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Johner: Impressões sobre o caso da Boate Kiss e o poder de punir

14 de dezembro de 2021, 15h04

Por Marcos Afonso Johner

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Somos herdeiros da mentalidade europeia e da crença em um Deus monoteísta, que revelou a sua vontade e a impôs ao seu rebanho num catálogo escrito de regras (vide o "Decálogo", por exemplo), as quais devem ser fielmente cumpridas. Para obter a submissão, a Igreja condicionou o povo a devotar a sua crença nessa vontade revelada, não só mediante ameaças de punição divina, mas também da recompensa de desfrutar a vida eterna no reino dos céus [1]. Resolvem-se os conflitos de acordo com os preceitos recebidos da divindade. Modelo unificador e centralizador que, mais tarde, parece ter sido transposto para o Estado moderno. Caminhamos da onipotência da lei divina para a onipotência da vontade estatal [2]. Para superar um suposto estado de natureza, firmou-se um pacto, o "contrato social", e criou-se esse monstro artificial que é o Estado. Foram-lhe atribuídos os mecanismos para "assegurar a coesão social", notadamente o monopólio da força [3] e a criação do Direito [4]. Se bem vejo, esse processo, produto da racionalidade moderna, foi levado a cabo, no âmbito das ciências criminais, com o objetivo de evitar a vingança privada. 

Eis-nos cá, perante a tradição ocidental, da qual não temos como nos esquivar. É produto da mentalidade europeia, que nos colonizou e ainda nos mantêm, de certa forma, colonizados. Quando se retira das mãos da vítima o exercício da punição, o resto da sociedade deposita no Estado, assim me parece, a expectativa de uma resposta diante de um caso grave. Afinal, o mito do contrato social não inculca que cedemos parcela de nossa liberdade em troca de segurança? Então, é preciso que o Estado a garanta, que ele dê o exemplo. Não se pode dar margem à impunidade, assim parece pensar boa parte da população nacional, mesmo que os direitos e garantias fundamentais do acusado não sejam respeitados. A sociedade necessita encontrar respostas e culpados para depositar a responsabilidade das tragédias.

Para isso, não se espera nada menos do que penas altíssimas, ainda que não condizentes com a tipificação adequada ao fato praticado. Ou seja, se Fulano praticou um crime culposo (menos grave), deve-se dar um jeito de acusá-lo por crime doloso (mais grave), inventando-se piruetas jurídicas para convencer um corpo de pessoas leigas a respeito da responsabilidade. O que diria a sociedade se o Estado não arrumasse uma maneira de impor penas elevadíssimas? Quedar-se-ia atônita e diria que vive no país da impunidade. O leitor já deve ter entendido a referência. Não entrarei no mérito do julgamento do caso da Boate Kiss; proponho-me apenas a analisar alguns motivos pelos quais o Estado, com o aval de parcela considerável da sociedade, tende, por suas instituições e agentes, a realizar acusações exacerbadas e a aplicar penas duríssimas, como se, com isso, fosse restaurar o passado.

A antropologia ensina que olhar para culturas diferentes ajuda-nos a entender melhor a nossa própria realidade, já que, absortos nela, não conseguimos prestar atenção em diversos detalhes do cotidiano [5]. Segundo Rouland, as cosmogonias africanas creem num deus primordial e criador, mas que não tem muita preocupação em impor a sua vontade aos homens, o que explica o relativo desinteresse dos povos africanos pela produção normativa e a preferência pela resolução consensual dos conflitos [6].

A tradição ocidental é diferente. O nosso Deus impôs a sua vontade aos homens. Divide-nos entre bons e maus, entre aqueles que merecem o reino dos céus e aqueles que arderão no fogo do inferno. Miguéis e Lucíferes num incessante conflito. Eis a questão: somos belicosos. Encontrávamo-nos num "estado de natureza" e, não conseguindo por nós mesmos resolver as próprias contendas, transferimos esse poder para o Estado. Precisamos de uma autoridade externa que intervenha e diga quem está certo ou errado. Por isso um conjunto escrito de normas que assegure segurança no trato jurídico. Que engenho da burguesia que começava a ascender no início da modernidade! Criaram um mito para melhor atender aos seus interesses e foram tão formidáveis em sua invenção que até hoje ela nos persegue [7].

O imbróglio é que essa dimensão metafísica de bons e maus, de anjos e demônios, transcende o plano espiritual e crava-se em solo terreno. Não é raro dividir as pessoas conforme os cargos e a posição social que ocupam, o que parece advir de nossa própria formação enquanto povo. A propósito, leia-se Darcy Ribeiro: "O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive, o dom de serem, às vezes, dadivosos (…)[8]. Nesse antagonismo, parece haver uma autorização implícita pelo modus vivendi brasileiro que concede aos anjos o direito de recorrer a todas as ilegalidades que dizem combater para expurgar e exorcizar os demônios da sociedade, limpar as impurezas que a contaminam.

Selecionam-se determinadas pessoas para figurar no banco dos réus. Encontram-se maneiras de qualificá-las com os piores adjetivos, como se fossem espíritos malignos rondando pela terra e prontos a exteriorizarem o mal a qualquer momento. A mídia tem uma considerável parcela de culpa nesse cenário. Muitas matérias e reportagens televisivas vão ao ar sem qualquer pudor e responsabilidade, servindo-se do clamor público em casos de grande repercussão para obter audiência e dirigindo-se aos telespectadores com um sensacionalismo mesquinho e barato, mas que consegue atrair a atenção das grandes massas e fazê-las internalizar esse antagonismo que, apesar de irreal, acaba se corporificando no cotidiano. As pessoas são acusadas e condenadas por penas legalmente inexistentes num processo extraoficial. Depois, basta que os jurados chancelem todo o imaginário já criado nesse percurso.

"Mas e se fosse com alguém da sua família?". Provavelmente eu também clamaria pela punição do responsável. Não há como dimensionar a dor que as famílias das vítimas passaram e qualquer tentativa de fazê-lo, valendo-se do sofrimento alheio para alcançar a punição, pode beirar à raia do desprezível e da inumanidade. Reiterando as linhas acima, foi pela incapacidade de resolver consensualmente os conflitos que nós, ocidentais, transferimos o poder de punir para o Estado, com o objetivo de evitar as vinganças privadas. Queiramos ou não, as leis existem para isso, para condicionar a punição aos limites previamente fixados e de acordo com uma série de regras constitucionais e processuais que visam a conter os abusos e as ilegalidades. 

Punir é algo característico da nossa cultura. Mas não podemos punir por punir, ainda mais com penas que não correspondam à qualificação técnica do fato praticado, situação que se desloca da justiça para o campo da vingança. Da mesma forma que um astrofísico deve remoer-se ao ouvir que a lua é uma projeção holográfica, ou um médico ao deparar-se com descalabros à sua profissão, o jurista, pelo menos aquele responsável e comprometido com o Estado democrático de Direito, também deve sentir-se incomodado quando a sociedade se acha autorizada a falar qualquer coisa sobre qualquer coisa a respeito de fatos e casos complexos, sobretudo quando a opinião popular é formada a partir de figuras caricatas que valem de sua influência na televisão ou nas redes sociais para expelir excrementos vocais como se fossem detentores de um conhecimento qualificado.

Por não adentrar no mérito do caso, não tenho como afirmar se os réus são inocentes ou culpados; porém, o que me parece razoável afirmar é que eles foram acusados por um crime tipificado incorretamente e, portanto, sujeito a penas muito mais elevadas. Estudos parecem demonstrar que se tratava de caso de culpa consciente, e, logo, de homicídio culposo [9]. Como a pena para o homicídio culposo é relativamente baixa, fez-se um malabarismo para enquadrar o fato como homicídio doloso, na modalidade de dolo eventual, e assim dar uma resposta às expectativas da sociedade. Precisamos achar culpados para as tragédias e acusá-los desarrazoadamente, custe o que custar [10].

Não é infrequente que o Estado-acusador ofereça denúncias desprovidas de qualquer fundamento. Parece contentar-se em processar por processar, em deixar pessoas aflitas quanto ao seu futuro. Rios de acusações excessivas, sem lastro probatório, carentes de coerência. Os ranços inquisitórios de nosso passado, que permanecem vivos no presente, fazem do juiz não apenas um terceiro imparcial, mas também um ator ativo do processo. Ao assumir papéis ativos, o juiz dispensa o órgão acusador de cumprir corretamente a sua função; afinal, se o juiz intervém na produção das provas e atua como parte do processo, colocando como meta o descobrimento da verdade para condenar o réu, por que o Estado-acusador precisaria se preocupar com isso? Como diria Goldschmidt, em passagem que dispensa comentários, a estrutura do processo penal de uma nação nada mais é do que o termômetro dos elementos democráticos ou autoritários de sua Constituição [11].

O processo é um constante reviver do passado, duro tanto para as vítimas quanto para os réus, ainda mais quando se prolonga excessivamente no tempo. Beccaria já alertava que "a certeza de um castigo, se bem que moderado, causará sempre uma maior impressão do que o temor de um outro mais terrível, unido com a esperança da impunidade (…)" [12]. Noutras palavras, não é a severidade da pena, mas a certeza da punição. Nada pior do que a incerteza para o réu, ainda mais se preventivamente custodiado por longos anos.

"Trata-se de um paradoxo temporal ínsito ao ritual judiciário: um juiz julgando no presente (hoje) um homem e seu fato ocorrido num passado distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e projetando efeitos (pena) para o futuro (amanhã). Assim como o fato jamais será real, pois histórico, o homem que praticou o fato não é o mesmo que está em julgamento e, com certeza, não será o mesmo que cumprirá essa pena, e seu presente no futuro será um constante reviver o passado" [13].

Além disso, o que me parece estranho é que a indignação social em não raras ocasiões é seletiva. Ouve-se o brado de justiça clamar tão alto no caso dos jovens mortos na tragédia do Ninho do Urubu? E em relação a Marielle Franco, executada ainda em 2018 por grupos ligados à milícia? E os meninos de Belford Roxo, que foram torturados e executados por traficantes? Nesses dois últimos casos, estamos diante de homicídios com dolo direto, ou seja, quando o agente intencionalmente quer a morte da vítima. O objetivo é a aniquilação de outrem. Como explicar tamanhas disparidades?

Enfim. A nossa tradição jurídica atribui ao Estado a tarefa de resolução dos conflitos, sobretudo os penais. A punição faz parte da cultura ocidental, o que talvez possa explicar a necessidade que sente a sociedade em achar culpados para tudo. No entanto, a punição não pode ocorrer de qualquer maneira, ainda que as expectativas bradem pela expurgação dos maus do convívio social. Existem determinados limites, impostos pelo princípio de legalidade, que são intransponíveis. Um desses limites consiste em respeitar a tipificação do fato previsto em lei como crime e a pena a ele cominada, de acordo com o fato efetivamente ocorrido, com o escopo de evitar acusações infundadas e excessivas, que possam converter-se em mecanismos de vingança para atender aos clamores sociais. Nessa luta de anjos contra demônios, fica a pergunta: ao fim e ao cabo, quem nos protegerá da bondade dos bons? [14].

 


[1] Trata-se daquilo que Galbraith chama de poder condigno (ameaça de punição para obter a submissão) e poder compensatório (promessa de recompensa para obter a submissão); cf. GALBRAITH, J. Kenneth. Anatomia do poder. Tradução de Hilário Torloni. São Paulo: Pioneira, 1984, p. 15 e seguintes.

[2] "O pensamento judaico-cristão (cujo desenvolvimento acompanhamos no agostinismo medieval) contribuiu com sua própria idéia (sic) da Lei, não menos discordante da de Aristóteles: conjunto de preceitos dispostos dessa vez por um Deus pessoal (não é mais o Deus dos filósofos, ou seja, a ordem do mundo, mas um Deus ‘ciumento’, voluntarioso)  preceitos, portanto, impostos por Deus a seu povo, por causa da dureza de seu coração e como 1remédio para seus pecados1, fardo de obrigações rígidas. […] É segundo esse modelo da Torá que serão pensadas as leis dos príncipes" (VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 723).

[3] Cf. WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Volume I. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora UNB, 2015, p. 34.

[4] Cf. ROULAND, Norbert. Nos confins do direito: a antropologia jurídica da modernidade. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 173.

[5] Cf. LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. Tradução de Marie-Agnès Chauvel. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 21: "A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos 'evidente".

[6] ROULAND, Norbert. Nos confins do direito: a antropologia jurídica da modernidade. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 77-78.

[7] Sobre a relação entre positivismo jurídico e os interesses da burguesia, cf. VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 658-661.

[8] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: evolução e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 24.

[9] Cf. WUNDERLICH, Alexandre; RUIVO, Marcelo Almeida. Culpa consciente e dolo eventual (parecer caso "Boate Kiss": Santa Maria/RS). Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 161, p. 365-390. São Paulo. Novembro de 2019, especialmente à p. 375 e seguintes.

[10] Um caso bastante representativo refere-se à morte do ator Domingos Montagner, ocorrida no Sergipe. O Ministério Público da Comarca de Canindé de São Francisco denunciou o Secretário de Turismo, Cultura e Esporte do município pelo crime de homicídio culposo, argumentando, segunda consta na denúncia, que "o local onde ocorreu o acidente, qual seja, Prainha Beira Rio, não contava com elementos básicos de segurança, como por exemplo: guarda-vidas, placas de sinalização e boias de delimitação". O juízo de primeiro grau rejeitou a denúncia e a decisão foi mantida pelo TJSE em sede de Recurso em Sentido Estrito; cf. TJSE. Recurso em Sentido Estrito nº 201900315614. Relator: desembargadora Ana Lúcia Freire de A. dos Anjos. Julgado em: 4 fev. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3yvQ2fT. Acesso em: 11 dez. 2021. Parece-me um caso ilustrativo de como o Estado-acusador busca um responsável para tudo, independentemente dos fundamentos jurídico-legais.

[11] Citado por LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 34.

[12] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de José de Faria Costa. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. 115.

[13] LOPES JR., Aury. O direito de ser julgado em um prazo razoável na perspectiva einsteiniana da Teoria da Relatividade. P. 447-464. In: D’ÁVILA, Fábio Roberto et al. Direito penal e Constituição: diálogos entre Brasil e Portugal. Porto Alegre: Boutique Jurídica, 2018, p. 458.

[14] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática: O Juiz Cidadão. Revista ANAMATRA, nº 21, p. 30-50. São Paulo. 1994, p. 50.