Opinião

Municípios possuem competência para legislar sobre proteção ambiental

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15 de dezembro de 2021, 12h05

Li atentamente o artigo publicado nesta ConJur no último dia 7 defendendo a tese de que há usurpação da competência da União, pelo município de Ponte Nova (MG), para legislar na área ambiental [1]. O artigo defende que diversos municípios aprovam leis com pretextos ambientais, mas que, na verdade, objetivam impedir a construção de empreendimentos que buscam gerar energia hídrica. Afirma-se que essa medida é um retrocesso legislativo ferindo o princípio fundamental do pacto federativo, violando a competência da União para legislar sobre águas e energia.

Para exemplificar, cita legislações de vários municípios e, inclusive, estados. Entre os casos citados estão duas leis do município de Ponte Nova aprovadas e promulgadas no ano de 2008 [2], que são questionadas na ADPF 218, ainda em trâmite no Supremo Tribunal Federal.

No entanto, o Poder Legislativo de Ponte Nova, atento ao preceito de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à qualidade de vida, com imposição ao poder público municipal do dever de preservá-lo e mantê-lo para as presentes e futuras gerações, aprovou e promulgou a Lei 3.224, de 10 de setembro de 2008, e a Lei nº 3.225, de 15 de setembro de 2008, no intuito de resguardar o interesse ao meio ambiente local, na circunscrição de seu território.

Com o mesmo fito, entendeu o poder público municipal (Executivo e Legislativo), à época, que se deveria instituir e implantar áreas de conservação ambiental (com seus componentes representativos dos ecossistemas originais do espaço territorial do município de Ponte Nova), na perspectiva de serem protegidas de forma a evitar que houvesse comprometimento e, assim, visando a manter sua integridade. Dessa forma, instituiu-se uma unidade de conservação, declarada como monumento natural, a teor do disposto no artigo 12 da Lei Federal 9.985/00 (Sistema Nacional de Unidade de Conservação — SNUC) buscando preservar, sem barramentos, o trecho do Rio Piranga que, de forma bela, corta a cidade de Ponte Nova.

A unidade de conservação do Rio Piranga foi criada pensando também no espaço geográfico na qual o município de Ponte Nova está inserido, vale dizer, nas alterosas de Minas Gerais, bem como nos transtornos locais que a população local vinha e vem sofrendo com as interferências antrópicas no Rio Piranga, que corta o município. Entre estas pode-se citar, especialmente, as enchentes cada vez mais constantes e intensas, proliferação do aedes aegypti, assoreamento do rio, o excesso de barragens hidrelétricas construídas e previstas a montante e a jusante da área urbana do município de Ponte Nova, tanto no seu território quanto nas cidades vizinhas, sem com isso que se tenha um estudo concludente sobre os impactos sinérgicos e cumulativos causados pelas centrais hidrelétricas. Isso tudo aliado ao fato de que o Rio Piranga é o último habitat do surubim do Rio Doce, espécie ameaçada de extinção e protegida na lista vermelha do Ibama, aliado à necessidade de manter preservados os valores culturais e paisagísticos do trecho do Rio Piranga, bem como a manutenção das práticas esportivas aquáticas, como a descida de bote nas corredeiras do rio.

O governo federal, através da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), realizou avaliação ambiental integrada (AAI) da bacia do Rio Doce (onde encontra-se a bacia do Rio Piranga) objetivando inserir questões ambientais no planejamento energético do país. A EPE, nos estudos, critica o excesso de previsão de PCHs para a bacia do Rio Piranga, recomendando que a vocação desse rio seja a conservação ambiental (Vol. II, p. 43) e que tem alto valor ecológico. Para tanto, afirma que o Rio Piranga:
" Possui uma ictiofauna rica (VOL. III, p. 21) e que diversas espécies deslocam-se por migração (VOL. III, p. 22);
— Que o surubim do rio Doce é uma espécie ameaçada (VOL. III, p. 130) e que a área do rio Piranga possui o único registro do surubim do rio Doce (VOL. III, p. 137);
— Que com base em critérios de riqueza de espécies, bom estado de conservação e presença de endemismos definiu como zonas com nível de restrição alto para implantação de UHEs a sub bacia do rio Piranga (VOL. III, p. 146);
— Que as corredeiras do rio Piranga são ideais para a prática de esportes náuticos (VOL. III, p. 327) e que o turismo tem importância local ou regional (VOL. III, p. 329);
 Que possui sensibilidade em relação a qualidade da água (Vol. V, p. 31), ecossistemas aquáticos(Vol. V, p. 33), sensibilidade geológica no vale do rio piranga (Vol. V, p. 36), sensibilidade à erosão dos solos (Vol. V, p. 37), sensibilidade dos ecossistemas terrestres (Vol. V, p. 40), sensibilidade ao uso do solo para agricultura, especialmente em Ponte Nova (Vol. V, p. 46), sensibilidade à alteração ou desarticulação de comunidades sensíveis (Vol. V, p. 48) sendo a maior área a região do alto rio Doce.
 Que em relação a recursos hídricos e ecossistemas aquáticos a bacia do rio Piranga é a área mais sensível da bacia do rio Doce (VOL. V, p. 57);
 Que em relação ao meio físico e ecossistemas terrestres a bacia do rio Piranga é a área mais sensível da bacia (solos erodíveis) (VOL. V, p. 58);
 Que em relação a fragilidades dos recursos hídricos (ecossistemas aquáticos) a bacia do rio Piranga possui fragilidade média e alta (a jusante dos empreendimentos) e média e baixa (a montante dos empreendimentos) (VOL. V, p. 72);
 Que em relação a fragilidades do meio físico e ecossistemas terrestres possui fragilidade média e alta a jusante dos empreendimentos e média e alta a montante dos empreendimentos (VOL. V, p. 74);
 Quem possui elevada fragilidade em relação a socioeconomia, sendo a maior sensibilidade em Ponte Nova por causa de 2 reservatórios (VOL. V, p. 75);
 Que a subárea Alto rio Doce é a 2ª subárea com maior fragilidades na bacia do rio Doce e que deve-se estar atento à possibilidade de intensificação de fragilidades nesta área (VOL. V, p. 78);
 O maior impacto a longo prazo na bacia do rio Piranga será nos Recursos Hídricos e ecossistemas aquáticos já que o rio Piranga possui ambientes razoavelmente conservados (VOL. VI, p. 86);
 Deve-se ter cuidados especiais com os números significativos de PCHs na bacia tendo em vista ocorrer a fragilização do ambiente (VOL. VI, p. 87)".

Percebe-se que os estudos do governo federal reconhecem que o trecho do Rio Piranga que corta o município de Ponte Nova possui alta sensibilidade ambiental, bem como grande importância ecológica, sendo o último habitat do surubim do Rio Doce, espécie protegida por norma federal e em extinção.

Esses fatores e outros locais assim considerados levaram o poder municipal a dar maior enfoque à questão ambiental e elaborar as referidas leis no intuito de proteger e preservar o Rio Piranga para as presentes e futuras gerações.

Se de um lado o município não pode invadir a competência da União e dos estados, por outro, não poderá a União e o estado prejudicar concretamente o direito dos munícipes à sadia qualidade de vida e ao meio ambiente equilibrado local, sob pena de inconstitucionalidade.

A municipalidade, no exercício de sua competência legislativa suplementar, bem como na competência comum administrativa, acertadamente disciplinou matéria referente à proteção ambiental, fazendo incidir proteção jurídica sobre bens ambientais que afetam diretamente interesses locais. Sendo assim, não usurpou o município competência da União, o que afasta eventual inconstitucionalidade formal orgânica e torna a lei completamente válida.

A responsabilidade, em questões ambientais, é encargo de todos os entes federativos, inclusive os municípios, que podem, e devem, estabelecer normas suplementares para a preservação do meio ambiente, cumprindo, assim, os preceitos constitucionais.

A Constituição Federal atribuiu a qualquer dos três níveis de governo a responsabilidade pela proteção do meio ambiente. O poder público que quiser ou for obrigado a intervir tem o dever de buscar a prevenção. O município de Ponte Nova adotou uma postura ativa e com esse propósito editou as referidas leis.

As referidas normas do município de Ponte Nova são contempladas pelo próprio comando constitucional. O município, como ente federativo autônomo (artigo 18) e autorizado pelos dispositivos constitucionais dos artigos 23 e 30, I e II, interpretados de forma sistêmica, adequa a legislação dos demais entes às peculiaridades locais.

Em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, no dia 23 de novembro, divulgada pela ConJur [3], foi assegurada a competência do município para legislar sobre assuntos de interesse ambiental local. No Agravo Regimental 748.206, a corte suprema manteve decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que "considerou não haver qualquer vício ou inconstitucionalidade na Lei municipal 1.382/2000, que implementa restrições ao uso de um herbicida à base de 2.4-D, visando proteger determinadas culturas desenvolvidas na cidade e prevenir danos ambientais futuros" [4].

Com a devida vênia ao entendimento contrário esboçado no artigo citado no início deste texto, as legislações citadas do município de Ponte Nova buscam efetivar a proteção ambiental baseada no interesse local, com fulcro no comando constitucional. A República só poderá ser efetivada dentro de seus princípios constitucionais se for assegurada, a todos os entes federados, a competência para legislar sobre meio ambiente, implementando o princípio do desenvolvimento sustentável.

* O autor do texto é advogado da Câmara Municipal de Ponte Nova na ADPF 218.

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