kieran. What Is Curriculum?. Journal of the Canadian Association for Curriculum Studies. v. 1, n. 1, 2003. p. 09-16.

[10] OEA. Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. 2016. Disponível em: https://www.oas.org/en/sare/documents/DecAmIND_POR.pdf. Acesso em 14 dez. 2021.

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