Opinião

Sobre a tributação de lucro em programa de recuperação fiscal

Autores

14 de dezembro de 2021, 20h16

Em qualquer debate, diante de uma dissidência precisamos entender qual o último ponto de concordância e, a partir disso, compreender quais são as origens da divergência. Comecemos, então, estas linhas com aquilo que é inescapável: só se pode tributar uma manifestação de riqueza.

Sigamos, estabelecendo premissas bem básicas: existem dívidas certas (aquelas com as quais uma pessoa jurídica concorda integralmente, ao ponto de as contabilizar como despesas) e cobranças em face da mesma pessoa jurídica contra as quais ela se insurge (que, portanto, são contabilizadas como riscos, apenas).

Em regra, uma cobrança tributária desafiada pelo contribuinte, seja na esfera administrativa ou judicial, reflete sua não concordância com essa imposição fiscal e, portanto, é naturalmente qualificada como contingência  perda possível, provável ou remota. Não há aqui definitiva certeza de dispêndio, ainda que em dada circunstância soe eventualmente mais provável que improvável, antes do trânsito em julgado.

Lembremo-nos: a certidão da dívida ativa (CDA) é o único título executivo formado unilateralmente. Ela dá à luz um cenário totalmente diferente de quando uma pessoa jurídica adquire insumos junto a seus fornecedores e há previsão contratual (originada de vontades recíprocas e livres) estatuindo o pagamento em determinados valor e data, gerando ato contínuo para a pessoa jurídica devedora a necessidade de contabilização de obrigações certas.

Mesmo assim, aparentemente a Secretaria da Receita Federal (SRF) tenta igualar essas situações díspares. O enredo em dados instantes lembra o das melhores produções cinematográficas, mas ainda nos choca. É como nas séries e filmes americanos: às vezes um governo oferece um benefício e esconde a eventual maldade em letras miúdas ou retira uma linha do texto antes que o acusado assine o acordo; a hollywoodiana prática de iludir o acusado para assumir a culpa sob promessa de um acordo que, segundo o agente do Estado, é o melhor que vai conseguir e é mais prudente do que arriscar a sorte perante um júri.

O incauto assina o acordo e as surpresas começam. Esse roteiro é conhecido de quem assiste a produções estadunidenses que representem a persecução criminal naquele país. A arte imita a vida e a vida, não raro, imita a arte.

O Programa Especial de Regularização Tributária (Pert) foi criado com objetivo declarado de "prevenção e a redução de litígios administrativos ou judiciais relacionados a créditos tributários e não tributários, bem como a regularização de dívidas tributárias exigíveis, parceladas ou com exigibilidade suspensa" (texto da exposição de motivos da Medida Provisória 783/2017 [1]).

Aqui vale recordar, em um apertadíssimo resumo, que o programa, consolidado pela Lei nº 13.496/2017 [2], previa algumas hipóteses de parcelamento e, também, de redução de juros e multas moratórias.

Naturalmente, para aderir ao Pert o contribuinte precisava confessar a dívida que pretendia regularizar. Com base nisso, a SRF entende que a anistia consiste em um verdadeiro perdão de dívida, o que atrairia a incidência dos tributos incidentes sobre receita e lucro  IRPJ, CSLL, se tais valores foram tratados como despesa dedutível no passado, PIS e Cofins  tal como disposto na Solução de Consulta Cosit 65/2019 [3].

Em linhas gerais, entende o Fisco que, no caso dos tributos incidentes sobre o lucro, o contribuinte obteve uma "bonificação" em forma de redução de juros e multas, de modo que, em sua visão, o passivo tributário é reduzido e a contrapartida deve ser uma conta de receita, atraindo a tributação pelo IRPJ e CSLL (item 10). No caso de PIS e Cofins, a SRF alega que a recuperação de custos ou despesas revertidas em razão de adesão ao Pert configura receita no regime de apuração não cumulativo (itens 13 e 14).

Dito isso, um alerta: o núcleo do nosso estudo, embora traga como eminente exemplo o Pert federal, trata de aspectos que se aplicariam à dinâmica de todo e qualquer programa de anistia/regularização fiscal, seja ele em nível municipal, estadual, distrital ou federal.

Adiantamos o ponto de chegada, de modo a tornar mais direcionada a leitura das linhas a seguir: compreendemos que, em casos afins (pagamento beneficiado por lastro normativo), simplesmente não é devida a tributação, haja vista não se detectar nenhuma manifestação real de riqueza.

É também preciso dizer: não é correto, em todos e quaisquer casos, considerar que existe evidente aumento do patrimônio pela simples redução de multas e juros. Recorremos novamente a um elucidativo exemplo: quando o contribuinte discute os débitos, judicial ou administrativamente, não os reconhece como líquidos e certos, de modo que eles não constituem, definitivamente, uma despesa, mas, sim, mero passivo contingente. Nesse caso, sequer se enxergaria uma receita como contrapartida de redução de despesa.

Alguns poderiam dizer que o reconhecimento integral da correção da pretensão do Fisco é condição sine qua non para adesão a programas de pagamentos beneficiados (anistias fiscais) e, por isso, a despesa precisaria ser reconhecida integralmente pelo contribuinte aderente.

Porém, empírica e tecnicamente, essa ideia não se sustenta: a norma instituidora de programa de pagamentos de débitos tributários se fundamenta exatamente em reduzir o valor ao ponto de gerar atratividade suficiente para os contribuintes se convencerem de que assumir uma certeza quantitativamente equivalente a pagar a quantia reduzida reflete algo menor que o risco potencial preexistente.

Com isso, não estamos sugerindo que se negue o disposto no §4º do artigo 2º da lei que criou o programa e que impõe, como consequência da adesão ao Pert, a confissão irrevogável e irretratável dos débitos em nome do sujeito passivo. O que se questiona aqui é a interpretação que a norma merece e qual a simetria quantitativa entre o que é reconhecido e o que é pago.

Primeiro, porque a confissão a que o dispositivo se refere é expressamente a do Código de Processo Civil, ou seja, diz respeito a fatos, e não ao direito aplicável. Isso excluiria, de pronto, as situações em que o contribuinte adere ao Pert e desiste de processos que versavam sobre a aplicação da lei tributária e não em relação à ocorrência ou não de fatos.

Segundo, porque a confissão se dá em contexto de aproveitamento de benefícios fiscais, logo não há segredo de que o aderente está agindo motivado por uma oferta do polo oposto do processo com redução de valores.

A tentativa de se etiquetar a postura como reserva mental, aqui, sequer pode ser assim qualificada, porque a condição é precedente e clara para ambos os lados. No Direito Civil, a chamada reserva mental (artigo 110 do Código Civil) pode gerar consequências, e não parece que nessa situação devesse ser diferente…

Vale recordar que a interpretação do fato gerador dos tributos sobre os quais falamos aqui deve se orientar pelos princípios que regem o Direito Tributário, à luz do conceito jurídico de receita para fins de tributação.

Sob essa ótica, o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar a Constituição da República, tem firme jurisprudência no sentido de que "sob o específico prisma constitucional, receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições" [4] .

Não nos parece haver nenhum elemento novo no caso em que o contribuinte que discutia crédito tributário judicialmente aceita pagar valor líquido e certo. Não existe algum movimento de aceitar totalmente a dívida maior para pagar, na verdade, um débito reduzido.

Deveras, o contribuinte aceita pagar a autuação fiscal somente nos seus novos limites, porque a posição foi alterada pela lei superveniente que ofertara descontos. Assim, deve existir o reconhecimento da obrigação de pagar o crédito tributário pela quantia oferecida pelo Estado, e somente essa.

Por isso, e o dado de realidade empresarial e de gestão fiscal aqui salta aos olhos, fica difícil afirmar que o contribuinte deva reconhecer o valor total do débito para, a partir das reduções, oferecer à tributação a diferença.

Nesse ponto vale abordar uma questão que envolve segurança jurídica e comportamento do Estado frente à tributação: a reiteração de comportamento do ente tributante em um formato, modelo de repactuação de tributos, gera justa expectativa de manutenção dessa forma?

Isso porque o parágrafo único do artigo 4º da Lei nº 11.941/2009 [5] excluía da apuração da base de cálculo do Imposto de Renda, da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, da Contribuição para o PIS/Pasep e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) a parcela de redução do valor das multas, de juros e encargo legal em decorrência do incentivo.

O Pert previa uma isenção, mas o dispositivo foi vetado pelo presidente da República sob alegação de falta de previsão da renúncia de receitas e compensação de acordo com as exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal e Lei de Diretrizes Orçamentárias.

No entanto, alguém consegue afirmar que a previsão de ingresso de receitas com o Pert estava alinhada à previsão de receita com arrecadação dos tributos em razão dos descontos aplicados? Certamente não.

Respondemos isso com toda segurança, porque há muito a previsão de receitas e os riscos fiscais são dimensionados de forma otimista, nem sempre refletindo a realidade (e depois isso é usado em juízo, especialmente pelo Fisco: "Essa derrota poderá nos custar X bilhões e impedir os projetos A, B, C").

Raciocinemos: a própria necessidade de um programa de recuperação é indício de que a arrecadação originalmente prevista provavelmente não seria efetivada  esse é um pressuposto lógico de quaisquer programas desta natureza.

Nesse cenário, pois, o contribuinte foi atraído para a regularização com uma proposta aparentemente vantajosa para encerrar a discussão, mas é obrigado a levar à tributação um ganho meramente fictício sem representar manifestação de riqueza (mas, pura e simplesmente, a exclusão de um passivo que poderia nunca se realizar).

E aqui, esclarecemos novamente, não se trata, absolutamente, de se exigir a instituição de norma isentiva. A isenção, seja ela enxergada como uma causa normativamente qualificada de não incidência ou como mera exclusão do crédito tributário (artigo 175, I, da Lei nº 5.172/66  Código Tributário Nacional  CTN), pressupõe a preexistência de um crédito tributário.

O campo a que aludimos neste estudo é, por outro lado, o de ausência absoluta de riqueza e, por conseguinte, de fato gerador dos tributos federais (IRPJ, CSLL, PIS e Cofins) que a SRF insiste em cobrar.

É dizer, a previsão da isenção posteriormente vetada não nos parece elemento de relevo para a solução do caso ao contrário do que se observa em algumas decisões judiciais[6] , pois a análise deve ser feita sob o prisma constitucional e não se pode, é sempre bom lembrar, interpretar a Constituição com base em texto de lei que foi vetado.

Fisco e contribuintes vêm se aproximando, especialmente no emprego e evolução dos meios de autocomposição  tais quais negócios jurídicos processuais [7], transações [8] e mesmo a ideia de arbitragens na área tributária [9].

Para que esse movimento siga em franca evolução, é de relevo que parem de acontecer surpresas desagradáveis ou tentativas de tributação quando evidentemente ausentes os requisitos fundamentais para tanto.

Afinal, aproximação pressupõe credibilidade recíproca. E apenas em ambientes seguros e de confiança os investidores poderão voltar a acreditar em um crescimento nacional sustentável, fundamental essa crença para que coloquemos o Brasil em um patamar institucional de vanguarda e de real e sustentável desenvolvimento.

 


[4] RE 606.107/RS, julgado pelo plenário do STF, em repercussão geral  tema 283.

[6] Por exemplo, a Apelação Cível n° 5012819-62.2018.4.03.6100 recentemente julgada pelo TRF da 3ª Região.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!