O Supremo, olhando para o Poder Executivo, já declarou estado de coisas inconstitucional em relação ao sistema penitenciário, acenou declarar em relação à situação de patentes imprescritíveis e às deficiências do sistema de saúde. Será que estamos nos aproximando do ponto de o Supremo ser chamado a decidir sobre um possível estado de coisas inconstitucional em relação às deficiências do Poder Judiciário, inclusive sobre a excessiva competência processual da própria corte, que gera defeito estrutural no sistema judicial? Com humildade e boa-fé, vamos ao problema que leva a esse questionamento.
Absurdo é não mudar, quando necessário, o que pode ser mudado. Os órgãos estatais são criados para cumprir determinada função, em benefício da sociedade à qual pertencem. Se não estão cumprindo o esperado pela sociedade, devem ser aprimorados e mudados, sob pena de perderem credibilidade, legitimidade e passarem para a história como um estorvo ao desenvolvimento do país. Os poderes concedidos aos agentes dos órgãos estatais para cumprir suas funções não podem ser empecilhos para mudanças.O nosso Poder Judiciário já passou por diversas mudanças. Foi reestruturado pela Constituição de 1988, ganhando um modelo de quatro instâncias (juízos locais, federais e estaduais; tribunais regionais, federais e estaduais; tribunais nacionais: STJ, TST, TSE e STM; e o Supremo Tribunal Federal no ápice da pirâmide judicial). A colossal estrutura parecia ser a solução para resolver com eficiência os litígios do país, pacificando a sociedade com a Justiça possível. Entretanto, logo foram necessárias mais mudanças.
A explosão de litigiosidade, festejada como resultado da democracia participativa, foi muito além do esperado. Em 1988, tramitavam por volta de 350 mil processos no país [1], hoje temos assombrosos 70 milhões, um crescimento de 200 vezes, recorde na comparação com outros países. O Supremo recebeu 18.564 processos em 1990, 160.453 em 2002 [2] e 90.039 em 2019, um crescimento doentio e recorde na comparação com outras supremas cortes (Itália, 276; França, 156; Estados Unidos, 82; e Alemanha, 6.133 processos) [3].
Algumas mudanças importantes foram feitas no decorrer desse período. Além do contínuo aumento dos juízos de primeira instância, do número de desembargadores nos tribunais regionais e informatização, destacam-se mudanças estruturais importantes: reestruturação dos juizados especiais, com aumento expressivo de juizados e criação de mais turmas de julgamento, em 2004; criação de filtros para diminuir entrada de processos no Supremo, em 2004; e, recentemente, a criação de filtros também para o STJ.
Na primeira e segunda instâncias foi buscada solução com grandioso aumento do número de julgadores e assessorias; na terceira e quarta instâncias, mesmo com a explosão inimaginável de processos, o número de julgadores continuou o mesmo, tendo sido adotada a técnica de filtros na entrada de processos, com resultado parcialmente positivo em relação ao Supremo (em 2002, recebeu 160 mil processos; agora recebe por volta de 70 mil), mas ainda muito aquém do necessário.
Em 2020, o Supremo (11 ministros) proferiu 99 mil decisões, 81 mil monocráticas e 18 mil colegiadas (duas turmas e Plenário) [4], também um disparate na comparação mundial. Quase 80% dos processos do Supremo decorrem de recursos contra julgamentos de casos subjetivos já julgados nas três instâncias inferiores. A solução para o monstruoso acúmulo de processos não é pelo aumento do número de julgadores, mas, sim, pela transferência da finalização dos processos subjetivos na terceira instância.
Esse mar de processos de questões particulares inviabiliza o funcionamento eficiente da nossa Corte Suprema, impedindo o julgamento em tempo adequado de centenas de demandas nacionais objetivas, litígios políticos candentes e conflitos federativos urgentes, questões fundamentais para o desenvolvimento do país, gerando um defeito estrutural que contamina todo o sistema judicial, aumentando exponencialmente o número de processos repetitivos, pela demora na formação de jurisprudência segura.
É um despautério que processos de questões particulares já julgados em três instâncias — limite máximo de julgamentos adotado nas democracias — sejam encaminhados ao Supremo para outro julgamento. Isso ocorre porque a Constituição de 1988 criou o STJ (33 ministros), mas concedeu-lhe uma insólita competência parcial para julgar somente em relação às leis comuns, deixando as questões constitucionais alegadas no mesmo processo para o Supremo, onde tudo pode ser mudado pela visão constitucional aplicada ao caso.
Em consequência, o Supremo está sob pressão de milhares de processos subjetivos, que deveriam ser resolvidos até na terceira instância. É certo que cabe ao Supremo o controle de constitucionalidade das decisões judiciais, mas essa função pode ser feita de forma concentrada, a partir das jurisprudências dos tribunais superiores, com eficiência, em poucos processos, como ocorre em relação às leis, liberando a corte para cumprir com tranquilidade e em tempo razoável seu verdadeiro papel constitucional.
A nossa Suprema Corte, um tribunal estruturalmente pequeno (11 ministros), que, na salutar diversidade de pensamentos da sua colegialidade, deveria ser o fecho da consciência nacional para questões relevantes para o país, está se despedaçando em duas turmas de cinco ministros, para enfrentar a mega-avalanche de processos subjetivos, casos particulares, gerando até jurisprudências conflitantes entre suas turmas, incertezas, inseguranças, desconfiança, mais recursos processuais e mais processos subjetivos.
O número excessivo de processos encaminhados ao Supremo também tem dado espaço para o crescimento de julgamentos monocráticos, decisões provisórias severamente alongadas no tempo, pedidos de vista sem controle, inflação de recursos meramente procrastinatórios, demoras irrazoáveis e desconsideração da essencial colegialidade da corte. A sociedade brasileira não pode ser prejudicada por um modelo concentrador de processos e suas consequências danosas.
A modernidade, que fez do planeta uma aldeia global de relações urgentes e produz conflitos sociais em velocidade estonteante, exige ainda mais jurisprudência nacional segura e em prazo muito menor. O Brasil não pode continuar com um modelo de quatro instâncias, concentrador de processos na Suprema Corte, indutor de processos individuais repetitivos, lento, extremamente dispendioso (1,3% do PIB) e incompatível com as exigências da modernidade. O que a História vai dizer desse quadro desconforme e da omissão por mudanças?
Com esse modelo judicial perde toda sociedade brasileira. Com esse modelo, as grandes teorias jurídicas apaixonadamente debatidas e as reformas nos códigos de processos pouco valem como força renovadora, ante a estrutura inadequada do sistema de aplicação do Direito. Esse modelo de quatro instâncias e acumulação de processos repetitivos incrementa o "custo Brasil", pois exige contínuo crescimento da máquina judicial (e agregados: Ministério Público, Procuradorias, Defensorias, advocacia e cursos jurídicos), justificando mais orçamento, mais cargos e mais recursos processuais.
Esse sistema disfuncional já teve seu estado de morbidez reconhecido dentro do próprio Supremo. O ministro presidente Luiz Fux chamou de "moléstia" a exorbitante judicialização [5]. O ministro decano Gilmar Mendes, também pregando a necessidade de urgente desjudicialização, destacou a danosa dependência da sociedade em relação ao Judiciário [6]. Se o Supremo Tribunal Federal for legalmente acionado para julgar todo esse estado de coisa, o que dirá dessa hipertrofia enfermiça?
Em conclusão, segue sugestão de pontos essenciais para enfrentamento do problema: a) transferência de competência constitucional recursal do Supremo aos tribunais superiores, visando à conclusão de todos os processos subjetivos na terceira instância, no máximo; b) manutenção do controle de constitucionalidade somente pela via concentrada (leis e jurisprudências); c) redução (para poucas centenas) dos processos que o Supremo deve julgar anualmente; e d) regulação detalhada, com prazos certos e fiscalizáveis, dos casos excepcionais de decisão monocrática e pedidos de vista.
Como fecho animador, calha lembrar a máxima de Ortega y Gasset: "Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não salvo a mim". Com a palavra os juristas, doutrinadores, operadores do Direito e parlamentares.