Opinião

Agenda ESG x cultura do cancelamento

Autor

  • Carlos Odon Lopes da Rocha

    é ex-chefe da Assessoria Jurídico-Legislativa da Controladoria-Geral do Distrito Federal sócio do escritório Bento Muniz Advocacia com atuação na área de Compliance e ESG procurador do Distrito Federal mestre em Direito Constitucional pós-graduado em Direito Público pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e MBA em Governança e Compliance pela Universidade de Brasília (UnB).

14 de dezembro de 2021, 19h07

Num mundo fortemente influenciado pelas redes sociais, observam-se, exponencialmente, movimentos de "cancelamento" em face de pessoas e empresas. De um lado, artistas, políticos, esportistas e mesmo cidadãos anônimos podem sofrer linchamentos virtuais, graves ameaças e perseguições, em razão de suas opiniões e posicionamentos; de outro, empresas e suas marcas podem ser objeto de boicotes de consumidores, estes cada vez mais engajados e ativistas.

Não se desconhece que a "cultura do cancelamento" decorre, na maioria das vezes, do conflito de opiniões e interesses entre grupos sociais, todos eles presentes em redes como Twitter, Facebook, Instagram etc.

Direito fundamental por excelência, a liberdade de expressão e de opinar pressupõe o direito de criticar. A liberdade para dizer e escrever o que se quer é "uma necessidade inescapável da democracia", esclarece Anthony Lewis [1]. A liberdade de pensamento é essencial ao sucesso de uma sociedade democrática, plural e complexa. Como disse o juiz Roberts, "a despeito da probabilidade de ocorrência de excessos e abusos, essas liberdades são, a longo prazo, essenciais para a opinião esclarecida e a conduta correta por parte dos cidadãos de uma democracia" [2] .

A abertura ao dissenso e, portanto, ao conflito, é o motor das mudanças históricas. A unificação compulsória da opinião somente é alcançada na unanimidade do cemitério. Em voto exemplar, o justice Jackson asseverou que só podemos ter o individualismo intelectual e a rica diversidade cultural ao preço de ocasionais excentricidades e atitudes anormais. A liberdade de divergir não deve ficar restrita a coisas que não importam muito, pois isso seria uma mera sombra de liberdade [3] .

A democracia, na concepção da filosofia política moderna, não é apenas caracterizada por eleições periódicas e o exercício do voto secreto, mas sobretudo por meio do debate (democracia deliberativa). A troca de opiniões e a discussão dos respectivos argumentos constitui o próprio exercício da razão pública.

Contudo, a liberdade de divergir e o direito de criticar, em razão do pluralismo de ideias inerentes a uma sociedade complexa, não podem servir de salvo-condutos para o cometimento de atos ilícitos contra a honra de outrem (pessoa natural ou jurídica) ou, ainda, contra irrefutáveis avanços humanistas obtidos ao longo do tempo.

Tais avanços humanistas ou civilizatórios decorrem da própria aplicabilidade imediata e direta dos direitos fundamentais, inclusive nas relações entre particulares (empregador e empregado; empresa e clientes; empresa e comunidade etc.). O mercado deve compartilhar com o poder público a obrigatoriedade de se buscar um ambiente empresarial íntegro, transparente, menos desigual e ambientalmente sustentável.

A incorporação da agenda ESG (environmental, social and gtovernance) como critério de avaliação corporativa não é apenas facultativa, mas juridicamente obrigatória, notadamente quando aquilo que está em jogo compõe evidente direito fundamental a ser cumprido pela empresa, dada a sua função social  como redução na emissão de carbono, implantação de programas de integridade ou redução de desigualdades no mercado de trabalho.

Cientes da possibilidade de fortes críticas e cancelamentos provenientes da internet, as empresas não podem fugir de suas responsabilidades sociais. Em pleno século 21, determinados comportamentos não são mais tolerados, tais como comentários sexistas, homofóbicos e racistas, que devem ser combatidos por todos, incluindo as organizações empresariais. Nesse particular, o efetivo comprometimento da empresa com uma agenda ESG permite não apenas agregar valor à marca, mas também concretizar o seu dever fundamental de participar da construção de uma sociedade mais justa e solidária. Por óbvio que, por se tratar de mandados de otimização (princípios), a efetivação de direitos fundamentais dar-se-á na maior medida possível, entre das possibilidades jurídicas e fáticas existentes (Alexy).

Quanto ao específico pilar da governança ou sustentabilidade social ("S" de "ESG"), a organização deve possuir com seus empregados, fornecedores, clientes e comunidades em geral uma relação de respeito inflexível aos direitos humanos, incluindo direito à inclusão, à diversidade ou à ausência de quaisquer espécies de discriminação. Como exemplo, é relevante citar: a) representação feminina na alta direção e conselhos superiores de administração; b) medidas de combate a atos de assédio, discriminação ou preconceito; c) medidas de combate a práticas relacionadas ao trabalho infantil e análogo à escravidão; d) apoio a comunidades tradicionais, incluindo terras indígenas e território quilombola; e) apoio na proteção ao patrimônio histórico, cultural ou à ordem urbanística; f) inclusão de pessoas com deficiência ou socialmente vulneráveis etc.

Apenas a título de exemplo, e como amplamente divulgado, a empresa Natura tem o saudável compromisso de garantir a paridade de gênero e a igualdade de remuneração até 2023. Além do mais, a referida empresa já incorpora metas ESG como parte da remuneração dos executivos. E a médio e longo prazos, a incorporação da agenda ESG no Brasil ensejará retornos financeiros significativos, como já ocorre nos Estados Unidos. Desde 2009, a Bolsa de Nova York subiu impressionantes 295%. Ao analisarmos a performance, no mesmo período, do índice das empresas melhores posicionais em termos de ESG, o aumento corresponde a 345%.

No fim do ano passado, a Bolsa de Valores Nasdaq apresentou à Securities Exchange Commission (SEC), o equivalente à nossa Comissão de Valores Mobiliários (CVM), uma proposta que busca impulsionar medidas de diversidade dentro das empresas listadas. A proposta exige, no mínimo, uma diretora na alta liderança da empresa que se identifique como mulher e um diretor ou diretora LGBTQIA+ para continuar listada na bolsa. Em novembro deste ano, a SEC aprovou a proposta, com a adoção de uma matriz de diversidade para conselhos de administração. Em suma, a inclusão de mulheres, negros e LGBTQIA+, entre outras minorias, será levada em conta para um melhor índice de avaliação empresarial. Em que pese alguns verem tal medida com ceticismo, criticando a adoção de critérios não relativos à competência técnica, outros comemoram os avanços em pautas sociais, o que demonstra, ainda mais, a relevância da agenda ESG.

Não obstante a concreta possibilidade de cancelamentos, a agenda ESG é um caminho sem volta. Em pouco tempo, inclusive, não haverá mais necessidade de se distinguir empresas que utilizam tais critérios de outras que não utilizam, pois todas já estarão inseridas nesse contexto de sustentabilidade social.

Portanto, ainda que a cultura do cancelamento possa levar ao boicote temporário de produtos ou serviços, a empresa deve se manter fiel aos seus valores institucionais, e estes, por sua vez, devem ser compatíveis com aqueles valores objetivos consagrados na Constituição Federal. Toda e qualquer empresa deve ter em mente que, no século 21, não basta simplesmente vencer a competição a qualquer custo. A empresa deve, sim, vencer, mas sempre jogando limpo, dentro do mercado.

Podemos chamar esse novo paradigma de um verdadeiro fair play corporativo.

 


[1] LEWIS, Anthony. Liberdade para as ideias que odiamos. São Paulo: Aracati, 2011, p. 13.

[2] Idem, p. 137.

[3] Idem, p. 139/140.

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