Tribuna da Defensoria

A constitucionalidade do poder de requisição da Defensoria Pública

Autores

  • Lincoln Jotha Soares

    é defensor público do estado de Minas Gerais ex-procurador da Câmara Municipal de Santa Luzia (MG) ex-oficial do Exército Brasileiro ex-delegado de polícia do estado de Minas Gerais e pós-graduado em Direito Público e Coaching Jurídico.

  • Gilson Santos Maciel

    é ex-assessor de juiz defensor público do estado de Minas Gerais e pós-graduado em Direito Civil pela PUC Minas.

14 de dezembro de 2021, 8h00

É de conhecimento público o recente ajuizamento, por parte do procurador-geral da República (PGR), de 22 ações no Supremo Tribunal Federal contra leis da União e dos estados-membros questionando a validade constitucional do poder de requisição da Defensoria Pública.

De acordo com o PGR, as leis conferiram aos defensores públicos um atributo que advogados privados, em geral, não detêm: o de ordenar que autoridades e agentes de quaisquer órgãos públicos expeçam documentos, processos, perícias e vistorias.

A Procuradoria-Geral alega que essa prerrogativa subtrai determinados atos à apreciação judicial, o que contraria o princípio da inafastabilidade da jurisdição.

Além disso, as normas desequilibrariam a relação processual, notadamente na produção de provas, ao conferirem poderes exacerbados a apenas uma das partes, o que ofende o princípio da isonomia, do qual decorre o preceito da paridade de armas.

Em suma, o poder de requisição da Defensoria Pública estaria a conflitar com os princípios da isonomia, inafastabilidade da jurisdição, contraditório e devido processo legal.

Antes de adentrar no debate da existência ou não de uma verdadeira tensão constitucional na questão posta pelo PGR, é necessário fazer algumas breves ponderações acerca das finalidades e importâncias do poder de requisição atribuído pelo legislador à Defensoria Pública.

A prerrogativa da requisição de documentos, certidões e procedimentos dos entes públicos conferida aos membros da Defensoria Pública é um instrumento de garantia da atuação judicial e extrajudicial da instituição na concretização dos direitos das pessoas nas suas múltiplas vulnerabilidades (econômica, técnica, jurídica, fática, organizacional etc).

Trata-se, em última análise, não de um poder, mas, sim, de um direito instrumental das pessoas vulneráveis. Referido direito pode ser extraído implicitamente da garantia fundamental do acesso à Justiça; e foi explicitado pelo legislador infraconstitucional nas diversas leis de organização da Defensoria Pública.

Vivemos, hodiernamente, uma novel onda do acesso à Justiça, paradoxalmente, fincada na desjudicialização. Explicamos: o legislador brasileiro, inspirado naquela onda, vem legislando para retirar do âmbito do Poder Judiciário as pretensões que não envolvam litígios e remetendo-as para a via extrajudicial, mormente cartorária, a exemplo dos registros públicos, divórcios, inventários e usucapião extrajudiciais.

Nessa senda, as leis organizacionais das Defensorias Públicas vão ao encontro dessa onda renovatória, eis que, para além de indicarem o vetor de preferencialidade na resolução extrajudicial dos conflitos, conferem maior amplitude e eficácia a essa atuação, mormente com a previsão da utilização do direito instrumental da requisição.

Calha lembrar que a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados (artigo 134, da Constituição Federal).

Assim, como instrumento do Estado democrático de Direito na concretização dos direitos humanos, a Defensoria Pública deve ter à sua disposição, implícita ou explicitamente, poderes, prerrogativas e direitos que facilitem e tornem efetiva a sua atuação, sob pena de tornar ineficaz a norma constitucional inserta no dispositivo do citado artigo 134 da Carta Magna.

Pois bem.

Evidenciamos que a questão posta pelo PGR, como que o poder de requisição da Defensoria Pública seria ofensivo aos princípios da isonomia, inafastabilidade da jurisdição, contraditório e devido processo legal, com a devida vênia, não é o melhor enquadramento à luz da hermenêutica jurídica e da moderna teoria dos princípios, cujos aportes teóricos foram formulados por Ronald Dworkin e Robert Alexy.

O caráter normativo dos princípios, hoje algo trivial, não era plenamente reconhecido até meados do século 20. As constituições do pós-Segunda Guerra Mundial, na esteira da doutrina neoconstitucionalista, a qual confere verdadeira força normativa à Constituição, passaram a positivar diversos princípios, alçando-os ao caráter de verdadeiras normas jurídicas, servindo de parâmetro para o controle de constitucionalidade das leis.

Nessa temática, a dificuldade que se coloca é de ordem hermenêutica, ou seja, em que medida, e com base em quais argumentos/avaliações (subjetivas ou objetivas), uma norma infraconstitucional viola uma norma constitucional?

Assim, segundo uma avaliação/interpretação subjetiva (do PGR, diga-se de passagem), as normas que conferem o poder de requisição à Defensoria Pública estariam a violar a isonomia, a inafastabilidade da jurisdição, entre outros princípios consagrados no texto constitucional.

Eros Grau, ex-ministro do STF, em sua obra "Por Que Tenho Medo dos Juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios" (7ª ed., 2016), revela um certo receio quanto à incerteza e insegurança na atividade de interpretação do Direito, quando o intérprete o faz subjetivamente, de acordo com o seu senso de justiça.

Segundo Eros Grau, o Direito moderno é racional, na medida em que permite a instalação de um horizonte de previsibilidade e calculabilidade em relação aos comportamentos humanos vale dizer: segurança. Trocamos nossa insegurança por submissão ao poder; aceitamos o poder por conta de garantias mínimas de segurança por ele bem ou mal asseguradas.

Acerca da interpretação do Direito, o citado autor ensina que não se interpreta a norma: a norma é o resultado da interpretação. E mais, a interpretação do Direito é interpretação dos textos e da realidade.

Porém, o intérprete está vinculado pela objetividade do Direito. Os juízes decidem não subjetivamente, de acordo com o seu senso de justiça, mas aplicando o Direito (a Constituição e as leis).

A racionalidade formal do Direito moderno, fundada no Direito positivo, não pode ser substituída por uma racionalidade de conteúdo, fundada em valores subjetivos do intérprete e no seu senso próprio de justiça.

Segundo Grau, "a importância do direito moderno vale dizer, da ética da legalidade está em que a legalidade é o último instrumento de defesa das classes subalternas, dos oprimidos. Estou a escrever este texto para fazer a sua defesa, a defesa da legalidade e do direito positivo" (Grau, ob cit, pág. 22).

Nesse contexto, as normas organizacionais da Defensoria Pública apresentam-se, por si só, a objetividade e a racionalidade que se deve dar à questão da validade jurídica do poder de requisição conferido à Defensoria Pública.

É dizer, a discussão posta pelo PGR acerca da validade do poder de requisição da Defensoria Pública melhor encontraria lugar se não houvesse norma do Direito positivo regulamentando a questão, cabendo, aí, sim, avaliar e discutir os fundamentos apresentados ao STF.

Ocorre que já existe expressa opção do legislador pelo poder de requisição conferido à Defensoria Pública, com leis vigentes há décadas, e sem qualquer alegação de desvios ou mau uso da prerrogativa pelos defensores públicos.

Segundo o constitucionalista Marcelo Novelino (in: Curso de Direito Constitucional. 16ª ed., 2021, pág.148, grifos dos autores):

"Quando as normas constitucionais não obrigam nem proíbem algo, há uma margem de ação estrutural para definir os objetivos, escolher os meios e para sopesar. Existindo norma regulamentadora, três vetores interpretativos impõem aos julgadores o dever de conferir primazia às escolhas feitas pelos órgãos legislativos e administrativos: o princípio democrático, referido por Alexy (2008b) como 'princípio formal da competência decisória do legislador democraticamente legitimado'; o princípio da presunção de constitucionalidade das leis; e o princípio das capacidades institucionais".

Dessa feita, ao conferir a prerrogativa de requisição à Defensoria Pública, o legislador nada mais fez que atribuir poderes à instituição para o bom desempenho do seu mister.

A escolha de atribuir tal prerrogativa à Defensoria é o resultado do sopesamento com possíveis razões contrapostas, impedindo ao intérprete substituir a escolha institucionalizada pelo legislador democraticamente eleito por suas valorações pessoais.

Ora, desconsiderar a expressa opção do legislador de conferir poderes instrumentais à Defensoria Pública propiciando condições materiais para o exercício de seu mister, isso, sim, constituiria verdadeira inconstitucionalidade, a enfraquecer a densidade normativa do disposto no artigo 134 da Lei Maior.

Por derradeiro, é imperioso salientar que a pretensão da Procuradoria-Geral ignora o princípio da proibição do retrocesso social (ou da irreversibilidade dos direitos fundamentais), porquanto é inegável que, embora juvenil, a Defensoria Pública tem ganhado cada dia mais importância para as pessoas vulneráveis de nosso país na medida em que os direitos humanos na seara individual e coletiva vem sendo concretizados. Não sem razão que fora a instituição pública mais bem avaliada pela pesquisa de opinião realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público.

Dessa forma, sem a prerrogativa da requisição o retrocesso do direito fundamental ao acesso à ordem jurídica justa é incontestável.

O ministro do STF, Celso de Melo, preleciona que:

"A cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional, impedindo, em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos", salvo na hipótese da implementação de políticas compensatórias. (ADI 3.105, relator ministro Cezar Peluso, j. 18/8/2004)

Destarte, ao contrário dos argumentos do PGR, o legislador, ao conferir a prerrogativa de requisição à Defensoria Pública, dá concretude e eficácia aos princípios constitucionais supostamente apontados como violados, eis que constitui verdadeira expressão do princípio da isonomia, e instrumento de acesso à Justiça, a viabilizar a prestação de assistência jurídica integral e efetiva, nos termos do artigo 5º, XXXV e LXXIV, da Constituição Federal.

Evidenciamos, portanto, que não se coloca no tema proposto pelo PGR um confronto real entre as regras que conferem o poder de requisição à Defensoria Pública e os apontados princípios constitucionais (inafastabilidade, isonomia etc.), muito antes pelo contrário: aquelas regras dão concretude e densidade normativa a esses princípios.

Autores

  • é defensor público do estado de Minas Gerais, ex-procurador da Câmara Municipal de Santa Luzia (MG), ex-oficial do Exército Brasileiro, ex-delegado de polícia do estado de Minas Gerais e pós-graduado em Direito Público e Coaching Jurídico.

  • é ex-assessor de juiz, defensor público do estado de Minas Gerais e pós-graduado em Direito Civil pela PUC Minas.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!