Opinião

As inconsistências naturais do Projeto de Lei das Fake News

Autor

  • Fabricio Bertini Pasquot Polido

    é professor associado de Direito Internacional Direito Comparado e Novas Tecnologias da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio de Inovação & Tecnologia e Solução de Disputas em L.O. Baptista.

15 de dezembro de 2021, 16h06

No último dia 7, o grupo de trabalho da Câmara do Deputados concluiu, a toque de caixa, a análise das propostas embasando o substitutivo apresentado pelo relator e deputado Orlando Silva (PCdoB) no Projeto de Lei 2630/2020, que pretende instituir a Lei de Liberdade, Transparência e Responsabilidade na Internet no Brasil. Apesar de alguns avanços pontuais meritórios, o PL das Fake News acumula consideráveis polêmicas, como as deliberadas tentativas de mutilação do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), aumento de mecanismos de vigilância e monitoramento da vida online de usuários, assim como recorrentes ameaças de rebaixamento de padrões de proteção civil da privacidade no ambiente digital a troco de rastreamento de cidadãos. O Marco Civil, vale sempre destacar, é notadamente um dos experimentos legislativos mais originais e de verve democrática em nosso país. Desde seu processo de elaboração, consolidou avanços doutrinários relevantes, capturou os desdobramentos jurisprudenciais nos campos dos direitos fundamentais e novas tecnologias e enrobusteceu o quadro normativo de direitos e obrigações para os "sujeitos digitais", incluindo usuários, empresas e autoridades governamentais e de aplicação das leis.   

Na retórica dos proponentes do PL 2630/2020, o mérito legislativo para uma nova lei especial residiria no combate à escalada da desinformação durante a pandemia da Covid-19. Após percalços em sua tramitação, o projeto revelou suas ambivalências, como a tentativa de regular certos usos da internet, buscando limitar o âmbito de atividades comerciais das plataformas, de médias e pequenas empresas atuantes no ambiente digital, e estabelecer regras duvidosas para controle de comportamentos de usuários, impulsionamento de propaganda político-eleitoral e mesmo criminalização. Por outro lado, é bem verdade, e na esteira de outras iniciativas hoje em tramitação no Congresso, o projeto foi recuperando políticas normativas centradas em abordagens autoritárias, como as gestadas durante o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Curiosamente, em algumas fórmulas hoje adotadas na versão do substitutivo aprovado pelo grupo de trabalho, o projeto faz lembrar esquemas regulatórios pretendidos em outras leis gerais e específicas que vigoraram ou parcialmente vigoram no Brasil. Entre elas destacam-se a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/1967), declarada como não sendo recepcionada pela Constituição da República, nos termos da ADPF 130, julgada pelo STF, e o Marco Legal da Atividade Publicitária (Lei nº 4.680/1965).

Não entrarei nos detalhes nesse momento, mas o fato é que de última hora novos jabutis expressos também foram introduzidos e reapareceram no texto do projeto, como o que estabelece a obrigação de remuneração de conteúdo de notícias por parte de plataformas. O que poderia traduzir a legítima pretensão de valorização da carreira jornalística profissional no ambiente digital ou reconhecimento de direitos autorais sobre escritos de imprensa, na verdade vem chancelar mais riscos oligopolísticos de mídias tradicionais, como as emissoras de TV, protegidas pelo artigo 222 da Constituição da República, e ilhas informacionais privadas transpostas para a internet. Por exemplo, a trajetória da proposta de remuneração de conteúdo jornalístico no PL 2630/2020 surge do substitutivo então proposto pelo senador Ângelo Coronel, em junho de 2020, para o artigo 17 da lei objetivada, sendo recuperado no texto alternativo do deputado Orlando Silva a partir da nova versão contida no artigo 38, aprovado pelo grupo de trabalho.  O dispositivo, por seu turno, é redigido da seguinte forma: "Os conteúdos jornalísticos utilizados pelos provedores ensejarão remuneração ao detentor dos direitos do autor do conteúdo utilizado, ressalvados o simples compartilhamento de endereço de protocolo de internet do conteúdo jornalístico original e o disposto no artigo 46 da Lei no 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, na forma da regulamentação".

A regra pretendida, hoje incorporada às disposições finais do texto do PL (justamente em uma seção para qual quase ninguém dá muita atenção), quer importar soluções atualmente questionadas em outros sistemas legais, como se elas fossem autoritativas ou modernizantes. Entre elas se encontram o News Media Bargaining Code da Austrália e a lei francesa que dispõe sobre a remuneração de editores de imprensa (Lei nº 2019-775). Os modelos mimetizados pelo legislador brasileiro são verdadeiros incubadores de acordos preferenciais a serem firmados entre plataformas e conglomerados de mídia, também estimulados por pressões e ameaças sancionatórias por parte de agências governamentais e vieses políticos apoiados na significativa rivalidade entre China e Estados Unidos no campo das tecnologias.  

No limite, essas novas regras, ainda pouco analisadas em seus efeitos de médio e longo prazos de aplicação pelos tribunais, sinalizam para pesadas restrições às atividades econômicas de outros agentes na cadeia digital, como pequenas e médias empresas atuantes no segmento de mídias, em especial jornalismo e indústria editorial. Nesse campo, aliás, subsistem enormes preocupações concorrenciais, informacionais e de interesse público. De um lado, usuários de internet e consumidores digitais passam a ser forçados a acessar apenas o que estiver amparado ou coberto pelos acordos de remuneração ou licenças sobre conteúdo de notícias a serem firmados com as plataformas. Nada é tão pueril assim, pois o modelo de licenças sobre conteúdo de notícias por meio de direitos autorais, tal como se encontra pressuposto pelo legislador para a internet brasileira, assemelha-se ao padrão comercial de assinaturas de TV a cabo, de revistas ou pagamento de royalties pela exploração de direitos de autor. Seriam esses os mais adequados arranjos  eminentemente contratuais e proprietários  para acesso a conteúdo informativo ou noticioso online? Por evidente que não.

Dito de outra forma, a regra pretendida com o artigo 38 do PL 2630/2020 apresenta-se contrariamente ao sentido da internet como conhecemos e da internet como regulada pelo Marco Civil da Internet, em especial princípios fundamentais, direitos de usuários, obrigações e responsabilidades de provedores. Até mesmo segundo a legislação autoral brasileira e os tratados e convenções relevantes, como a Convenção de Berna de 1886 sobre Proteção das Obras Literárias e Artísticas (incorporada ao Direito brasileiro pelo Decreto nº 75699/1975), a proposta de criar direitos auxiliares ou conexos de autor para conteúdo jornalístico esbarra em exceções e limitações previstas na disciplina da propriedade intelectual, como aquelas baseadas em citação, paródia, reprodução de pequenos trechos da obra protegida por direito de autor. Por isso que o artigo 38 do PL 2630/2020 (sucedendo o antigo artigo 17), à sua maneira, já nasce com potencial de expor o Estado brasileiro a eventuais controvérsias relacionadas à violação de normas internacionais, como a contida no artigo 10 (1) da Convenção de Berna, incorporada por referência ao Acordo Trips da Organização Mundial do Comércio (Decreto nº 1355/94). Segundo o artigo 10 (1) da convenção, são lícitas quaisquer citações e referências a uma obra tornada acessível ao público, "inclusive as citações de artigos de jornais e coleções periódicas sob forma de resumos de imprensa".

Ainda que o artigo 38 do projeto estabeleça ressalva à aplicação do artigo 46 da Lei de Direito de Autor brasileira, que prevê um conjunto de atos que não constituem violação de direitos de titulares (a propósito, por exemplo, da citação de passagens de obras para fins de estudo, crítica e polêmicas, desde que citados nome do autor e origem da obra), a regra proposta busca atingir outras finalidades de política normativa. Ela faz instituir uma espécie de proteção proprietária a todo tipo de conteúdo de notícia e assegurar que titulares assim considerados por lei  "editores de imprensa" ou autores do "conteúdo utilizado", basicamente representados pelos meios televisivos e jornalísticos sejam os beneficiados por acordos com as plataformas. Segundo a proposta brasileira no artigo 38 do PL, o novo direito não exigiria qualquer originalidade como requisito de proteção autoral; é evasivo quanto à distinção entre ideia e expressão, ambos fundamentos para a proteção por direitos de autor.  Indo mais além, a fórmula trazida pelo legislador brasileiro, igualmente repetida em outros projetos de leis tramitando no Congresso na atualidade, vem também contrariar o artigo 2 (8) da Convenção de Berna. O dispositivo proposto tecnicamente estende a proteção autoral a conteúdo de notícias do cotidiano ou a ocorrências diversas de notícias que têm o caráter de simples informações de imprensa, expressamente excluídas do direito autoral. Do ponto de vista econômico, levará plataformas e grandes conglomerados de mídia, a depender de um futuro "regulamento", a celebrarem acordos preferenciais, com zero incentivo de acesso por parte de pequenos e médios agentes ou para favorecer e valorizar o jornalismo profissional.

Não haveria nada de novo aqui. O cenário aponta não apenas para inconsistências quanto à política autoral, a partir da qual são estimulados o acesso, à atividade criativa, às referências e usos baseados em exceções e limitações, à proteção da expressão das ideias originais e renovação do ciclo do domínio público informacional.  No caso dos "escritos de imprensa", e por razões históricas da indústria dos meios de comunicações, a remuneração por edição (ou encomenda de obra) raramente chega aos jornalistas. Contratos de trabalho e de prestação de serviços adotados pelas empresas jornalísticas e de radiodifusão, em sua grande maioria, trazem cláusulas expressas de cessão total de direitos autorais. Ano após ano, existe enorme precarização do trabalho do autor jornalista e esse aspecto não pode ser atribuído à internet, aos provedores de serviços e ao Marco Civil da Internet.

Assim como ocorreu com experimentos de sistemas jurídicos comparados, a propósito das experiências na Austrália e na União Europeia (mais recentemente com a Diretiva de Direitos de Autor no Mercado Único Digital de 2019), a obrigação de remuneração de conteúdo de notícias não surge apenas como tentativa das mídias tradicionais de recuperar alegadas perdas de receitas advindas de publicidade para plataformas ou reduzir assimetrias regulatórias relativamente a provedores de serviços online. Ao contrário, a escolha de política normativa parece justamente o de deliberadamente reduzir, encolher os espaços informacionais disponíveis, sacrificando os usos da internet, o livro fluxo da informação e alcance das interações sociais proporcionadas pela internet, como se a internet devesse ser funcionar sob os modelos de concessões e outorgas das empresas de radio e TV. 

Afinal, tanto usuários (reduzidos a "consumidores digitais") quanto pequenos e médios agentes econômicos ficariam submetidos a políticas variáveis de preços de aquisição de bens informacionais, capturados por categorias desconhecidas da propriedade intelectual e que se expandem para o campo dos direitos conexos de autor, justamente os que protegem as entidades de radiodifusão.

No caso do artigo 38 do PL 2630/2020, reitera-se um jabuti expresso do PL da Fake News, a regra pretendida não assegura o objetivo meritório de combate à desinformação e notícias falsas. Ele estabelece um direito conexo ou auxiliar de autor para justificar a remuneração a ser paga por conteúdo de notícias, de modo a criar obstáculos, inclusive, para o deserto de notícias potencializados pela internet fragmentada. No fundo, parece ser um artifício de imposição de mais "tarifas" pelo uso privado da internet, viabilizadas a partir de arranjos entre plataformas e empresas de mídia. Essa mesma internet é transformada em espaço cada vez mais obscuro dotado de liberdade estrita, baixa transparência e responsabilidade para poucos, enfim, tudo ao contrário do que o PL 2630/2020 um dia pregava. Por todas essas razões, o legislador brasileiro não poderia ser seduzido por retrocessos característicos dos oligopólios tradicionais, e a quem mais importa a criação de direitos de natureza proprietária. Essas são, entre tantas, as razões pelas quais o Congresso deve rejeitar a proposta trazida pelo artigo 38 do PL 2630/2020 e retomar as discussões efetivamente preocupadas com o combate à desinformação e elevação do letramento digital em nosso país.

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    é professor de Direito Internacional, Direito Comparado e Novas Tecnologias da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Direito Internacional pela USP, advogado e sócio do escritório L.O. Baptista Advogados nas áreas de Inovação e Tecnologia e Solução de Disputas.

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