Opinião

Estatuto da Terra: os 57 anos de um marco para o agronegócio nacional

Autor

  • Giovanni Mendes Ribeiro Pallaoro

    é advogado da área de Direito Imobiliário e Contratos do escritório Silveiro Advogados e possui especialização em Direito Agrário e Agronegócio pela Fundação Escola Superior do Ministério Público e em Direito dos Negócios pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

14 de dezembro de 2021, 12h06

O agronegócio está em plena e constante expansão no país, sendo setor da economia de extrema relevância para o cenário nacional. O segmento foi responsável por 26,6% (R$ 1,96 trilhão) do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro em 2020, de acordo com dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea).

No último dia 30, foram festejados os 57 anos do advento do Estatuto da Terra, uma legislação que trouxe muitas benesses ao agronegócio nacional posta à sociedade de outrora, mas que já não mais coaduna com os relevantes avanços sociais, econômicos, comerciais, tecnológicos e jurídicos atuais. Nessa toada, por mais louvável que seja a preservação de uma normativa jurídica ao longo de décadas, o regramento legal atualmente dado aos contratos agrários típicos (Estatuto da Terra — Lei nº 4.504/64  e Decreto Regulamentador nº 59.566/66) não mais suporta, nem propicia, o ambiente negocial ideal para a promoção do desenvolvimento econômico do setor agroindustrial, que tem sofisticado sua atuação de forma exponencial nos últimos anos.

Antes de mais nada, é preciso ter em mente que nenhum dos princípios positivados no Estatuto da Terra pode ser vislumbrado como absoluto. Alguns precedentes, portanto, flexibilizam vedações negociais constantes no referido ordenamento jurídico.

Um deles é o da 3ª Turma do STJ, no REsp nº 1.447.082/TO, de relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que afastou o direito de preferência a uma empresa agrícola de grande porte que pretendia exercer a referida prerrogativa para adquirir imóvel rural por ela arrendado. Nas razões de voto, o ministro fundamentou a decisão no sentido de que a aplicabilidade das normas protetivas do Estatuto da Terra deveria ser direcionada às partes que, efetivamente, exerçam o manejo das atividades agrícolas como próprio "homem do campo", assim como previsto pelo artigo 8º do Decreto nº 59.566/66.

Já no RESp nº 1.692.763/MT, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, restou prevista a validação de cláusula que fixava o valor do arrendamento em produto para fins de liquidação, em decorrência da boa-fé objetiva. No referido voto, a ilustríssima ministra relatora também destacou que a redação da cláusula em apreço foi firmada com base nas vontades dos próprios contratantes e com atenção aos costumes do local, indo de encontro, portanto, ao previsto pelo Decreto Regulamentador nº 59.566/66, em seu artigo 18, parágrafo único, que veda que os contratantes ajustem o preço do arrendamento rural em commodities.

No que tange ao tema em âmbito legislativo, há o debate a respeito da positivação do princípio da autonomia privada no microssistema do Estatuto da Terra. Em 20/11/2019 foi apresentado Projeto de Lei sob o nº 6.092, o qual pretende positivar que a proteção prevista pelo artigo 92 do Estatuto da Terra deve ficar restrita apenas aos agricultores familiares.

A referida proposta detém, praticamente, do mesmo texto anteriormente previsto pela MP nº 881/2019, que pretendia a inclusão do décimo parágrafo no artigo 92 da Lei nº 4.504/64, a fim de possibilitar a livre negociação de cláusulas contratuais em negócios jurídicos que não versem como partes agricultores familiares (texto não aprovado pela Câmara dos Deputados). No último dia 18, o PL nº 6.092 teve o parecer do relator aprovado pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) e segue pendente aguardando designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) para continuidade de seu trâmite legislativo.

Não obstante, por mais louvável que seja a iniciativa, apenas a inclusão do referido parágrafo não soluciona, por si só, os anseios e as necessidades de evolução do regramento legal dos contratos agrários. Como pontos negativos que podem ser mencionados estão a insegurança jurídica quanto à delimitação específica de quem se enquadraria como "homem do campo" e a possibilidade de tornar a contratação com um agricultor familiar um entrave (possibilidade de sofrer discriminação), haja vista o tratamento diferenciado que teria.

A proteção, em demasiado, de um dos contratantes não pode ser vista de forma absoluta por parte da legislação e da jurisprudência nacional. A aplicação do Estatuto da Terra nos estritos moldes atuais oportuniza a criação de óbices para o regular desenvolvimento da economia do setor agroindustrial, criando um desequilíbrio contratual entre partes que, por muitas vezes, apresentam-se como semelhantes na seara comercial. Nesse sentido, ainda que sejam partes com a condição de paridade empresarial, nos termos do inciso VII, artigo 3º, da Lei nº 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), há certo receio da utilização do princípio pacta sunt servanda nos instrumentos regulados pelo Estatuto da Terra.

De acordo com os precedentes citados, percebe-se que o STJ, em posição de vanguarda frente à legislação atual, traz um novo olhar sobre o confronto entre os princípios fundamentais do Direito Privado, especialmente em função da grande importância que o agronegócio ocupa na economia nacional.

Cabe agora, ao Congresso Nacional, propiciar o debate amplo e de alto nível, a fim de ser elaborado um novo diploma legal que, de forma sólida, possa substituir a legislação vigente e propiciar o avanço da normativa ao presente milênio. Assim, deve ser mantido o direito aos contratantes em condição de vulnerabilidade, no entanto, a prevalência da autonomia privada aos empresários rurais, junto à compatibilidade da prática negocial com o interesse útil do contrato. Isso proporcionaria maior equilíbrio e segurança jurídica às partes, com reflexo direto no desenvolvimento econômico e social da atividade agropecuária, tão necessária para o cenário nacional.

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    é advogado da área de Direito Imobiliário e Contratos do escritório Silveiro Advogados e possui especialização em Direito Agrário e Agronegócio pela Fundação Escola Superior do Ministério Público e em Direito dos Negócios pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

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