Garantias do Consumo

Concentração de poderes em secretaria não melhora proteção ao consumidor

Autores

  • Adalberto Pasqualotto

    é professor titular de Direito do Consumidor no programa de pós-graduação da PUC-RS e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

  • Flávia do Canto Pereira

    é pós-doutoranda em Direito (UFRGS) professora de Direito do Consumidor na Escola de Direito da PUC-RS e ex-coordenadora do Procon-RS e do Procon municipal de Porto Alegre.

15 de dezembro de 2021, 18h33

O Decreto 10.887, de 6 de dezembro corrente, alterou o Decreto 2.181/1997, que regulamenta, no âmbito administrativo, o Código de Defesa do Consumidor. O decreto ora alterado já foi alvo de muitas críticas, mas a alteração agora produzida não tem o mérito do aperfeiçoamento esperado; ao contrário, traz novas imperfeições, inclusive ilegalidades, além de ter surpreendido o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, com o qual não foi aberto nenhum canal de diálogo prévio.

O presente texto vai se concentrar em um dos aspectos afetados pelo Decreto 10.887, aquele relativo à aplicação de sanções por infração das normas de proteção do consumidor, o que compete aos órgãos detentores do poder de polícia administrativa, que recaem, especialmente sobre os Procons municipais e estaduais.

O processo administrativo sancionatório no âmbito dos Procons é regulamentado pelo Decreto 2.181/1997 (agora alterado pelo Decreto 10.887/2021). As alterações no que concerne à dosimetria das sanções administrativas replicam o problema já existente, o de ausência de critérios únicos para fins de dosimetria, e criam mais um problema: ferem a competência concorrente entre os integrantes do SNDC.

A uniformização de critérios de dosimetria das multas aplicadas pelos Procons de municípios ou estados diferentes é importante, conforme ressaltamos em obra recente [1]. A uniformização dos critérios dá mais segurança jurídica e efetividade às decisões administrativas. O que se observa atualmente é que os critérios do artigo 57 nem sempre são obedecidos ou os fatores de cálculo aplicados são elevados ou brandos demais.

Assim, por exemplo, um mesmo fornecedor que possui unidades em São Paulo e em Rondônia, ao vender um produto ou prestar um serviço em São Paulo e ferir o Código de Defesa do Consumidor, pode ser multado em R$ 47.744,38. Se praticar a mesma infração em Porto Velho, a multa passará dos R$ 298 mil [2].

As diferenças de dosimetria praticadas pelos Procons estaduais demonstram a necessidade de mudança, pois o modelo atual não garante maior proteção ao consumidor, nem evita a reincidência das empresas infratoras, o que é fácil de constatar nos rankings de reclamações fundamentadas, em que se repetem infratores contumazes.

Ademais, a uniformização dos critérios de dosimetria deve servir para que as decisões dos Procons nos processos administrativos não sejam objeto de litígio no Judiciário, garantindo efetividade ao sistema e maior proteção ao consumidor.

Porém, há de se respeitar a competência concorrente entre órgãos de defesa municipais ou estaduais. A uniformização de critérios deve ser objeto de análise de impacto regulatório e discutida entre todos os membros do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), o que não ocorreu antes da criação e publicação do Decreto 10.887/2021.

Na obra citada, "Proteção Administrativa do Consumidor", propusemos que a Senacon firme convênios com os Procons estaduais afim de que todos possam utilizar critérios únicos de dosimetria. Por analogia, é apontado como possível solução de harmonização o que ocorre com os convênios das secretarias de fazenda estaduais no âmbito do ICMS. O SNDC poderia fazer algo similar. Ou seja, há necessidade de uniformização dos critérios de dosimetria para garantir efetividade dos processos administrativos, porém, de modo que a competência concorrente dos Procons seja preservada.

O Decreto 10.887/2021 não respeita a competência concorrente entre os Procons, a exemplo do artigo 28-B, que permite que o Secretário Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública possa estabelecer critérios gerais para a valoração das circunstâncias agravantes e atenuantes de que tratam os artigos 25 e 26; e a fixação da pena-base para a aplicação da pena de multa.

Cumpre destacar:

"A organização administrativa do Brasil decorre da forma federativa e, segundo esse critério, a divisão poderá ser vertical, ou seja, quando não há hierarquia entre os níveis (Administração Pública Federal, Estadual, do Distrito Federal e a Administração Pública Municipal); ou horizontal, quando cada Administração, em razão do seu grau de complexidade, reparte-se em administração direta e administração indireta. Nesse escopo, os órgãos públicos exercem atividades importantes na sociedade e, nesse prisma, a Administração Pública cumpre um papel no mercado de consumo, impedindo que haja concentração de poder de polícia em uma única autoridade administrativa" [3].

No âmbito do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, o Decreto Federal 2.181/97 define, no artigo 4º, que caberá ao órgão estadual, do Distrito Federal e municipal, no âmbito de sua competência, "IV funcionar, no processo administrativo, como instância de instrução e julgamento (…)". À vista disso, os Procons estaduais e municipais podem realizar abertura de processo administrativo sancionatório.

Além da já referida norma do artigo 28-B do Decreto 2.181/1997 ser ilegal, porque ofende a lei regulamentada, os novos critérios para a pena base, ultrapassam os que estão elencados no artigo 57 do CDC.

Em relação à dosimetria das sanções pecuniárias aplicadas pelos Procons, o artigo 57 do CDC estabelece os critérios para sua aplicação, quais sejam: a gravidade da infração, a vantagem auferida e a condição econômica do fornecedor. A multa deve ser em montante não inferior a duzentas e não superior a três milhões de vezes o valor da unidade fiscal de referência (Ufir), ou índice equivalente que venha a substituí-lo.

O decreto cria dois novos critérios, tais como a extensão do dano e a proporcionalidade entre gravidade da falta e intensidade da sanção [4]. Como mensurar a extensão do dano e principalmente a gravidade da falta com a intensidade da sanção? O novo decreto esbarra no mesmo problema de ausência de critérios objetivos para fins de dosimetria. Dessa forma, caberá a cada Procon definir os critérios, e não à Senacon.

O polêmico decreto traz ainda um rol de circunstâncias atenuantes, tais como: a) adoção de providências para minimizar ou reparar os efeitos do ato lesivo; b) confissão; c) participações em ações, projetos e treinamentos oferecidos pelo SNDC; d) adesão ao consumidor.gov, e não inova em relação as agravantes já previstas na redação anterior do decreto 2.181/1997.

As agravantes e atenuantes são taxativas, o que impede que novas práticas sejam consideradas pelos Procons como um ou outro para fins de cálculo de multa.

Além disso, o artigo 28-A [5] refere que os elementos que forem utilizados para a fixação da pena-base não poderão ser valorados novamente como circunstâncias agravantes ou atenuantes, o que torna as multas mais brandas, pois normalmente no cálculo de pena-base o critério de gravidade da infração se assemelha ao critério que é considerado para agravar a pena. Como por exemplo, quando a prática abusiva é prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade [6]. Essa prática abusiva frente a um consumidor idoso gera a agravante prevista no inciso VII do artigo 26 do Decreto 2.181 (ter a prática infrativa ocorrido em detrimento de menor de 18 ou maior de 60 anos). Porém, de acordo com o novo artigo 28-A para fins de dosimetria, em caso análogo, essa agravante não pode ser utilizada.

As mudanças na dosimetria, previstas no novo decreto abrandam as multas, beneficiam os fornecedores, interferem na competência concorrente entre os Procons e não resolvem o problema das diferenças de fatores dos critérios atribuídos por cada Procon para fins de cálculo de multa pecuniária. Os novos dispositivos não resolvem o problema da ausência de critérios uniformes e ainda enfraquecem o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor ante a falta de construção e diálogo da Senacon com os Procons.

Diga-se, para finalizar, que o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor foi criado por lei, no próprio Código de Defesa do Consumidor (artigo 105), cabendo ao órgão que o encabeça (atualmente a Senacon) as funções de propor e coordenar a política nacional de proteção do consumidor (inciso I do artigo 105). Ao concentrar poderes em suas próprias mãos, em detrimento dos demais órgãos do sistema, a Senacon exaspera o papel que lhe foi atribuído pelo legislador.


[1] PEREIRA, Flávia do Canto. Proteção Administrativa do Consumidor: Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e a ausência de critérios uniformes para aplicação de multas. RT, 2021.

[2] Análise comparativa e estudo publicado no livro Proteção Administrativa do Consumidor a partir de um caso paradigma.

[3] PEREIRA, Flávia do Canto. Proteção Administrativa do Consumidor: Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e a ausência de critérios uniformes para aplicação de multas. RT, 2021, P. 84.

[4] "Art. 28. Observado o disposto no art. 24 pela autoridade competente e respeitados os parâmetros estabelecidos no parágrafo único do art. 57 da Lei nº 8.078, de 1990, a pena de multa fixada considerará: I – a gravidade da prática infrativa; II – a extensão do dano causado aos consumidores; III – a vantagem auferida com o ato infrativo; IV – a condição econômica do infrator; e V – a proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção.”

[5] "Art. 28-A. Na fixação da pena de multa, os elementos que forem utilizados para a fixação da pena-base não poderão ser valorados novamente como circunstâncias agravantes ou atenuantes."

[6] "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: IV – prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;"

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