Diário de Classe

Pão e circo: a institucionalização do espetáculo a partir do caso Kiss

Autores

  • Jefferson de Carvalho Gomes

    é doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá (bolsista Prosup-Capes) mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis (bolsista Prosup-Capes) especialista em Criminologia Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

  • Alberto Sampaio Júnior

    é advogado mestrando em Direito pela Unesa e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

18 de dezembro de 2021, 8h00

A política do panem et circenses, desenvolvida na Roma antiga, é, em síntese, uma espécie de cortina de fumaça, com a qual os líderes políticos buscavam manter determinado apoio dos cidadãos e, consequentemente, exercer controle social. Ou seja, a política do pão e circo pode ser vista como uma estratégia retórica para dispersar a atenção do povo frente aos reais problemas ocorridos na pólis. Dava-se, portanto, pão ao povo e se promovia o espetáculo, para que não fosse possível ficarem atentos aos problemas políticos daquela sociedade. Percebe-se, portanto, que a espetacularização social, muito antes do conceito estabelecido por Guy Debord, já era utilizada para o regozijo popular. Pois bem.

Nas últimas semanas, o Brasil acompanhou o julgamento do caso Boate Kiss. Foram dias e mais dias de audiências, com debates acalorados entre acusação e defesa, restando a condenação dos quatro réus submetidos ao júri popular, com a imposição de elevadíssimas penas de privativas de liberdade. A condenação, aliada à toda espetacularização ocorrida durante o caso, era previsível. Como todo espetáculo à moda romana, o público-telespectador, sedento pelo resultado, aguardava a sentença condenatória. O juiz, por sua vez, que utilizou máscara facial durante todas as audiências, resolveu tirá-la, a fim de, pausadamente, anunciar o destino dos "odiados" da pólis.

Comentaristas já apostavam o que sucederia dali por diante. O garboso magistrado, traçando, linha por linha, o destino dos réus, anunciou as penas e, como ato final, decretou a prisão dos quatro acusados, com respaldo no famigerado pacote anticrime. Ou seja, uma vez condenados, todos deveriam ser submetidos à execução provisória da pena privativa de liberdade, ressaltado, ainda, que a medida extrema visava a preservação da imagem dos acusados (como se isso fosse possível diante de tanta espetacularização). Por fim, o magistrado determinou o não uso de algemas, ainda que a súmula vinculante 11, do STF já o fizera.

Como em toda trama espetaculosa, surge o plot twist. Ao fundo, ouve-se uma voz: "excelência, pela ordem!". Um dos advogados informou ao juiz, naquele momento já em posição de carrasco, que o show deveria parar, porquanto o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ-RS) acabara de conceder medida liminar, em habeas corpus preventivo, determinando que os acusados pudessem recorrer da condenação em liberdade.

A aparente euforia do magistrado deu lugar a uma nítida decepção, estampada em sua face e no tom de voz, uma vez que necessitava acatar a ordem superior. Porém, quando todos imaginavam que o espetáculo havia terminado, o Ministério Público, sorrateiramente, protocolizou requerimento de suspensão de liminar junto ao Supremo Tribunal Federal, cuja utilização, na seara criminal, para além de excepcional, acarreta, no caso, supressão de instância. Uma vez distribuída, o ministro Luiz Fux, avocando para si o papel de condutor da espetacularização, suspendeu a liminar concedida pelo TJ-RS, determinando o imediato cumprimento de execução de pena.

O julgamento dos réus envolvidos no episódio da Boate Kiss é senão mais um nítido exemplo dos prejuízos decorrentes da midiatização e do populismo criminológico no resultado de determinados casos criminais. Evidentemente, não se questiona as expectativas sociais que recaem sobre a administração da justiça, e sim a postura adotada por alguns personagens da persecução criminal frente aquilo que se convencionou chamar de "vozes das ruas", a exemplo da decisão proferida pelo ministro Luiz Fux, que suspendeu os efeitos de medida liminar que impedia a imediata execução de condenação proferida pelo Tribunal do Júri. Eis um dos trechos da decisão que sintetiza o argumento:

"Ao impedir a imediata execução da pena imposta pelo Tribunal do Júri, ao arrepio da lei e da jurisprudência, a decisão impugnada abala a confiança da população na credibilidade das instituições públicas, bem como o necessário senso coletivo de cumprimento da lei e de ordenação social".

Em meio a argumentos que sustentam, em tese, a submissão do Poder Judiciário à vontade popular, pois é isso que pode se depreender do trecho acima mencionado, a referida decisão afasta o Supremo Tribunal Federal de sua missão institucional: defender a ordem jurídico-constitucional vigente.

Deve o Supremo ouvir as vozes das ruas? Se a resposta for positiva, devemos nos reportar aos discursos que antecederam os atos ocorridos por ocasião do feriado de 7 de setembro, que ficaram comumente conhecidos como atos antidemocráticos, pois clamavam, entre tantos absurdos, o fechamento do Congresso Nacional, destituição de Ministros do Supremo Tribunal Federal, retorno ao AI-5, etc. Acertadamente, em diversos discursos proferidos no plenário do Supremo, o próprio Min. Fux asseverou o papel contramajoritário que cabe o STF, na salvaguarda da ordem constitucional vigente. Entretanto, quando confrontamos a postura do Min. Fux durante os atos antidemocráticos em face dos argumentos que serviram de fundamento para suspender a referida liminar, nos deparamos com atitudes completamente contraditórias, que somente conseguem ser explicadas a partir do excesso de discricionariedade judicial, que há tempos deprecia a prestação jurisdicional no Brasil.

Obviamente, não deve o Supremo ouvir clamores antidemocráticos. Evidentemente, mesmo se considerarmos o predicado político daquele Tribunal, eventuais respostas aos anseios populares devem estar alinhadas ao texto constitucional, respeitando-se direitos e garantias fundamentais, a exemplo da presunção de inocência.

A desastrosa decisão que suspendeu os efeitos da aludida liminar é o retrato do que já vem sendo denunciado de há muito por Lenio Streck: o solipsismo [1] judicial. A atitude tomada pelo ministro Fux é o fiel retrato de um Judiciário que confunde o seu papel de dizer o Direito e num explícito jogo de poder, passando a avocar, para si, a condição de dono dos sentidos da lei, atitude perceptível no decido conforme a minha consciência, apontado por Streck.

Neste ponto, sempre importante trazer a reflexão do professor, ao afirmar que

"Essa talvez seja a parte mais difícil de compreender na teoria do Direito: a de que, antes dos juízes, existe uma estrutura chamada “Direito” e que, por vezes, não diz exatamente a mesma coisa que cada juiz pensa. Esse é o lócus da doutrina jurídica: fazer essa transição paradigmática entre o Direito (estrutura) e o imaginário dos operadores. Ora, o cidadão que vai ao Judiciário não quer saber o que o juiz tem a dizer. Quer saber o que o Direito tem a dizer. Há que se levar os direitos e o Direito a sério. Daí por que juiz não escolhe. Juiz decide" [2].

Queda explícito, portanto, a real função do Judiciário: dizer o Direito, e não criar o Direito, como defendia o justice Scalia, por exemplo, em seu clássico A matter of interpretation. Por mais que muitos juízes no Brasil se encantem com o canto da sereia, quando defendem veementemente o modelo norte-americano de aplicação do Direito, há que se lembrar, sempre, que a tradição e a historicidade na qual os dois sistemas se fundam são completamente distintas e incompatíveis entre si. Não dá para tratar com regras de common law um sistema puramente baseado numa tradição de civil law.

E não dá justamente porque aqui, em nosso sistema, tradicionalmente civil law, a lei nos diz o norte a ser seguido, ou seja, a lei é o céu semântico de quem cabe aplicá-la, sendo também o freio necessário para que, na atividade de intérprete, não se possa dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.

É nítido que o artigo 492, I, e, tem encontro marcado com uma ADI, pois não é crível que depois de todo o debate ocorrido no Direito brasileiro, sobretudo no próprio STF, nos últimos cinco anos, perpassando pelo malfadado HC 126.292/SP e as heroicas ADCs 43, 44 e 54, ainda reste alguma dúvida sobre o conceito de trânsito em julgado, explicitado no art. 5º, LVII, da Constituição da República e, por conseguinte, se admita a execução provisória de uma pena criminal.

O Direito não pode ficar refém da vontade subjetiva de seu aplicador, pois como aprendemos de há muito com Lenio Streck [3]

"a autonomia deve ser entendida como ordem de validade, representada pela força normativa de um direito produzido democraticamente e que institucionaliza (ess)as outras dimensões com ele intercambiáveis (portanto, a autonomia do direito não emerge apenas na sua perspectiva jurisprudencial, como acentua, v.g., Castanheira Neves — há algo que se coloca como condição de possibilidade ante essa perspectiva jurisprudencial: a Constituição entendida no seu todo principiológico), apontando para a Constituição como fio condutor dessa intermediação, cuja interpretação deve ser controlada hermeneuticamente, evitando-se que o sentido a ser atribuído ao seu texto e ao conjunto normativo infraconstitucional vá além ou fique aquém desse fundamento normativo".

Neste sentido, para concluir, é que justamente o Direito haverá sempre de ser o freio necessário aos anseios subjetivos de quem o aplica, pois somente assim conseguirá ter a sua autonomia garantida e, ao fim, garantir que as decisões judiciais sejam fruto de uma construção democrática que decorra de um comando normativo-legal, e não da consciência de quem julga. Caso contrário, estaremos fadados ao paradoxo Chico César: "Deus me proteja de mim, e da maldade de gente boa" e teremos sempre que recorrer à Agostinho Ramalho: "E quem nos salvará da bondade dos bons"!?


[1] Cf. Verbete Solipsismo in: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017. p.273.

[2] STRECK, Lenio Luis. Respondendo: e ainda se ensina processo penal nas faculdades? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-05/senso-incomum-respondendo-ainda-ensina-processo-penal-faculdades.

[3] STRECK, Lenio Luis. Autonomia do direito e decisão judicial. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/autonomia-direito-decisao-judicial/

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