Risco assumido

Juiz do caso Kiss diz que condenação por dolo eventual foi admitida por colegiados

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14 de dezembro de 2021, 15h21

"A plausibilidade do dolo eventual foi afirmada pelo juiz de Santa Maria, que pronunciou os réus. Isso foi confirmado por dois desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; um votou vencido, o que levou a uma nova apreciação ainda no TJ-RS, quando a votação ficou 4 a 4. Houve recurso para o STJ (Superior Tribunal de Justiça), em que cinco ministros afirmaram a plausibilidade do dolo eventual. Essa plausibilidade foi incrementada por um juízo de certeza dos jurados, que votaram pelo dolo eventual", disse o juiz Orlando Faccini Neto, que comandou o julgamento da tragédia da boate Kiss, em entrevista publicada pela Folha de S.Paulo nesta terça-feira (14/12).

Juliano Verardi/TJ-RS
O juiz Orlando Faccini Neto, do TJ-RS
Juliano Verardi/TJ-RS

O magistrado ainda disse concordar com o desfecho do Tribunal do Júri após dez dias de sessões e afirma que seu grande objetivo foi alcançar um resultado que "não contenha risco de anulação". "Estou de acordo com a decisão do júri e estaria de acordo fosse ela qual fosse. Sou um magistrado que acredita na instituição do júri. Acho que ele precisa de reformas simplificadoras, que o situem no século 21, mas, enquanto expressão de um sistema de Justiça democrático, acho que o júri acerta sempre."

Faccini disse que buscou "garantir que, diante de uma situação tão difícil, o julgamento se concretizasse em bases racionais, jurídicas, dentro de um cenário de serenidade, equilíbrio".

Na última sexta (10/12), o juiz anunciou a condenação dos quatro réus acusados por homicídio e tentativa de homicídio por dolo eventual no incêndio que, quase nove anos atrás, deixou 242 mortos e mais de 600 feridos. As penas chegam a 22 anos de prisão.

A decisão partiu do corpo de sete jurados. O magistrado tinha três sentenças encaminhadas, baseadas nas teses apresentadas pelas partes: absolvição, desclassificação (retirando o dolo) ou condenação.

Professor na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), ele diz que não costuma falar de seus casos em sala de aula. "No sábado (11/12), fiquei mais recatado, acompanhando a repercussão nas redes sociais e na imprensa. No domingo, eu estava mais recuperado e foi possível entender que o júri se concluiu, já olhando para a frente, encarando o futuro. A carga emocional de um caso como esse é imensa."

Como juiz do tribunal do júri, Faccini disse considerar que, "o ponto de vista das vítimas ou dos familiares das vítimas é deixado muitas vezes em segundo plano". "Há doutrina estrangeira que preconiza o inverso. Há países em que, após a condenação, existem audiências tendentes a escutarem-se vítimas e familiares acerca da pretensão de pena que possuem. Noutros casos, se traz a intensidade do sofrimento, a dor da perda, circunstâncias que são peculiares às pessoas lesadas, como relevantes para a dosimetria da pena."

"É importante dizer que a perspectiva da vítima não é de ser tomada em conta para o juízo de condenação ou absolvição. Isso se faz a partir das provas do processo. Agora, quando há um desprezo completo à condição da vítima, o sistema penal passa a olhar simplesmente para aquele que infringiu a lei. É necessário que olhe também para aquele que, sem infringir a lei, teve sua condição de vida degradada ou piorada."

"O processo penal e a sentença criminal precisam produzir algum apaziguamento no espírito daquele que foi violado por outrem. Eu percebi isso no caso: em alguma medida, as pessoas envolvidas com o episódio enunciaram que se sentiram respeitadas pelo sistema de Justiça. O que, em última análise, significa respeitadas pelo Estado", finaliza.

Sobre o Habeas Corpus que impediu o cumprimento imediato da sentença, o disse achar a "liminar explicável, do ponto de vista jurídico, porque há discussões acerca do tema". "Porém devo dizer que cumpri estritamente o Código de Processo Penal. De outra parte, a Constituição diz que cabe HC quando o constrangimento a liberdade de locomoção é ilegal. Não se trata de um ponto de vista exclusivo do desembargador que deu a liminar. Muitas pessoas pensam como ele. Eu discordo, mas respeito e, como juiz subordinado à hierarquia do tribunal, cumpri a decisão sem nenhum constrangimento ou crítica."

Professor de direito penal na Federal gaúcha, Orlando Faccini Neto, 45, é formado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (SP), doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa, professor do mestrado do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), em Brasília.

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