Defesa da Concorrência

Alguns apontamentos sobre antitruste e bitcoin

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17 de dezembro de 2021, 8h00

Em agosto deste ano, o Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) publicou mais um número da série "Cadernos do Cade", analisando 143 fusões e aquisições, além de 16 casos de condutas anticompetitivas em mercados de plataformas digitais que foram examinadas pela instituição entre 1995 e 2020. O objetivo da publicação foi apresentar a jurisprudência da autarquia em relação a vários segmentos econômicos que provêm seus serviços por meio de plataformas digitais. Entre os mercados analisados, cito o segmento de varejo online, com a crescente entrada de modelos de marketplace, os segmentos de música digital, turismo online, aplicativos de entrega de comida, mapas digitais, intermediação de transporte por aplicativo, redes sociais, vídeo sob demanda, venda online de ingressos, investimentos financeiros, publicidade online, busca e comparação de preços online e busca online, aplicativos de exercícios físicos e aplicativos de intermediação de serviços.

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Segundo OCDE (2019), uma plataforma online é definida como um serviço digital que facilita as interações entre dois ou mais conjuntos distintos e interdependentes de usuários (empresas ou indivíduos) que interagem através da internet. De maneira geral, podemos afirmar que todos os casos analisados pelo Cade e citados acima envolvem serviços e dados transacionados geridos por meio de plataformas e ecossistemas centralizados [1]. De fato, diferentes modelos de negócios têm prosperado em redes centralizadas. Quando você utiliza plataformas de mídia social como o Facebook, você está usando um sistema centralizado. Outras plataformas online populares, como YouTube, Google Pesquisa, Uber, Ifood e Mercado Livre, também são centralizadas. Isso significa que uma autoridade ou organização central está no controle dos dados e funções da plataforma. Outro exemplo clássico de centralização está ligado a emissão monetária por parte dos bancos centrais. Portanto, até o momento, os casos tratados pela Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011) no Cade e sumarizados nos "Cadernos" tem foco em modelos de negócios centralizados. Uma pergunta que surge é: ao invés de olharmos para o retrovisor, podemos analisar prospectivamente os impactos da evolução tecnológica recente para entendermos quais são os desafios para o antitruste? Tentar responder essa questão em meio a uma revolução tecnológica é desafiador pelas incertezas envolvidas, mas ao mesmo tempo é um exercício necessário para que as decisões da autoridade antitruste cumpram seus objetivos [2].

O início dessa resposta passa pelo entendimento do conceito de blockchain, que é um livro-razão público [3] e distribuído que registra todos os tipos de transações entre usuários (Stella, 2017). Esse bloco de transações que segue um conjunto de regras e algoritmos criptográficos pode fazer praticamente tudo o que um computador faz, mas com quatro características que o diferenciam: 1) é descentralizado; 2) as transações são validadas de acordo com o mecanismo de consenso escolhido [4]; 3) as chaves públicas e privadas são como um pseudônimo, que protegem a identidade real dos usuários; e 4) são imutáveis. Segundo Schrepel (2019a), o blockchain pode transformar as transações da mesma forma que a internet alterou a velocidade de disseminação e a natureza das informações, sendo capaz de modificar as relações entre as empresas e o ambiente concorrencial.

Podemos classificar os blockchains como sendo de primeira, segunda e terceira geração. A primeira geração (blockchain 1.0) são as criptomoedas, em que os tokens do blockchain são usados exclusivamente como moedas; a segunda (blockchain 2.0) são os contratos inteligentes que executam transações automatizadas entre os usuários; a terceira (blockchain 3.0) abrange todos os outros usos do blockchain, incluindo mídias sociais, pesquisas online, entre outras aplicações como os produtos e serviços geralmente descritos como economia de compartilhamento (Schrepel, 2021).

Na verdade, blockchain e a lei antitruste podem se tornar fortes aliados, visto que compartilham um objetivo comum: descentralizar as oportunidades econômicas. Esse ponto é tratado por Schrepel (2021, p.10) em seu livro "Blockchain + Antitrust"  ao explicar a complementariedade entre blockchain e a lei antitruste:

"Por um lado, a lei antitruste protege o processo competitivo ao eliminar formas de controle coercitivo. Por outro lado, o blockchain visa eliminar formas centralizadas e verticais de controle (ao fazer uma disrupção das estruturas existentes). Em certo sentido, a lei antitruste visa restringir o exercício do poder por meio do Estado de Direito (rule of law); enquanto o blockchain procura restringi-lo por meios técnicos. E, embora algumas entidades que operam em ecossistemas de blockchain sejam voltadas para o lucro, a arquitetura de tecnologia tende a alinhar seus objetivos com a lei antitruste. Ambos acabam participando da descentralização do poder transacional. Eles não falam a mesma língua, mas compartilham a mesma ambição. Vai ainda mais longe do que isso. Além de buscar o mesmo objetivo, a combinação da lei antitruste e do blockchain pode maximizar seu objetivo comum a um grau que seria impensável se eles estivessem agindo por conta própria".

Tal fenômeno emerge de baixo para cima, emponderando os indivíduos. Pike e Capobianco (2020) salientam que, como muitas novas tecnologias, o blockchain cria oportunidades de redução de preços, aumento da qualidade e disrupção do poder de mercado das empresas incumbentes. É uma tecnologia que tem vários usos e, portanto, tem o potencial de impactar uma ampla gama de mercados. Nesse sentido, é interessante detalhar alguns exemplos em que blockchains descentralizados podem ser uma alternativa aos ecossistemas ou plataformas digitais centralizadas. Uma das áreas mais interessantes em blockchain é a de finanças descentralizadas ou, simplesmente, "DeFi". O DeFi pode ser considerado o desdobramento das fintechs. Agora, aplicativos descentralizados podem fornecer uma variedade de serviços financeiros diretamente a clientes que antes eram atendidos apenas por grandes instituições financeiras.

Segundo Pike e Capobianco (2020), outro exemplo de ameaça potencial ao poder de mercado das plataformas digitais centralizadas é que o blockchain pode facilitar a venda de dados e, assim, quebrar a regra de "preço zero" que protegeu muitas plataformas digitais de serem prejudicadas por novos entrantes. Nesse sentido, blockchains como o da Tide Foundation [5] permitem que os usuários armazenem seus dados e limitem o acesso a quem paga por eles. Os referidos autores explicam que isso permite que os dados sejam organizados e vendidos diretamente para agências de publicidade que desejam direcionar sua publicidade ou para empresas que desejam implementar um algoritmo de precificação. Além disso, os consumidores podem usar blockchains para vender em conjunto seus dados por meio de associações que gerenciam e monetizam os dados coletivos que os consumidores criam. Essa venda conjunta via blockchain pode então permitir que os consumidores extraiam o valor das grandes externalidades que são criadas quando os dados são combinados. Pike e Capobianco (2020) afirmam que, atualmente, esse valor é acumulado como receita de publicidade para as plataformas digitais centralizadas (por exemplo, o Facebook e Google) que recebem os dados em troca de produtos ou serviços "gratuitos". No entanto, os usuários poderiam obter essa receita para eles próprios.

Por sua vez, é importante não perder de vista que as três gerações de blockchain citadas anteriormente apresentam alguns desafios para as autoridades antitruste, que ainda podem ser usados para violar a lei antitruste e criar formas artificiais de centralização. Nesse sentido, os acordos colusivos podem trazer mais preocupações para a autoridade antitruste. Schrepel (2019a), em um estudo detalhado, afirma que o blockchain pode ser usado para melhorar o funcionamento de cartéis e que novas formas de conluio vinculadas às condições de acesso e uso da tecnologia também podem aparecer. Ademais, o referido autor acrescenta que o blockchain pode aumentar a estabilidade dos cartéis tendo em vista o aumento do monitoramento entre os participantes do conluio. Ademais, os contratos inteligentes teriam a potencialidade de fazer com que o número de pedidos de leniência venha a ter uma diminuição, tendo em vista que o blockchain reforça a confiança durante a vigência da colusão.

Outro tipo de conduta anticompetitiva são as práticas unilaterais que, como o próprio nome já diz, são condutas anticompetitivas cometidas por uma única empresa que detém posição dominante. Segundo Schrepel (2019b), os blockchains públicos têm o condão de limitar o abuso de posição dominante. Nesse sentido, o referido autor argumenta que as condutas de preços predatórios e a recusa de negociação parecem ser irrealistas nesse ambiente, enquanto a venda casada, margin squeeze, descontos de fidelidade e condutas discriminatórias são improváveis de ocorrer. Como as transações nos blockchains públicos são visíveis para todos, o incentivo para o envolvimento em práticas anticompetitivas é reduzido, uma vez que a vigilância do mercado e o monitoramento da indústria podem facilmente eliminar práticas ilegais. No entanto, em blockchains privados, agentes que praticam condutas anticompetitivas podem ser protegidos pelo "efeito opacidade". Em suma, espera-se que as condutas unilaterais anticompetitivas sejam raras em blockchains públicos, mas essas práticas podem ocorrer em blockchains privados que operam fora do radar das autoridades (Schrepel, 2019b).

Por fim, é importante analisar como lidar com essas infrações do ponto de vista legal e regulatório. Vale ressaltar que, muitas vezes, a lei fica para trás em relação à tecnologia [6]. De maneira geral, a criação de um aparato normativo em mercados muito inovativos e disruptivos é sempre complexa e pode causar falhas de governo [7]. Nesse sentido, o uso de sandbox regulatório, safe habors [8] e instrumentos menos interventivos podem ser medidas mais apropriadas no sentido de ter o blockchain como aliado na defesa da concorrência. Em relação ao combate a cartéis, Schrepel (2019a) salienta que as autoridades antitruste ao redor do mundo atualmente não estão equipadas para lutar contra acordos de colusão por meio de blockchains. E sugere que tais autoridades precisam começar a analisar os códigos e as programações utilizadas pelos desenvolvedores, visto que isso criaria desincentivos para que agentes econômicos utilizassem o blockchain para empreender práticas anticompetitivas. Outra boa medida seria fortalecer as ferramentas de detecção proativa de cartéis [9], já que isso aumenta o risco de punição dos cartelistas e, assim, incentiva os agentes envolvidos no conluio a buscarem a leniência.

Mas o leitor deve estar se perguntando: "Por que você não falou de bitcoin ao longo do artigo?". Bitcoin é uma criptomoeda de blockchain de primeira geração. Conforme expliquei, já temos blockchains de segunda e terceira geração que permitem a existência de criptomoedas com maior velocidade e capacidade de transações por bloco, além de vários ecossistemas descentralizados com inúmeros serviços sendo providos, incluindo finanças descentralizadas, compartilhamentos ponto a ponto, organizações autônomas descentralizadas (DAOs), metaversos e além. Entendeu a velocidade da transformação? Estamos em um mundo em disrupção em que temos que compreender os impactos dessas transformações em vários mercados. Neste artigo busquei brevemente mostrar um pouco dessas transformações nas discussões antitruste em que o bitcoin foi apenas o ponto de partida. A edição dos "Cadernos do Cade sobre Mercados de Plataformas Digitais" traz um excelente histórico da atuação da autoridade brasileira nesses mercados, mas não trata dos desafios da revolução já em curso. Portanto, espero que este breve artigo ajude a trazer alguma luz sobre o tema, ao discutir a literatura mais recente, e fomente o debate na direção de entender o impacto do uso das tecnologias emergentes, como o blockchain, nas análises antitruste.

 


Referências bibliográficas
Cordeiro, Alexandre; Monteiro, Ana S. C. (2020) Os objetivos do Direito Antitruste: evolução e perspectivas para o pós-Covid-19. Portal Jota.

OCDE (2019) An Introduction to Online Platforms and Their Role in the Digital Transformation.

Meneguin, F. B. (2021). Abusos regulatórios e falhas de governo. In: Abuso de Poder Regulatório (Org. Oliveira, A.F e Rolim, M. J.). 1ª ed., Rio de Janeiro: Synergia.

Pike, C.; Capobianco, A. (2020), Antitrust and the trust machine. Disponível em: http://www.oecd.org/daf/competition/antitrust-and-the-trust-machine-2020.pdf.

Resende, G. M. (2021a) Antitruste e ecossistemas digitais. Revista Consultor Jurídico.

Resende, G. M. (2021b) O diálogo necessário no antitruste. Revista Consultor Jurídico.

Schrepel, T. (2019a) Collusion by Blockchain and Smart Contracts. Harvard Journal of Law and Technology (33 Harv. J.L. & Tech. 117).

Schrepel, T. (2019b) Is Blockchain the Death of Antitrust Law? The Blockchain Antitrust Paradox (June 11, 2018). Georgetown Law Technology Review / 3 Geo. L. Tech. Rev. 281.

Schrepel, T.; Buterin, V. (2020) Blockchain Code as Antitrust (May 18, 2020). Berkeley Technology Law Journal.

Schrepel, T. (2021) Blockchain + Antitrust: The Decentralization Formula. Edward Elgar Publishing. Disponível em: https://www.elgaronline.com/view/9781800885523.xml.

Stella, J. C. (2017) Moedas Virtuais no Brasil: como enquadrar as criptomoedas. Revista da Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central (PGBC), volume 11, n. 2, p. 149-162.

 


[1] Para uma discussão sobre antitruste e ecossistemas digitais, ver Resende (2021a).

[2] Em Cordeiro e Monteiro (2020) e Resende (2021b) é feita uma breve discussão sobre os objetivos do antitruste.

[3] Neste artigo discuto, majoritariamente, blockchains públicos que representam grande parte das criptomoedas e aplicações. Em um blockchain público (open ou permission-less) qualquer um pode entrar na rede e ler, escrever ou participar do blockchain. O blockchain público é descentralizado e não tem uma única entidade que controle a rede. Como veremos, este fato o torna um aliado da concorrência. Já o blockchain privado (permissioned) controla quem tem permissão para participar da rede, executa o protocolo de consenso que decide os direitos e recompensas de mineração e mantém o livro-razão compartilhado. Neste caso, o blockchain privado não é descentralizado, o proprietário ou operador tem o direito de substituir, editar ou excluir as entradas necessárias no blockchain.

[4] Proof-of-work e proof-of-stake são os dois principais mecanismos de consenso que as criptomoedas usam para verificar novas transações, adicioná-las ao blockchain e criar novos tokens.

[5] Para maiores informações acessar: https://tide.org/tideprotocol.

[6] Um bom exemplo é a Lei Geral de Proteção de Dados (GDPR) da União Europeia aplicada ao blockchain e detalhadamente discutida por Michèle Finck. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/thinktank/en/document/EPRS_STU(2019)634445.

[7] Meneguin (2021, p.6) explica que tais falhas “são intervenções governamentais incorretas que geram distorções maiores do que os problemas a que elas se propunham resolver”.

[8] Schrepel e Buterin (2020) discutem como sandboxes e safe habors criam zonas de conforto onde a tecnologia pode ser testada. Dessa forma, ela não seria considerada ilegal ou exigiria uma aprovação regulatória excessivamente onerosa.

[9] No caso brasileiro, o Cade tem o “Projeto Cérebro”. Ver Pimenta, G. (2019) Projeto Cérebro: Cade usa inteligência artificial no combate a cartéis. Portal Jota.

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