Olhar Econômico

Contribuições da análise econômica do Direito para a gratuidade processual

Autor

  • João Grandino Rodas

    é presidente e coordenador da Comissão de Pós Graduação Stricto Sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e Sócio do Grandino Rodas Advogados. Desembargador Federal aposentado do TRF-3 e ex-reitor da USP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP da qual foi diretor mestre em Direito pela Harvard Law School mestre em Diplomacia pela The Fletcher School e Mestre em Ciências Político-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

16 de dezembro de 2021, 12h25

Os 78 incisos do artigo 5º da Constituição Federal vigente buscam materializar a igualdade perante a lei e a inviolabilidade de direitos fundamentais inscritos em seu caput. Dois desses incisos  XXXV e LXXIV  importam no momento. Aquele consagra o acesso à jurisdição ("a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça direito;"); enquanto que, este estabelece a gratuidade da justiça ("o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos").

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A justiça gratuita, ou seja, a isenção legal do pagamento de custas e despesas, quer judiciais, quer não, relativas aos atos em defesa do beneficiário hipossuficiente em Juízo propicia real acesso à jurisdição. O direito estabelecido constitucionalmente, por ser genérico por natureza, depende de regras infraconstitucionais para ser exercitado.

Ao entrar em vigor, a Constituição de 1988 recepcionou a Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, a qual normatizava a "concessão de assistência judiciária aos necessitados" e vigorou até a vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Lei nº 13.105/2015), cujo artigo 1.072, expressamente, revogou os artigos 2º ao 7º, 11, 12 e 17 dela.

A evolução do artigo 4º da Lei nº 1060/1950 [1] , durante a sua vigência, demonstra que o seu texto original não muito exigente, tanto que fora substituído, em 1986, por outro, ainda mais condescendente, que vigeu até ser revogado pelo CPC atual.

Subsequentemente, o tratamento dado pelo CPC à justiça gratuita (artigo 99) [2] , ao menos no que tange à pessoa natural, não difere muito do conferido pela legislação anterior por ele revogada. Não faltam comentários doutrinais, que: 1) consideram a regulação do CPC, relativamente ao tema em tela, insatisfatória e ineficiente; e 2) que constatam a ausência de filtros legais eficientes para a concessão do benefício.

É consabido ser relativa — juris tantum  a presunção de hipossuficiência econômica, pois a realidade alegada pode não vingar, face a indícios, diretos ou indiretos, de existência de riquezas.

Caberá, então ao julgador dirimir a questão, equacionando três valores: 1) o direito constitucional relativo à justiça gratuita; 2) a boa gerência e a finitude dos recursos estatais; e 3) o comando constitucional de celeridade e de eficiência na prestação jurisdicional.

A incompletude da legislação infraconstitucional faz, no entanto, com que inexistam critérios legais mínimos a serem utilizados pelo julgador no momento da análise do requerimento de justiça gratuita. Por tal razão exsurge outra fonte do direito, a jurisprudência, que vem utilizando critérios variados para a concessão ou não da justiça gratuita.

A fluidez dos critérios legais e jurisprudenciais relativos à justiça gratuita, que tem sido concedida sem aquilatar os seus efeitos, estimula o ajuizamento de ações judiciais temerárias e a interposição de recursos com nítido caráter protelatório.

Sobrecarrega-se o sistema judiciário, com a judicialização ou a interposição de recursos a, praticamente, "custo zero pessoal, mas a custos consideráveis para a sociedade". A superutilização do sistema judiciário contribui grandemente, ao lado de outros fatores internos e externos ao sistema, para a superlotação e a consequente morosidade do poder judiciário. Tal já foi chamado de tragédia do judiciário, pois o nível da prestação jurisdicional declina até, quase, não mais ser atendida. O respectivo custo recai sobre o contribuinte, cuja carga tributária pesa sempre mais. Daí ser imperiosa a fixação de critérios objetivos para a concessão da assistência judiciária gratuita, para que seja usufruída apenas pelos mais necessitados; desestimulando-se, assim, o chamado oportunismo processual [3] . 

A importância e a atualidade do tema sob exame provocaram o interesse da juíza Lívia Antunes Caetano e do juiz Osmar Marcello Junior, ambos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que se aprofundaram sobre a questão e ministraram, há alguns dias, aula intitulada "Análise Econômica da Gratuidade Processual e Desafios ao Estabelecimento de Critérios para a sua Concessão", no programa de pós-graduação stricto sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social  Cedes.

Os magistrados valeram-se das ferramentas da análise econômica do Direito, movimento, que aproximou Direito e Economia, caracterizado pela inteiração realista, pragmática e consequencialista entre a lei e o mundo circundante. Examinaram, eles, a atual conformação da gratuidade processual no ordenamento jurídico pátrio, tendo concluído pela ineficiência de seu desenho atual.

Por isso, é necessário racionalizar o acesso ao Poder Judiciário, seja por alteração legislativa, seja por via jurisprudencial. É inaceitável a concessão indiscriminada de gratuidade de justiça, devendo os patrocinadores de demandas frívolas serem desincentivados.  Há que se proscrever os baixos (ou inexistentes) custos de litigância; assim como a oportunidade de obter vantagens indevidas, consistentes na internalização de benefícios e externalização dos efeitos negativos (custos sociais), decorrentes de tais condutas. Assim o fazendo, favorece-se os demandantes de lides reais, aumentando-se a qualidade da prestação jurisdicional e diminuindo a duração temporal do processo.

Estimularam, ademais 1) a participação ativa dos advogados e dos demais atores processuais para viabilizar a verificação do deferimento ou do indeferimento do benefício, inclusive como forma de estímulo comportamental para os pares no curso do processo; e 2) o debate acerca dos possíveis critérios a serem adotados no aperfeiçoamento do sistema de verificação das condições de hipossuficiência econômica, fazendo com que o benefício seja conferido somente a quem dele, realmente, necessitar.

Pelos vários benefícios daí decorrentes, urge repensar-se o instituto da justiça gratuita.

 


[1] Texto original:

"Artigo 4º  A parte, que pretender gozar os benefícios da assistência judiciária, requererá ao juiz competente lhos conceda, mencionando, na petição, o rendimento ou vencimento que percebe e os encargos próprios e os da família.

§1º A petição será instruída por um atestado de que conste ser o requerente necessitado, não podendo pagar as despesas do processo. Este documento será expedido, isento de selos e emolumentos, pela autoridade policial ou pelo prefeito municipal."

Texto da Lei 7.510 de 1986:

"Artigo 4º  A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante sjmples afirmação na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família"

[2] "Artigo 99. O pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso.

§3º Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural.

§6º O direito à gratuidade da justiça é pessoal, não se estendendo a litisconsorte ou a sucessor do beneficiário, salvo requerimento e deferimento expressos."

[3] Timm, Luciano, "A tragédia da Justiça: não existe Justiça de graça", JOTA, 29.11.2018.

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  • é presidente e coordenador da Comissão de Pós Graduação Stricto Sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e Sócio do Grandino Rodas Advogados. Desembargador Federal aposentado do TRF-3 e ex-reitor da USP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP, da qual foi diretor, mestre em Direito pela Harvard Law School, mestre em Diplomacia pela The Fletcher School e Mestre em Ciências Político-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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