Opinião

A gravidade abstrata das circunstâncias judiciais

Autor

  • Nicole Ellovitch

    é advogada criminalista no Andre Kehdi & Renato Vieira Advogados especialista em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especializanda em Criminologia pela Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo-IBCCRIM.

17 de dezembro de 2021, 9h04

A decisão recentemente proferida pelo ministro Alexandre de Moraes no RE 1.344.374 tem sido alvo de duras  e merecidas  críticas. E não é para menos. Muitos são os pontos passíveis de reprovação do decisum que, na realidade, materializa um retrocesso ao já caótico sistema prisional e à falha prestação jurisdicional.

O Habeas Corpus nº 596.603 do STJ, cuja decisão foi parcialmente desconstituída no RE acima, visava a corrigir uma ilegalidade reiteradamente praticada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em desrespeito à jurisprudência dos tribunais superiores: a imposição a pessoas condenadas por tráfico privilegiado, com pena-base fixada no mínimo legal e pena final inferior a quatro anos de regime inicial fechado com fundamento, em regra, na gravidade abstrata do delito — ou seja, sem fundamentação válida a justificar o regime imposto. Uma tentativa de corrigir injustiças recorrentes simplesmente levada por água abaixo.

A decisão é triste notícia para quem milita na área, e pede reflexão e debate aberto sobre a má aplicação dos dispositivos legais quando da individualização da pena e da fixação do regime prisional inicial. Isso porque apesar de a lei dispor, como afirmado pelo ministro Moraes, que cabe ao julgador, "como em todo ato restritivo de direitos, proceder ao exame da matéria à luz das particularidades de cada caso concreto", referida diretriz não é observada, em especial na fixação do regime inicial de cumprimento de pena.

É verdade que os tribunais superiores já editaram súmulas fazendo referência à proibição de fixação de regime mais severo com base na gravidade abstrata do crime ou sem motivação idônea (Súmulas 718 e 719 do STF e 440 do STJ). Nada de específico se fala, no entanto, sobre a uniformidade da jurisprudência no sentido de permitir o recrudescimento indiscriminado dos regimes prisionais, com fundamento no artigo 33, §3º, do Código Penal, única e tão somente pela existência de circunstâncias judiciais desfavoráveis  sem correlacioná-las de forma fundamentada à necessidade de regime mais gravoso no caso concreto.

O que hoje se vê, conforme se demonstrará, é a imposição de regimes mais severos com base em uma gravidade abstrata das circunstâncias judiciais, sem se aproximar de uma motivação minimamente razoável.

É de conhecimento geral que, para a imposição de uma sanção penal a determinado indivíduo, deve o magistrado verificar se a conduta praticada encontra identidade nas figuras típicas estatuídas no Código Penal ou na legislação esparsa. Somente após ultrapassar tal fase e tendo concluído que o fato objeto de contraditório se subsume à norma penal é que passa à dosimetria da pena.

Estabelecido o quantum de pena a ser aplicada a determinado indivíduo de acordo com as regras do artigo 68, do Código Penal, é dever do magistrado fixar o regime inicial de cumprimento da sanção corporal.

Os limites existentes para as diferentes faixas de pena privativa de liberdade estão previstos no artigo 33, §2º, do CP: para uma pena privativa de liberdade igual ou inferior a quatro anos, o regime inicial a ser fixado poderá ser o aberto; se superior a quatro, mas inferior a oito anos, regime semiaberto; e, se superior a oito anos, o fechado. Na sequência, o §3º do mesmo dispositivo estatui que serão observadas as circunstâncias judiciais para a determinação do regime inicial da pena  referido dispositivo, para a infelicidade dos tutelados, tem sido incansavelmente utilizado de forma inadequada como argumento para recrudescer o regime inicial de cumprimento de pena privativa de liberdade.

Um julgado recente do Superior Tribunal de Justiça ilustra com perfeição o entendimento do Poder Judiciário sobre o tema. No agravo regimental nos embargos de declaração no Recurso Especial nº 1.940.825/PE, de relatoria do ministro Joel Ilan Paciornik, o agravante fora condenado porquanto teria "adquirido veículo automotor que sabia ser produto de crime e fazer uso de Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo — CRLV falso perante servidores públicos federais (policiais rodoviários federais)", tendo sua pena sido fixada em um ano, três meses e cinco dias pelo crime de receptação (artigo 180, CP) e dois anos e três meses pelo crime de uso de documento falso (artigo 304, do CP).

Em relação aos dois crimes os antecedentes foram considerados desfavoráveis, enquanto em relação ao crime de receptação as circunstâncias também o foram porquanto "o réu conduzia veículo automotor com sinais identificadores adulterados, o que dificulta a descoberta da origem criminosa do bem e, consequentemente, do delito de receptação, de modo que tal particularidade deve ser sopesada em desfavor do acusado". Sem agravantes ou atenuantes, sem causas de aumento e/ou diminuição. Unificadas as penas em três anos, cinco meses e cinco dias de reclusão e 25 dias-multa, foi fixado regime inicial semiaberto.

O argumento que justificou a imposição de regime mais gravoso do que o previsto para o quantum de pena, com referência ao artigo 33, §3º, do Código Penal, foi o de "registro de duas circunstâncias judiciais desfavoráveis, com destaque para a presença de antecedentes criminais" [1]. Tal fundamentação fora reiterada em segundo grau e no STJ, oportunidade em que o ministro relator trouxe precedente no sentido de que "ainda que a pena definitiva tenha sido fixada em quantum inferior a quatro anos de reclusão, autorizado está o recrudescimento do regime".

É inegável que o artigo 33, §3º, do Código Penal foi criado para possibilitar a individualização da pena quando da fixação do regime prisional com base nas circunstâncias judiciais. No entanto, seria a mera existência de uma ou duas circunstâncias judiciais desfavoráveis suficiente para o recrudescimento do regime de pena? O fato de o dispositivo autorizar a imposição de regime mais gravoso quer dizer que isso deve acontecer em todo e qualquer caso?

Uma pequena digressão se faz necessária.

A atual redação do artigo 33, §§1º a 3º, do Código Penal foi acrescida por meio da edição da Lei 7.209/84, muito comemorada à época. Na exposição de motivos de tal lei, Ibrahim Abi-Ackel, então ministro da Justiça, trouxe à tona a preocupação com o aperfeiçoamento da legislação penal em razão da "pressão dos índices de criminalidade e suas novas espécies, a constância da medida repressiva como resposta básica ao delito, a rejeição social dos apenados e seus reflexos no incremento da reincidência, a sofisticação tecnológica" [2] .

Ao tratar das penas, o ex-ministro destacou a importância de uma política criminal que impusesse aos seus cidadãos uma pena privativa de liberdade única e tão somente quando absolutamente necessária, buscando-se, assim, sanções alternativas para indivíduos "sem periculosidade ou crimes menos graves". Ressaltou muito claramente que não visava à abolição da pena privativa de liberdade, mas a sua limitação aos casos de reconhecida imprescindibilidade, uma vez que, em suas palavras, a crítica ao redor do mundo em relação ao encarceramento decorreria de "tratamento penal frequentemente inadequado e quase sempre pernicioso, a inutilidade dos métodos até agora empregados no tratamento de delinquentes habituais e multi-reincidentes, os elevados custos da construção e manutenção dos estabelecimentos penais, as consequências maléficas para os infratores primários, ocasionais ou responsáveis por delitos de pequena significação, sujeitos, na intimidade do cárcere, a sevícias, corrupção e perda paulatina da aptidão para o trabalho" (sic).

Nessa toada, além de aumentar as possibilidades de progressão de regime, a comissão que auxiliou na elaboração de tal alteração legislativa entendeu de grande importância acrescentar o artigo 33, §3º, ao Código Penal, com o objetivo de possibilitar a pessoas condenadas a penas privativas de liberdade inferiores a oito anos o cumprimento de suas sanções em "condições menos severas, atentas às condições personalíssimas do agente e a natureza do crime cometido".

O que se vê, 37 anos após a edição da Lei 7.209/84, é a completa desvirtuação do dispositivo, outrora criado para evitar o encarceramento desnecessário. O fenômeno que têm se observado é a permissão indiscriminada de imposição de regimes mais severos do que os autorizados pelas penas diante da mera constatação da existência de circunstâncias judiciais negativas, sem fundamento específico apto a justificar a necessidade de agravamento do regime fixado.

A análise dos relatórios elaborados pelo Departamento Penitenciário Nacional revela que há uma defasagem relevante na obtenção dos dados relativos aos tempos totais das penas a que os detentos foram condenados. No período de julho a dezembro de 2020, por exemplo, apenas foram coletadas informações quanto ao tempo total das penas impostas em relação a 45,82% da população prisional.

Diante disso, parecem servir de parâmetro mais confiável os dados informados pelo estado de São Paulo em dezembro de 2019  última data em que foram divulgados [3]. Não obstante também haja certa defasagem desses dados [4], alguns números merecem atenção.

Dos 221.573 homens presos, 24.869 (11,22%) haviam sido condenados a pena igual ou inferior a quatro anos, 59.225 (26,72%), entre quatro e oito anos e 77.212 (34,84%), a penas superiores a oito anos de reclusão. No entanto  excluindo-se os 43.768 (19,75%) presos provisórios e o registro de que não existem informações a respeito dos presos em regime aberto , 38.481 (17,36%) estavam a cumprir suas penas em regime semiaberto e 136.390 (61,55%) em regime fechado.

Ao que tudo indica, a relação entre a interpretação equivocada  e perniciosa  do artigo 33, §3º, do Código Penal tem influência direta nos números acima mencionados: quase o dobro de pessoas condenadas a uma pena que levaria ao regime fechado está cumprindo a sanção na forma mais gravosa que há. Os números são escandalosos, mas pioram ainda mais quando se pensa que, entre os homens que estão cumprindo pena em regime semiaberto, muitos, na realidade, não tiveram o seu regime inicial fixado de acordo com o quantum estabelecido. Isso porque parcela progrediu de pena a partir do regime fechado e outra foi condenada a sanções inferiores a quatro anos, porém, em razão de eventuais circunstâncias judiciais negativas foram automaticamente colocados em regime mais gravoso do que o previsto em lei.

O cenário deveria ser o oposto: caso o artigo 33, §3º, do CP fosse utilizado adequadamente, haveria um número maior de pessoas cumprindo pena em regime aberto e semiaberto do que as condenadas às quantidades que lhes caberiam.

Isso evidencia, como anunciado desde o início, a necessidade de (re)discussão do entendimento pacificado nos tribunais pátrios no sentido de fixar automaticamente regimes mais gravosos com fundamento em dispositivo instituído, na realidade, para permitir o cumprimento de pena em condições menos severas.

Se voltarmos ao caso mencionado no início do texto: é indispensável e concretamente necessário não só o agravamento da pena-base, mas a imposição de regime semiaberto para um indivíduo condenado a uma sanção corporal inferior a quatro anos por delitos não violentos (receptação e uso de documento falso), com apenas os antecedentes e as circunstâncias (esta última apenas em relação a um dos crimes, porquanto a placa do veículo teria sido adulterada, o que dificultaria "a descoberta da origem criminosa do bem") desfavoráveis?

Ora, se é notório que os números de reiterações criminais são elevados no Brasil [5], permitir  e quiçá estimular  que a mera existência de maus antecedentes seja suficiente para recrudescer o regime da pena de determinado indivíduo significa impor à parcela da sociedade que já é encarcerada com maior frequência, de forma deliberada, um aprisionamento perpétuo.

A verdade é que, para essas pessoas, com essa política criminal em voga, o cumprimento em regime menos severo quando adequado ao caso concreto, tal como foi a intenção do legislador de 1984, jamais será possível. Pelo contrário: qualquer pessoa que tenha tido a infelicidade de entrar em contato com o sistema penal e o enfrentá-lo novamente  e isso normalmente acontece com homens jovens, pretos e pardos e com baixa escolaridade [6]  jamais sairá dele, sendo sempre prejudicada e mantida em cárcere em situações mais degradantes do que às que enfrentaria pelo quantum de pena fixado.

É por isso que uma decisão tal qual a proferida nos autos do Habeas Corpus 596.603/SP é, mais do que correta, necessária: os julgadores não analisam as particularidades dos casos que lhes são incumbidos. O que a jurisprudência demonstra é que são utilizados como artifícios, sem argumentação idônea, fundamentos legais, tais quais o ora trazido à tona, para, nos termos do acórdão parcialmente desconstituído, reproduzir "política estatal que se poderia, não sem exagero, qualificar como desumana, desigual, seletiva e preconceituosa".

A verdade é que, diferentemente do quanto constou na decisão do ministro Alexandre de Moraes, a concessão do Habeas Corpus coletivo, tal qual havia sido feita, não constituiu empecilho à liberdade judicial e nem atentado contra a individualização da pena. Muito pelo contrário, foi uma tentativa de salvar a parcela da população a que tais princípios parecem não dizer respeito nas sentenças e acórdãos; uma tentativa de fazer valer as Súmulas 718 e 719 do STJ e 440 do STJ; ao cabo, uma tentativa de impedir a imposição automática de regimes prisionais mais gravosos única e tão somente pela gravidade abstrata do delito. A briga, agora, é impedir que a gravidade abstrata das circunstâncias judiciais negativas prevaleça.

 


[1] Trecho extraído da sentença (autos nº 0800527-33.2018.4.05.8302).

[4] Consta no relatório que 82% dos estabelecimentos prisionais tinham condições para obter informações a respeito do tempo das penas em relação a todas as pessoas aprisionadas, 14% conseguiam levantar os dados em relação a parcela dos detentos que estavam sob sua custódia e apenas 4% não possuíam condições de levantar as informações.

[5] Segundo o relatório "Reentradas e Reiterações Infracionais: Um olhar sobre os sistemas socioeducativo e prisional brasileiros", no mínimo "42,5% das pessoas adultas com processos criminais registrados nos Tribunais de Justiça de grande parte do Brasil (à exceção do Rio de Janeiro, Ri Grande do Sul, Pará e Sergipe) em 2015 reentraram no Poder Judiciário até dezembro de 2019" (p. 57 conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/panorama-reentradas-sistema.pdf).

[6] De acordo com os dados fornecidos ao DEPEN pelo Estado de São Paulo, mais de 90% dos homens encarcerados possuíam de 18 a 45 anos, 58,77% eram pretos ou pardos e 45,22% possuíam ensino fundamental incompleto.

Autores

  • é advogada criminalista no Andre Kehdi & Renato Vieira Advogados, especialista em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especializanda em Criminologia pela Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo-IBCCRIM.

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