Opinião

Os Tribunais de Contas e a prescrição reconhecida na ADI 5.509

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17 de dezembro de 2021, 19h34

A incidência da prescrição relacionada à atuação dos Tribunais de Contas tem merecido atenção no âmbito do Supremo Tribunal Federal nos últimos anos, com destaque para as discussões havidas nos julgamentos dos Temas 445 [1], 666 [2], 897 [3] e 899 [4] de repercussão geral.

O assunto foi novamente abordado, sob enfoque distinto, quando do julgamento virtual da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.509, relator ministro Edson Fachin, concluído em 10 de novembro — cujo inteiro teor do acórdão está pendente de publicação [5]. Por meio dessa ação direta, impugnavam-se dispositivos da constituição cearense [6] e da Lei Orgânica do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará [7]  órgão extinto em 2019.

A maioria dos ministros acompanhou o relator, julgando parcialmente procedente a ADI em referência, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do inciso II do parágrafo único do artigo 35-C da LOTCM.

A análise dos fundamentos utilizados em julgamentos em sede de controle concentrado de constitucionalidade tem especial importância, em razão da eficácia erga omnes e vinculante das decisões adotadas em ações dessa natureza  inclusive para a verificação do alcance da decisão.

A fundamentação apresentada pelo ministro Fachin está apoiada nos diversos precedentes recentes do STF relacionados à apreciação da prescrição em face da constatação de danos ao erário, destacando-se: 1) a prescritibilidade de ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil (Tema 666); 2) a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso de improbidade administrativa (Tema 897); 3) a prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas (Tema 899). Como salientou o relator:

"O modelo federal, portanto, de acordo com a interpretação fixada pelo Supremo Tribunal Federal, acabou por considerar, na esteira do voto do saudoso ministro Teori Zavascki, a imprescritibilidade das ações de ressarcimento fundadas em atos ilícitos tipificados como improbidade administrativa e como ilícitos penais, mantendo, portanto, a regra da prescritibilidade nos demais casos".

Além disso, foi reiterada a recente jurisprudência do Supremo, quanto ao entendimento de que a atuação fiscalizatória dos Tribunais de Contas está sujeita à Lei Federal nº 9.873/99, de incidência direta ou por analogia:

"1. A prescrição da pretensão punitiva do TCU é regulada integralmente pela Lei nº 9.873/1999, seja em razão da interpretação correta e da aplicação direta desta lei, seja por analogia" (MS 32201, relator(a): Roberto Barroso, 1ª Turma, julgado em 21/3/2017, Processo Eletrônico Dje-173, Divulgado em 4/8/2017, publicado em 7/8/2017).

Referida lei estabelece o prazo prescricional de cinco anos para o exercício da ação punitiva da Administração Pública federal e disciplina os marcos interruptivos dessa prescrição:

"Artigo 2º  Interrompe-se a prescrição da ação punitiva: (Redação dada pela Lei nº 11.941, de 2009)
I – pela notificação ou citação do indiciado ou acusado, inclusive por meio de edital; (Redação dada pela Lei nº 11.941, de 2009);
II – por qualquer ato inequívoco, que importe apuração do fato;
III – pela decisão condenatória recorrível.
IV – por qualquer ato inequívoco que importe em manifestação expressa de tentativa de solução conciliatória no âmbito interno da administração pública federal. (Incluído pela Lei nº 11.941, de 2009)".

A respeito da causa interruptiva constante do inciso II, os professores Gustavo Justino de Oliveira e Gustavo Schiefler sustentam [8] que, para fins da interrupção, o ato de apuração deve ser inequívoco, dispondo sobre fato determinado e potencialmente ilícito:

"Neste caso, ao se inaugurar uma TCE para se apurar eventual incongruência na prestação de contas e a regularidade do uso de verbas de um convênio, elencam-se especificamente determinados atos ou despesas suspeitos. Neste caso, não há como se considerar, para efeito de interrupção da prescrição, que também estão, desde a origem, sob apuração, outras despesas realizadas neste mesmo convênio, que não foram identificadas como suspeitas neste ato inaugural, ainda que venham a ser apuradas posteriormente no mesmo processo.
Assim, quanto a essas despesas inicialmente ignoradas, supervenientemente suspeitas, não há como se reconhecer o ato inaugural do processo como marco interruptivo da prescrição — ainda que possam ser investigadas no mesmo processo, por guardarem em comum a origem dos recursos.
Note-se que a legislação exige, para a interrupção da prescrição, um ato inequívoco de apuração do fato, o que significa que ele deve ser um ato o qual incontroversamente apura um fato determinado e potencialmente ilícito".

O relator também dispôs quanto ao termo inicial da contagem da prescrição, que deve ser o do ingresso do processo de fiscalização no Tribunal de Contas  amparado pelo Tema nº 445 de repercussão geral  ou dos órgãos encarregados pelo controle interno da Administração Pública, por conta do disposto no caput do artigo 8º da Lei Orgânica do TCU (Lei Federal nº 8.443/92), que estabelece:

"Artigo 8º — Diante da omissão no dever de prestar contas, da não comprovação da aplicação dos recursos repassados pela União, na forma prevista no inciso VII do artigo 5° desta Lei, da ocorrência de desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos, ou, ainda, da prática de qualquer ato ilegal, ilegítimo ou antieconômico de que resulte dano ao Erário, a autoridade administrativa competente, sob pena de responsabilidade solidária, deverá imediatamente adotar providências com vistas à instauração da tomada de contas especial para apuração dos fatos, identificação dos responsáveis e quantificação do dano".

Além disso, a atuação de ofício ou provocada dos Tribunais de Contas  por meio, respectivamente, de auditorias e de representações, por exemplo  também deve ser caracterizada como marco inicial para a contagem do prazo prescricional.

O voto em apreço  que foi referendado pela maioria dos ministros da Suprema Corte  deve ser recebido como importante marco de consolidação do tratamento da prescrição no âmbito dos Tribunais de Contas. Não apenas por conta da sistematização da jurisprudência referenciada, mas também por especificar a disciplina referente aos processos em curso nos Tribunais de Contas, com a reiteração da recente jurisprudência do STF quanto à aplicação das regras prescricionais estabelecidas na Lei Federal nº 9.873/99.

Além de propiciar a revisão da jurisprudência do TCU a respeito do prazo decenal de sua atuação (Acórdão 1441/2016-Plenário, amparado no Código Civil), a ADI 5509 deverá provocar a reanálise das práticas processuais no âmbito dos outros 32 Tribunais de Contas existentes no país, dos quais boa parte não possui disciplina expressa quanto à prescrição.

Embora a Lei nº 9.873/99 disponha que sua incidência se dará em relação à Administração Pública federal, não se tratando, nesse aspecto, de norma nacional disciplinadora da prescrição  como ocorre com o Decreto nº 20.910/32, que disciplina a prescrição quinquenal em relação às dívidas da fazenda pública; ou mesmo com a Lei da Ação Popular (Lei Federal nº 4.717/65) , a ausência de lei do ente disciplinando o exercício sancionatório da administração local não restringe a incidência supletiva da norma federal aos processos em curso perante os Tribunais de Contas.

Primeiramente, porque a ausência de lei dos entes federados não pode ser escusa apta a ensejar a imprescritibilidade do exercício de poder de polícia  o que, aliás, confrontaria os recentes Temas 666, 897 e 899 de repercussão geral.

Além disso, o princípio da simetria  fundamento para a existência do Sistema Tribunais de Contas, cujas competências estão estabelecidas nos artigos 70 a 75 da Constituição Federal  não necessariamente se restringe a aspectos de organização interna/institucional das cortes de contas, podendo ser interpretado como elemento de integração do ordenamento jurídico. Nesse aspecto, diante da omissão legislativa dos entes federativos, o princípio da simetria autorizaria a incidência da Lei nº 9.873/99 aos processos em trâmite em outros Tribunais de Contas, além do TCU.

Finalmente, ainda que se admitisse que o Decreto 20.910/32 ou que a Lei da Ação Popular fossem as normas adequadas à integração da lacuna, o resultado seria semelhante, dado que estabelecem prazos prescricionais quinquenais.

Feitas essas considerações, fato é que a ADI 5509 deverá repercutir intensamente nos processos em curso perante os Tribunais de Contas do país, propiciando discussão qualificada de aspectos essenciais das fiscalizações em curso, inclusive quanto à adequada análise dos marcos prescricionais  iniciais, finais e interruptivos.

Independentemente de juízo de valor sobre a decisão do STF, a manifestação a respeito da prescrição em processos em curso perante os Tribunais de Contas propicia maior segurança jurídica ao jurisdicionado, no esteio dos recentes pronunciamentos da Suprema Corte a respeito da matéria Temas 666, 897 e 899.

 


[1] "Tema 445 — Em atenção aos princípios da segurança jurídica e da confiança legítima, os Tribunais de Contas estão sujeitos ao prazo de cinco anos para o julgamento da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma ou pensão, a contar da chegada do processo à respectiva Corte de Contas".

[2] "Tema 666 — É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil".

[3] "Tema 897 — São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa".

[4] "Tema 899 — É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas".

[5] O voto do ministro Fachin (minuta apresentada para julgamento virtual) está disponível em: http://sistemas.stf.jus.br/repgeral/votacao?texto=5185125.

[6] "Artigo 76 — (…)
§5º. O Tribunal de Contas do Estado, no exercício de suas competências, observará os institutos da prescrição e da decadência, no prazo de cinco anos, nos termos da legislação em vigor.
Artigo 78 — (…)
§7º. O Tribunal de Contas dos Municípios, no exercício de suas competências, observará os institutos da prescrição e da decadência, no prazo de cinco anos, nos termos da legislação em vigor".

[7] Lei estadual nº 12.160/93, com a redação dada pela Lei nº 15.516/14:
"Artigo 35-A — A prescrição é instituto de ordem pública, abrangendo o exercício das competências do Tribunal de Contas, nos termos do disposto no §7º do artigo 78 da Constituição do Estado do Ceará.
Parágrafo único. O reconhecimento da prescrição poderá se dar de ofício pelo relator, mediante provocação do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas ou através de requerimento do interessado, sendo sempre submetida a julgamento por órgão colegiado do Tribunal.
Artigo 35-B — As competências de julgamento e apreciação do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará, inclusive as previstas nos artigos 1º, 13, 19 e 55 ao 59 desta Lei, ficam sujeitas à prescrição, conforme o prazo fixado nesta Lei.
Artigo 35-C— Prescreve em cinco anos o exercício das competências de julgamento e apreciação do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará previstas nesta Lei, como as previstas nos artigos 1º, 13, 19 e 55 ao 59.
Parágrafo único — O prazo previsto no caput:
I – inicia sua contagem a partir da data seguinte à do encerramento do prazo para encaminhamento da prestação de contas ao Tribunal, nos casos de contas de gestão e de governo;
II – nos demais casos, inicia-se a partir da data de ocorrência do fato;
III – interrompe-se pela autuação do processo no Tribunal, assim como pelo julgamento.
Artigo 35-D — O Regimento Interno deve disciplinar a sistemática do reconhecimento da prescrição no âmbito da jurisdição do Tribunal, no que for necessário, assim como as causas suspensivas da prescrição".

[8] "A aplicação da prescrição aos processos em trâmite no TCU", Coluna Público & Pragmático de 31/10/2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-31/aplicacao-prescricao-aos-processos-tramite-tcu.

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