Opinião

A ADC nº 49 e a omissão regulamentadora por lei complementar

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13 de dezembro de 2021, 19h12

Ainda que possível a modulação dos efeitos pelo STF,  o resultado do julgamento da ADC nº 49 impactará severamente a rotina tributária das empresas, pois existem desdobramentos das operações de remessas interestaduais entre estabelecimentos de mesma titularidade não analisados e que, igualmente, não possuem expressa regulamentação legal.

Entre os possíveis temas de atenção, destaca-se qual seria a metodologia para transferência de créditos passível de identificação no ordenamento jurídico, tomando por base o cenário criado pela ADC em comento.

Surge, então, a necessidade de estudo sobre a existência ou não do direito à manutenção do crédito de ICMS, e, em caso positivo, quais as garantias trazidas pelo ordenamento jurídico a fim de fazer prevalecer o princípio da não cumulatividade.

Ainda não são possíveis respostas definitivas que coloquem os contribuintes à margem de riscos; contudo, este artigo pretende contribuir com reflexões para identificação de fundamentos para defesa do direito à manutenção do crédito de ICMS e sua transferência.

O julgamento da ADC nº 49 declarou a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, inciso II, e 12, inciso I, da Lei Complementar nº 87/1996, afastando a autonomia dos estabelecimentos para a realização do fato gerador do ICMS e, consequentemente, firmar entendimento no sentido de que o deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador do ICMS, ainda que se trate de circulação interestadual.

A leitura do inteiro teor do julgamento permite inferir a ideia de que o deslocamento de produtos entre filiais seria um fato jurídico irrelevante.

Já na ementa do acórdão, há expresso entendimento pela inexistência de fato gerador na hipótese de deslocamento físico de bens de um estabelecimento para outro de mesma titularidade e prévio entendimento do Poder Judiciário no sentido de não incidência do ICMS.

De imediato surgiram dúvidas e questionamentos acerca da possibilidade ou não de manutenção dos créditos, ante dúvida quanto a estes deslocamentos serem enquadrados na exceção contida no artigo 155, §2º, inciso II, "a" e "b", da Constituição Federal ou se traduzirem em realidade diversa da não incidência normativa, permitindo a continuidade do ciclo não cumulativo.

Para o professor Paulo de Barros Carvalho, "o fenômeno da incidência normativa opera, pois com a descrição de um acontecimento no mundo físico-social, ocorrido em condições determinadas de tempo e de espaço, que guarda estreita consonância com os critérios estabelecidos na hipótese de norma geral e abstrata" [1] .

Tomando o entendimento de forma ampla, qualquer situação não descrita na norma de incidência se enquadraria em seu oposto (não incidência), bastando para aplicação da exceção constitucional acima mencionada.

Contudo, ainda no contexto da incidência, seu oposto (não incidência) somente poderia ser encontrado quando também inserido no espectro material do tributo.

Exemplificando: as hipóteses de não incidência do ICMS apenas são identificadas nas operações de circulação do produto dentro de sua cadeia econômica própria; o que não abrange uma mera saída física de um bem que ainda se qualificará como mercadoria e, somente então, poderá ser elegível à incidência do imposto estadual.

Por esse segundo aspecto, o deslocamento de um bem entre estabelecimentos de mesma titularidade deixa de se qualificar como não incidência, capaz de anular os créditos das operações anteriores.

Neste momento, ainda sem definição dos embargos de declaração e considerando posturas como a do estado de São Paulo de que as operações em debate se mantém intactas até o trânsito em julgado da ADC nº 49, é crescente a defesa de que a saída física do bem entre estabelecimentos de mesma titularidade é um ato não tratado especificamente pelo Direito Tributário como não incidência e, portanto, não representando causa de anulação do crédito relativo às operações anteriores.

Também milita em favor dos contribuintes a redação do artigo 21, §3º, da Lei Complementar nº 87/96, que assegura que a isenção ou não tributação na etapa anterior da cadeia não inviabiliza a utilização do crédito de ICMS em operações posteriores com a mesma mercadoria e sujeitas ao imposto.

Assim, admitida a manutenção dos créditos nas simples remessas, nasce o questionamento adjacente quanto a subsistência também em remessas interestaduais e formas de transferência.

O artigo 155, inciso XII, alínea "f", da Constituição Federal atribui à lei complementar a competência para eleger as hipóteses de manutenção de crédito em remessas para outros estados e exportação, de serviços e mercadorias.

Em que pese o inciso I do artigo 155 da Constituição Federal fixar a não cumulatividade como matriz do ICMS, impondo-a também para operações interestaduais — pois determina a compensação entre "o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal" —, a alínea "f" do inciso XII admite interpretação no sentido da facultatividade da manutenção do crédito.

Isso porque, na medida em que a Constituição Federal delega à lei complementar a competência para eleger os casos de manutenção de crédito em transferências interestaduais, seu contraposto lógico também é deferido, qual seja, deixar de eleger hipótese de manutenção de crédito.

Com isso, seria razoável a conclusão de não constar da Constituição Federal absoluta garantia ao postulado da não cumulatividade do ICMS para remessas interestaduais.

A indagação subsequente é ser o exercício da competência delegada à lei complementar uma possibilidade ou um dever. Em nosso sentir, o comando atribuído à lei complementar é impositivo, constituindo obrigação do legislador a eleição de hipóteses de manutenção do crédito em transferências interestaduais.

Em termos abstratos, seria defensável a postura de que na ausência dessa regulamentação pela lei complementar, até sua ocorrência, a manutenção do saldo credor e transferência seriam permitidos em todas as remessas interestaduais. Porém, o legislador infraconstitucional, chancelado pelo Poder Judiciário, vem condicionando a aplicação do princípio da não cumulatividade, criando entraves à autoaplicabilidade da previsão constitucional por meio da vinculação à autorização expressa em lei complementar.

Exemplo dessa forma de atuação foi o tratamento concedido à temática dos créditos de uso e consumo no ICMS.

No Recurso Extraordinário nº 601.967-RS, tendo o ministro Alexandre de Moraes como, redator para acórdão, fixou-se a compreensão de que "o contribuinte apenas poderá usufruir dos créditos de ICMS quando houver autorização da legislação complementar. Logo, o diferimento da compensação de créditos de ICMS de bens adquiridos para uso e consumo do próprio estabelecimento não viola o princípio da não cumulatividade".

Com isso, o STF parece retirar força da Constituição Federal, enfraquecendo a tese do direito imediatamente exercitável à manutenção e transferência dos créditos derivados de remessas interestaduais até a normatização.

Adotando como premissa válida caber à lei complementar a competência para deferir as hipóteses de manutenção do crédito para remessas interestaduais, é demandada a verificação particularizada da Lei Complementar nº 87/96.

Esta fez constar em seu artigo 25 que créditos e débitos devem ser apurados em cada estabelecimento, mas por força de seus parágrafos admite que lei estadual autorize a imputação do saldo credor a qualquer estabelecimento no mesmo estado ou transferência a outros contribuintes, dentro dos limites do estado em que se encontra localizado.

Não obstante, é silente quanto às regras de transferência de saldo credor para estabelecimentos de mesma titularidade, ou não, situados em unidades distintas da federação.

As legislações estaduais do ICMS não trazem permissões ou instituem procedimentos para transferência de créditos entre estabelecimentos localizados em diferentes estados, a exemplo do que ocorre com São Paulo, nos termos da Resposta à Consulta Sefaz/SP nº 20208, de 22.08.2019. Outra resposta à consulta muito interessante é a nº 106/2007 (DOE de 11.04.08), aprovada pelo Copat do estado de Santa Catarina, a qual resume as possibilidades de transferência de créditos hoje identificadas. Vejamos:

"Ressalte-se, entretanto, que a disposição que autoriza a manutenção de crédito não implica necessariamente o direito a transferi-lo a terceiro. Para tanto, é necessária disposição legal específica. Sucede que a Lei Complementar 87/96, que dispõe sobre normas gerais de direito tributário aplicáveis ao ICMS, garante apenas a transferência de saldos credores acumulados decorrentes de exportações para o exterior do País, 'na proporção que estas saídas representem do total das saídas realizadas pelo estabelecimento', para (artigo 25, § 1°):
a) qualquer estabelecimento do sujeito passivo no Estado; ou
b) havendo saldo remanescente, a outros contribuintes do mesmo Estado.
Nos demais casos de saldo credor acumulado, a transferência depende de previsão em lei estadual, conforme §2° do mesmo artigo, e, mesmo assim, apenas para destinatário localizado no mesmo Estado.
No caso em pauta, parte dos créditos 'acumulados' pretendidos decorre da diferença entre as alíquotas interna (17%) e interestadual (12%). Ora, do exposto, depreende-se que a diferença de alíquota não constitui 'acumulação' de crédito, para fins de transferência. Existe débito correspondente à saída da mercadoria, apenas a incidência do imposto numa e noutra operação não tem a mesma intensidade.
Posto isto, responda-se à consulente que o saldo credor existente em conta gráfica no estabelecimento catarinense não pode ser transferido para o estabelecimento da mesma empresa localizado em Minas Gerais, porque:
a) diferença de alíquotas não representa saldo credor acumulado para fins de transferência de crédito;
b) a Lei Complementar 87/96 somente autoriza transferência de crédito entre estabelecimentos localizados no mesmo Estado; e
c) o Estado de Santa Catarina não pode impor ao Estado de Minas Gerais a aceitação dos créditos transferidos, porque a lei tributária catarinense somente produz efeitos extraterritoriais, na medida em que forem reconhecidos por convênios celebrados entre os Estados (CTN, artigo 102)".

Em que pesem as omissões legislativas estaduais, quando retomada a dicção constitucional e as assertivas já firmadas, o artigo 155, inciso XII, alínea "f", é inequívoco ao deferir competência à lei complementar federal para eleger os casos de manutenção e transferência de créditos nas remessas interestaduais.

Assim, não nos parece legítimo que leis estaduais normatizem essas transferências, porque, além de inconstitucionais, implantariam procedimentos singulares, desarmônicos, culminando com tratamentos díspares e anti-isonômicos aos contribuintes em igualdade de condições fáticas e jurídicas.

Diante da ausência do exercício da competência por lei complementar federal, na prática, a impossibilidade transferência do crédito entre origem e destino fará com que o estabelecimento remetente adquira saldo credor de ICMS, o qual poderá ou não ser consumido em suas operações internas e imporá ao estabelecimento destino constante saldo devedor de ICMS.

Essa realidade, ainda que mantenha aparente legalidade, ocasionará ônus fiscal e financeiro não validado pela legislação, investirá contra a capacidade contributiva das empresas, reintroduzindo insegurança jurídica nas relações tributadas pelo ICMS.

Por fim, considerando que a inconstitucionalidade reconhecida na ADC nº 49, no tocante à autonomia dos estabelecimentos é, a nosso ver, restrita à impossibilidade caracterizar fato gerador do ICMS, as normas de apuração individualizada permanecem intactas, também ausente modificação da sistemática das escriturações fiscais, as quais permanecem em cada estabelecimento.

Pelo exposto, a questão da manutenção e transferência dos créditos de ICMS nos procedimentos de remessa de mercadorias para unidades localizadas em estados diversos do remetente passa a ser focal a partir do julgamento da ADC nº 49, independentemente de eventual modulação de efeitos após julgamento dos embargos de declaração, os quais foram pautados para julgamento na sessão do STF do último dia 10, prevista para encerrar em 17 deste mês.

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