Opinião

Justiça para todos: o caso da boate Kiss

Autor

  • Alberto Zacharias Toron

    é advogado mestre e doutor em Direito Penal pela USP professor de Processo Penal na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca conselheiro federal da OAB e ex-presidente do IBCCrim.

15 de dezembro de 2021, 13h09

Nicolau dos Santos Neto havia sido presidente do TRT de São Paulo. Houve uma grave acusação de desvio de verbas na construção do novo fórum trabalhista. O Senado instaurou uma CPI do Judiciário que tinha o foco nesse caso. Os telejornais só falavam nisso e todos os ingredientes de um grande escândalo estavam presentes. A prisão preventiva dele, em nome do prestígio das instituições, foi decretada e ele, depois de, em vão, discutir a legalidade dessa medida em todas as instâncias, se apresentou.

Spacca
Moralmente esculachado com o apelido de "Lalau", septuagenário, asfixiado economicamente com o bloqueio de seus bens e preso, desenvolveu um severo processo depressivo. O juiz do caso, o mesmo que havia decretado a preventiva, determinou sua remoção para o regime de prisão domiciliar, com agentes da PF na sua casa. O MPF não se conformou com a decisão que causou revolta nos que queriam o "combate à corrupção". Manejou um recurso em sentido estrito (RSE) e impetrou um mandado de segurança no TRF da 3ª Região, que concedeu a medida liminar para atribuir eficácia suspensiva ao RSE.

Mas o STJ considerou ilegal essa decisão. Ao deferir a medida liminar no HC nº 17.804 (DJ 09/8/2001), o ministro Nilson Naves realçou a pletora de precedentes que apontavam a inviabilidade do manejo do mandado de segurança como um Habeas Corpus às avessas.

Idêntico estrépito causou a colocação da ex-primeira-dama do Rio de Janeiro em regime de prisão domiciliar pelo próprio juiz que decretara a sua preventiva. O TRF da 2ª Região concedeu liminar no mandado de segurança impetrado pelo MPF para dar efeito suspensivo ao RSE interposto, mas a ministra Maria Thereza de Assis Moura, com base em antigos e reiterados precedentes do STJ, cassou a decisão do TRF-2 (HC nº 392.806; DJe 28/3/2017).

A matéria, hoje, está sumulada pelo STJ tantos foram os casos julgados no mesmo sentido: "O mandado de segurança não se presta para atribuir efeito suspensivo a recurso criminal interposto pelo Ministério Público" (Súmula nº 604).

O que tem isso a ver com a condenação e prisão no caso da Boate Kiss? Muito.

Condenados os réus a penas superiores a 15 anos de reclusão, o juiz aplicou a nova regra do artigo 492, letra "e", do CPP, introduzida pelo pacote "anticrime" (Lei nº 13.964/2019), que impõe a "execução provisória da pena", com a expedição de mandado de prisão. Ocorre que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul havia concedido medida liminar em Habeas Corpus preventivo impetrado pela defesa de um dos réus para impedir a prisão imediata (HC nº 70.085.490.795).

Na decisão da fina lavra do desembargador Manuel José Martinez Lucas, além dos precedentes da própria Câmara e dele mesmo, colocou-se em evidência que estando o paciente em liberdade há vários anos e sem causar qualquer problema, a prisão logo após o julgamento pelo júri não se justificava, mesmo porque, as duas turmas especializadas em matéria penal do STJ firmaram o entendimento — correto, diga-se — de que é descabida a execução provisória da sentença ante a força da presunção constitucional de inocência (AgRg no RHC nº 130.301/MG, relator ministro Ribeiro Dantas, DJe 20/9/2021 e, entre muitos outros, AgRg no HC nº 530.499/ES, relator ministro Rogério Schietti, DJe 28/5/2020).

A decisão do desembargador do TJ-RS poderia ser objeto de agravo interno, sim. Mas não poderia até ser alvo de um mandado de segurança para lhe conferir eficácia suspensiva, pois, além de não ser teratológica, o impediria a Súmula nº 604 do STJ e, seja como for, a liminar concedida está em consonância com a jurisprudência do STJ.

Aí vem, como costuma dizer Lenio Streck, o "drible da vaca". Invoca-se o artigo 4º da Lei nº 8.437/92 e, a pretexto de existir uma questão constitucional, dirige-se a petição diretamente ao STF.

Ocorre que a lei em questão dispõe "sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público". Vale dizer, se uma medida liminar afetar o poder público (administração), nos termos do seu artigo 4º, compete "ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público".

O campo de incidência do referido dispositivo, como facilmente se percebe, é o do processo civil, e não o do penal. Não há ação movida contra o "poder público" no caso da Boate Kiss. Não é por acaso que o §1° do artigo 4º da Lei nº 8.437/92 assinala aplicar-se "o disposto neste artigo à sentença proferida em processo de ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública, enquanto não transitada em julgado". Tampouco o presidente do STF seria o órgão ao qual caberia "o conhecimento do respectivo recurso".

De outro lado, malgrado o STF tenha precedentes da 1ª Turma afirmando a possibilidade de se executar a pena desde logo quando se trata de decisão emanada do júri, isso não outorgava competência direta ao STF para impor sua jurisprudência. O sistema de justiça impõe regras que devem ser observadas. É curioso que um tribunal que tenha uma súmula como a 691, a qual afasta a competência do STF para conhecer da Habeas Corpus impetrado contra liminar indeferida em outro tribunal superior, se permita conhecer de questão ainda não julgada no tribunal de origem, e nem pelo STJ. Pior, o mesmo STF, com invulgar constância, tem proclamado, até em Habeas Corpus, a impossibilidade de conhecer de matéria não apreciada pelas instâncias inferiores. Como pode conhecer, agora, diretamente da matéria posta pelo MP-RS?

Poder-se-ia dizer que há uma questão constitucional. Sim, mas qual? A relativa à interpretação do artigo 492, "e", do CPP? Certamente, não. A da soberania dos vereditos dos jurados? Também não, pois o veredito não foi tangido pela liminar proferida pelo desembargador. A reserva de plenário, pois se tratou de reconhecer a inconstitucionalidade do dispositivo do artigo 492, "e", do CPP diante da presunção de inocência? Também não! É que a regra processual tem recebido uma interpretação conforme à Constituição, e não o reconhecimento da sua inconstitucionalidade e, seja como for, nesse caso caberia eventual recurso extraordinário, mas somente após o julgamento do writ.

Sobra, pesa dizê-lo, a odiosa tirania monocrática, o arbítrio unipessoal contra a lei e a Constituição. A satisfação distorcida à opinião pública com a punição antecipada de condenados que ainda têm direito à apelação não representa nenhum prestígio à Justiça. Atropelar regras de competência e, pior ainda, invocar uma lei descabida para mandar prender é o "vale tudo", é a antítese da justiça. Submeter "os outros" à prisão fora do figurino legal desmerece o Judiciário.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!