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Por muito flutuar, teto não ancora: EC 113/2021 é sua quarta revisão

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14 de dezembro de 2021, 8h00

Em 15 de dezembro de 2016, foi promulgada a Emenda 95, que instituiu o Novo Regime Fiscal, com vigência por 20 exercícios financeiros. O teto de despesas primárias foi concebido para vigorar até 2036, com revisão inicialmente estimada para ocorrer apenas em 2026, conforme o artigo 108 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estipulara.

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O teto foi justificado e erigido como uma rígida âncora fiscal que supostamente estabilizaria expectativas dos agentes econômicos, na medida em que teria potência normativa o bastante para conter a trajetória de expansão tida como descontrolada dos gastos públicos e o crescimento alegadamente insustentável da dívida pública.

Cinco anos se passaram e a âncora do teto já foi alterada quatro vezes. Soa paradoxal, aliás, que o próprio artigo 108 do ADCT tenha sido revogado pela Emenda 113, de 8 de dezembro deste ano; essa, por sinal, sua mais recente revisão.

Antes da Emenda 113/2021, o teto já havia sido modificado pelas Emendas 102/2019, 108/2020 e 109/2021. Em todas elas, inegavelmente os ajustes incidiram para atenuar seus limites teoricamente rígidos e imutáveis antes de 2026. Senão vejamos:

1ª alteração (empreendida pela Emenda 102, de 26 de setembro de 2019) — ampliação do rol de exceções ao teto, por meio da inclusão do inciso V (1) no §6º do artigo 107 do ADCT, para que houvesse a repartição federativa dos recursos oriundos da cessão onerosa do pré-sal (megaleilão ocorrido naquele ano);

2ª alteração (empreendida pela Emenda 108, de 26 de agosto de 2020) — nova redação (2) dada ao inciso I do §6º do artigo 107 do ADCT, concernente à exceção ao teto da complementação federal ao Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb);

3ª alteração (empreendida pela Emenda 109, de 15 de março de 2021) — alteração de determinados gatilhos (3) de ajuste previstos no artigo 109 do ADCT como suposta medida condicionante da retomada do pagamento do auxílio emergencial (donde a alcunha de Emenda Emergencial), prevista no artigo 3º dessa emenda. Fato é que o permissivo para que fossem novamente manejados créditos extraordinários na continuidade do pagamento do auxílio aos vulneráveis — no segundo ano de enfrentamento à pandemia da Covid-19 — frustrou o sentido teleológico desse instituto, que, por seu turno, é uma das exceções ao teto. Ora, créditos extraordinários para atender a despesas previsíveis são inconstitucionais e evidentemente operam como burla ao dever de planejamento, à separação de poderes, ao devido processo legislativo orçamentário e ao próprio teto de despesas primárias dado pela EC 95/2016;

4ª alteração (empreendida pela Emenda 113, a qual foi promulgada na quarta-feira da semana passada) — promoveu pontuais mudanças no regime de precatórios e autorizou parcelamento de débitos previdenciários dos municípios, todavia sua principal modificação (4) foi no período de apuração do índice de inflação que corrige o teto no bojo do inciso II do §1º e dos §§12 a 14 do artigo 107 do ADCT. Muito embora a PEC 23/2021 que deu origem à EC 113/2021 primordialmente cuidasse do adiamento do pagamento de precatórios pela União, para abrir falseadamente margem fiscal no teto, tal temática teve tramitação mais controversa e foi alterada pelo Senado, de modo que a matéria voltou para apreciação da Câmara dos Deputados. Assim, o que foi promulgado nesta quarta emenda de revisão do teto foram apenas os pontos incontroversos na PEC dos Precatórios.

O fatiamento da PEC 23/2021 foi uma decisão das presidências da Câmara e do Senado, com a promessa de que a parte controvertida seria novamente levada ao debate parlamentar ainda nesta terça (14/12). Significa dizer que é provável que possa vir a ser promulgada, em breve, uma nova emenda constitucional que implicará a quinta revisão no teto.

Fato é que, no seu primeiro quinquênio, a Emenda 95/2016 não se revelou capaz de, ela própria, manter-se fixa ao longo das tensões orçamentárias de curto prazo. O teto, na verdade, mais se comporta simbolicamente como um drogue náutico, ou seja, uma âncora flutuante, que reduz a velocidade da embarcação, sem efetivamente estancar seu movimento.

Âncoras flutuantes são instrumentos de uso emergencial na navegação de pequenas embarcações. Transpor sua lógica para o campo das finanças públicas, porém, é algo deveras mais complexo e até mesmo indesejável. As oscilações são vorazes e turbulentas, sobretudo nos anos eleitorais.

Há cinco anos, ponderei nesta coluna Contas à Vista que nosso maior problema fiscal era (e ainda é) a fragilidade do planejamento, até porque sociedade que não planeja aceita qualquer resultado.

A imposição linear de um teto fiscal que vede tão somente a expansão real das despesas primárias revelou-se absolutamente inepta para o alegado fim de conferir maiores eficiência e racionalidade aos gastos públicos. Isso porque a população brasileira não tem a oportunidade consistente de testar a conformidade dos custos e resultados executados em face do que fora planejado em termos de metas físicas e financeiras.

Sem sabermos quais são as prioridades alocativas do Estado no ciclo orçamentário, quanto custa implementá-las e quem por elas paga na correlação de proporcionalidade entre receitas e despesas, continuaremos a ser uma sociedade que reclama por melhores serviços públicos, mas não os alcança na realidade.

Na seara do controle de políticas públicas, nenhum desafio é mais contemporâneo, a despeito de antigo, quanto o da qualidade do gasto público (no que se inclui o gasto tributário). Aprender a gastar bem é mais importante, a médio e longo prazo, do que punir quem gasta mal, muito embora ambas as tarefas sejam reciprocamente relacionadas e interdependentes.

Mas o que é gasto de qualidade? Como avaliá-lo? Não podemos nos esquecer que gasto público de qualidade significa gasto bem planejado, cuja execução se revele aderente às estimativas de custo e resultado, sem prejuízo da obediência aos demais filtros de conformidade com o ordenamento. Gasto adequado, portanto, é aquele que é resolutivo em face do problema que lhe justificou a realização.

Mas para sabê-lo resolutivo, o próprio problema há de estar bem delineado e suas rotas de enfrentamento deverão ter sido intensamente analisadas, sob pena de nos mantermos presos ao ciclo vicioso de não termos clareza sobre o que fazer para não repetirmos os erros do passado.

Não precisaríamos de um teto francamente iníquo e inepto se soubéssemos coletivamente avaliar programas, mensurando seus resultados em face dos seus custos e contrastando planejado em face do realizado, teríamos maior transparência, eficiência e efetividade no trato dos recursos públicos. O caráter trágico de tal constatação reside no fato de que, a despeito de parecer simples no campo do discurso abstrato, complexo é operacionalizá-la no mundo da vida em sociedade.

Ora, o desafio é o de superar soluções aparentemente fáceis e erradas (como o teto dado pela EC 95/2016) e que, por isso mesmo, geram perdas para o processo democrático ao infantilizar o gestor, simplificar a dinâmica do controle e substituir o cidadão como o principal agente de pressão por mudanças sociais em todas as instâncias competentes.

Sem incorporação de aprendizagem e sem continuidade dos serviços públicos, vivemos — a cada mudança de mandatário eleitoral — esforços caudalosos de começar o que já estava em curso, porque não sabemos fazer correções intermediárias e aprimorar planos que alcancem mais de um mandato eletivo.

Somos corresponsáveis por esse cenário em que nos encontramos. Enquanto não formos mais incisivos no controle do planejamento insuficiente e da falta de estruturas de controle interno capazes de avaliar os resultados dos programas elaborados, continuaremos diante de gestores que burlam teleologicamente os limites formais que fingem cumprir.

Para avançarmos, precisamos assumir nosso escopo pedagógico de retroalimentar o planejamento acerca das suas falhas e insuficiências, devolvendo ao gestor o peso da sua responsabilidade pelo planejamento suficiente e pelo controle interno que reflita o alcance do que foi executado, diante do que propusera à sociedade, na forma das suas leis orçamentárias.

Não há receita fácil, nem solução milagrosa. O teto que foi vendido como uma solução simples provou-se um instrumento errado e profundamente ensejador de maiores feudos fiscais. Em suma, a Emenda 95/2016 chega ao seu primeiro quinquênio como uma âncora flutuante que não estabiliza, apenas acirra conflitos distributivos e amplifica o trato balcanizado de curto prazo eleitoral para atender aos mandatários políticos de ocasião. O único mérito do teto, nesse contexto, é evidenciar a crua realidade de que vivemos sob a égide do "farinha pouca, meu pirão primeiro", algo ainda mais voraz às vésperas das eleições nacionais e regionais.


(1) Cujo inteiro teor é o seguinte:
"Artigo 107 –  Ficam estabelecidos, para cada exercício, limites individualizados para as despesas primárias:
(…)
§ 6º Não se incluem na base de cálculo e nos limites estabelecidos neste artigo:

(…)
V – transferências a Estados, Distrito Federal e Municípios de parte dos valores arrecadados com os leilões dos volumes excedentes ao limite a que se refere o § 2º do artigo 1º da Lei nº 12.276, de 30 de junho de 2010, e a despesa decorrente da revisão do contrato de cessão onerosa de que trata a mesma Lei".

(2) A seguir transcrita:
"Artigo 107. Ficam estabelecidos, para cada exercício, limites individualizados para as despesas primárias:

(…)
§ 6º Não se incluem na base de cálculo e nos limites estabelecidos neste artigo:
I – transferências constitucionais estabelecidas no § 1º do art. 20, no inciso III do parágrafo único do art. 146, no § 5º do art. 153, no art. 157, nos incisos I e II do caput do art. 158, no art. 159 e no § 6º do art. 212, as despesas referentes ao inciso XIV do caput do art. 21 e as complementações de que tratam os incisos IV e V do caput do art. 212-A, todos da Constituição Federal;
(…)".

(3) Transcrito na sequência: "Artigo 109 – Se verificado, na aprovação da lei orçamentária, que, no âmbito das despesas sujeitas aos limites do art. 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a proporção da despesa obrigatória primária em relação à despesa primária total foi superior a 95% (noventa e cinco por cento), aplicam-se ao respectivo Poder ou órgão, até o final do exercício a que se refere a lei orçamentária, sem prejuízo de outras medidas, as seguintes vedações:
I – concessão, a qualquer título, de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração de membros de Poder ou de órgão, de servidores e empregados públicos e de militares, exceto dos derivados de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior ao início da aplicação das medidas de que trata este artigo;
(…)
IV – admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, ressalvadas:
a) as reposições de cargos de chefia e de direção que não acarretem aumento de despesa;
b) as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios;
c) as contratações temporárias de que trata o inciso IX do caput do art. 37 da Constituição Federal; e
d) as reposições de temporários para prestação de serviço militar e de alunos de órgãos de formação de militares;
(…)
VI – criação ou majoração de auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza, inclusive os de cunho indenizatório, em favor de membros de Poder, do Ministério Público ou da Defensoria Pública, de servidores e empregados públicos e de militares, ou ainda de seus dependentes, exceto quando derivados de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior ao início da aplicação das medidas de que trata este artigo;
(…)
IX – aumento do valor de benefícios de cunho indenizatório destinados a qualquer membro de Poder, servidor ou empregado da administração pública e a seus dependentes, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior ao início da aplicação das medidas de que trata este artigo.
§ 1º As vedações previstas nos incisos I, III e VI do caput deste artigo, quando acionadas as vedações para qualquer dos órgãos elencados nos incisos II, III e IV do caput do art. 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, aplicam-se ao conjunto dos órgãos referidos em cada inciso.
§ 2º Caso as vedações de que trata o caput deste artigo sejam acionadas para o Poder Executivo, ficam vedadas:
(…)
§ 3º Caso as vedações de que trata o caput deste artigo sejam acionadas, fica vedada a concessão da revisão geral prevista no inciso X do caput do art. 37 da Constituição Federal.
§ 4º As disposições deste artigo:
I – não constituem obrigação de pagamento futuro pela União ou direitos de outrem sobre o erário;
II – não revogam, dispensam ou suspendem o cumprimento de dispositivos constitucionais e legais que disponham sobre metas fiscais ou limites máximos de despesas; e
III – aplicam-se também a proposições legislativas.

§ 5º O disposto nos incisos II, IV, VII e VIII do caput e no § 2º deste artigo não se aplica a medidas de combate a calamidade pública nacional cuja vigência e efeitos não ultrapassem a sua duração" (NR)

(4) Alteração a seguir transcrita:
"Artigo 107 – (…)

§ 1º (…)
(…)
II – para os exercícios posteriores, ao valor do limite referente ao exercício imediatamente anterior, corrigido pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), publicado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ou de outro índice que vier a substituí-lo, apurado no exercício anterior a que se refere a lei orçamentária.
(…)
§ 12. Para fins da elaboração do projeto de lei orçamentária anual, o Poder Executivo considerará o valor realizado até junho do índice previsto no inciso II do § 1º deste artigo, relativo ao ano de encaminhamento do projeto, e o valor estimado até dezembro desse mesmo ano.
§ 13. A estimativa do índice a que se refere o § 12 deste artigo, juntamente com os demais parâmetros macroeconômicos, serão elaborados mensalmente pelo Poder Executivo e enviados à comissão mista de que trata o § 1º do art. 166 da Constituição Federal.

§ 14. O resultado da diferença aferida entre as projeções referidas nos §§ 12 e 13 deste artigo e a efetiva apuração do índice previsto no inciso II do § 1º deste artigo será calculado pelo Poder Executivo, para fins de definição da base de cálculo dos respectivos limites do exercício seguinte, a qual será comunicada aos demais Poderes por ocasião da elaboração do projeto de lei orçamentária." (NR)

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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