Controvérsias Jurídicas

O sistema da perpetuidade e a perda dos efeitos da reincidência

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

16 de dezembro de 2021, 8h00

A segurança pública é uma das atividades mais complexas exercidas pela Administração Pública, estabelecida no artigo 144 da CF como "dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, a ser exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio".

A competência para implementar políticas públicas de segurança pertence, majoritariamente, aos estados, que possuem a chefia da polícia administrativa (Polícia Militar, de caráter preventivo e ostensivo, com o objetivo de evitar a perpetração de crimes) e da polícia judiciária (Polícia Civil, de caráter repressivo, responsável pela investigação dos delitos após a ocorrência do ilícito). Quando houver interesse da União, também comporão os órgãos de segurança pública Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Ferroviária Federal.

O rol trazido no artigo 144 é exauriente e não abrange as Guardas Civis Metropolitanas, sendo estas responsáveis apenas pelo zelo ao patrimônio municipal. Seu teor é de observância compulsória, impedindo que os estados federativos incorporem ou suprimam, em suas Constituições estaduais ou leis estaduais, conteúdo substancial do tratado na esfera constitucional.

Em função do vasto território e da complexidade da sociedade, é impossível verificar a presença policial em todos os fatos da vida cotidiana. Por mais que o Estado invista em tecnologias e aumente o efetivo das forças policiais, existirão situações nas quais o poder público não estará presente, razão pela qual é permitido ao particular o exercício da segurança privada, seja pela autodefesa ou pela contratação de empresas especializadas. Portanto, em alguns casos, o Estado permite que o particular se utilize da prerrogativa do uso da força para a manutenção da ordem pública, desde que preenchidos certos requisitos.

Nesse contexto, empresas de segurança privada ganham cada vez mais espaço no mercado do país, oferecendo serviço de escolta armada, transporte de valores, vigilância e segurança pessoal, desde que com funcionários devidamente treinados conforme parâmetros estabelecidos por lei.

A profissão de vigilante privado, por exemplo, por envolver uso de arma de fogo, é fiscalizada pela Polícia Federal, nos termos da Lei nº 7.102/93:

"Artigo 10  São consideradas como segurança privada as atividades desenvolvidas em prestação de serviço com a finalidade de:
I proceder à vigilância patrimonial das instituições financeiras e de outros estabelecimentos, públicos ou privados, bem como a segurança de pessoas físicas;
II realizar o transporte de valores ou garantir o transporte de qualquer outro tipo de carga;
§2º. As empresas especializadas em prestação de serviço de segurança, vigilância e transporte de valores, constituídas sob a forma de empresas privadas, além das hipóteses previstas nos incisos e no Caput deste artigo, poderão se prestar ao exercício das atividades de segurança privada a pessoas; estabelecimentos comerciais, indústrias, de prestação de serviços e residências; a atividades sem fins lucrativos; e órgãos e empresas públicas.
Artigo 15  Vigilante, para os efeitos desta lei, é o contratado empregado para a execução das atividades definidas nos incisos I e II do Caput e §§ 2º, 3º e 4º do artigo 10".

A mesma lei, em seu artigo 16, elenca uma série de requisitos indispensáveis para o exercício da atividade de vigilância, entre os quais:

"Artigo 16  Para o exercício da profissão, o vigilante preencherá os seguintes requisitos: I ser brasileiro; II ter idade mínima de 21 anos; III ter instrução correspondente à 4ª série do primeiro grau; IV ter sido aprovado, em curso de formação de vigilante, realizado em estabelecimento com funcionamento autorizado nos termos desta lei; V ter sido aprovado em exame de saúde física, mental e psicotécnico; VI não ter antecedentes criminais registrados; e VII estar quite com as obrigações eleitorais e militares."

Conforme pode ser observado no inciso VI, uma das condições para que a pessoa exerça a profissão de vigilante é a inexistência de antecedentes criminais, o que suscita a seguinte questão: poderia alguém, alvo de investigação em inquérito policial ou réu em processo criminal ainda em tramitação, exercer a atividade de vigilante?

A resposta encontra-se em um dos princípios basilares do Direito Penal, consubstanciado na presunção de inocência ou culpabilidade, constante no artigo 5º, LVII, CF [1], como bem explica o Superior Tribunal de Justiça:

"Viola o princípio da presunção de inocência o impedimento de participação ou registro de curso de formação ou reciclagem de vigilante, por ter sido verificada a existência de inquérito ou ação penal não transitada em julgado" [2].

"Assim, não havendo sentença condenatória transitada em julgado, o simples fato de existir um processo penal em andamento não pode ser considerada antecedente criminal para o fim de impedir que o vigilante se matricule no curso de reciclagem" [3].

Acertada a decisão do tribunal superior, uma vez que se trata o inquérito policial de caderno investigatório, dispensável para a propositura da ação penal, no qual a autoridade policial encarta as provas colhidas durante a investigação a fim de embasar o Ministério Público ou o querelante para oferecimento da denúncia ou queixa-crime, não havendo nenhuma acusação formal contra o acusado. Quanto ao andamento de processo criminal, em que pese a formalização da acusação, não há nenhuma decisão do Poder Judiciário quanto à culpa, não ocorrendo nenhuma mácula na primariedade e nos bons antecedentes do réu.

Seguindo o mesmo raciocínio, conclui-se que se há contra o acusado trânsito em julgado de sentença penal condenatória, ficará ele impedido de registrar-se em curso de formação ou reciclagem de segurança, mesmo que já tenha cumprido integralmente a pena [4].

Por sua vez, preceitua o artigo 64, I, CP, que para "efeitos de reincidência, não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação". Ou seja, com o transcurso do prazo de cinco anos do fim do cumprimento ou extinção da pena, tem-se a chamada "volta à primariedade".

Assim, levando-se em conta a perda dos efeitos da reincidência, poderia o cidadão, passados cinco anos do cumprimento da pena, mesmo tendo contra si sentença penal condenatória transitada em julgado, exercer a profissão de vigilante?

Por adotar o sistema da perpetuidade [5], o STJ entende que, mesmo com a perda dos efeitos da reincidência, após cinco anos do cumprimento ou extinção da pena permanecerá o cidadão com maus antecedentes, ficando impossibilitado de exercer as funções de vigilância, guarda ou escolta de valores ou pessoas e segurança privada, pela inobservância do artigo 16, VI, da Lei nº 7.102/93

 


[1] "Artigo 5º, LVII, CF – Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

[2] STJ, 1ª Turma. AgInt no AREsp 1071931/MG, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 17/09/20117.

[3] STJ, 2ª Turma. REsp 1597088/PE, rel. min. Herman Benjamin, j. 15/08/2017.

[4] STJ, 2ª Turma, REsp 1666294/DF, rel. min. Herman Benjamin, j. 05/09/2019.

[5] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais julgados do STF e STJ. Ed. JusPodium, 2019, p. 73.

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