Ao mestre com carinho

Para estudiosos de Pontes de Miranda, sua obra tem profundidade sem par no mundo

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13 de dezembro de 2021, 7h28

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Em entrevista publicada neste domingo (12/12) pela ConJur, o advogado alagoano Nabor Bulhões afirmou mais de uma vez que a obra de Pontes de Miranda é "monumental". Poderia ser apenas um arroubo de entusiasmo de alguém orgulhoso pelo brilho de um conterrâneo ilustre, mas não é. O Brasil possui uma pequena legião de estudiosos dos escritos do mestre e todos eles, como se tivessem ensaiado o discurso, dizem a mesma coisa: não há e nunca houve no mundo um jurisconsulto com um trabalho tão profundo, nem tão variado, quanto Pontes de Miranda.

A atividade intelectual do alagoano — nascido em 1892, no pequeno município de São Luís do Quitunde, e morto em 1979, no Rio de Janeiro — foi de tirar o fôlego até do acadêmico mais resistente. Entre diversas outras áreas jurídicas, tratou de Direito Privado ("Tratado de Direito Privado"), Direito do Trabalho ("Direito à subsistência e Direito do Trabalho), Direito Processual ("Tratado das ações") e Direito Constitucional (ele publicou livros com detalhados comentários às Constituições de 1937, 1946 e 1967). E não foi só: Pontes de Miranda também se ocupou da Sociologia ("Introdução à Sociologia geral") e atuou até como ficcionista ("Obras literárias: prosa e poesia").

Ainda mais do que pela quantidade, a obra do gênio de Alagoas é marcada pela profundidade. Um exemplo claro do quanto o jurista se aprofundava em seus escritos é o "Tratado de Direito Privado", seu trabalho mais festejado. Publicado entre 1954 e 1970, o tratado tem nada menos do que 60 volumes, com mais de 30 mil páginas. Outro de seus monumentos, o "Tratado das Ações", que o próprio autor considerava sua obra mais importante, praticamente esgota o tema em sete volumosos tomos.

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O mestre alagoano posa com um de seus livros dedicados ao tema Direito Civil
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Outra característica destacada do trabalho do alagoano é a sua resistência à passagem do tempo, virtude que é atestada pelo fato de até hoje ele ser o doutrinador mais citado pelos magistrados brasileiros em suas decisões.

"Pontes de Miranda trouxe inúmeras contribuições teóricas tão sofisticadas quanto aquelas elaboradas por alguns dos maiores juristas do Direito mundial", afirma Rodrigo Xavier Leonardo, advogado, professor da Universidade Federal do Paraná e um dos responsáveis pela atualização do 'Tratado do Direito Privado'. "Posso citar alguns exemplos. Alguns dos maiores privatistas da história se dedicaram ao tema da posse. São amplamente conhecidos e divulgados os pensamentos de Savigny e de Ihering acerca desse objeto. Pontes de Miranda apresentou uma teorização brasileira e original sobre a posse (Tomo 10 do 'Tratado de Direito Privado'). O mesmo pode-se dizer da teoria da pessoa jurídica. Os maiores privatistas do Direito moderno desenvolveram requintadas teorias nessa seara (Ihering, Gierke, Kelsen, Saleilles). E Pontes de Miranda, igualmente, presenteou o Brasil com uma erudita, profunda e inédita concepção de pessoa jurídica (Tomo 1 da mesma obra). Os exemplos são muitos e indicam que, efetivamente, a obra de Pontes de Miranda está à altura do trabalho dos grandes nomes do Direito mundial", argumenta o professor.

Considerado no meio acadêmico brasileiro um dos maiores especialistas do país em Pontes de Miranda, o advogado e professor alagoano Marcos Bernardes de Mello vai mais longe. Para ele, seu conterrâneo não está à altura dos maiores jurisconsultos mundiais. Está acima deles.

"A grandeza de sua obra não tem igual em todo o mundo. Não há obra jurídica produzida por um só homem, em todo o mundo e em todos os tempos, que se compare à dele. Basta lembrar o 'Tratado de Direito Privado', com 60 tomos, cada um com mais de 500 páginas, bem como mais de dez mil obras referidas na bibliografia. No todo, sua obra compreende mais de 250 volumes de conteúdo sempre de excelência. Nada a ela se compara", afirma ele. "Tenho como absolutamente correto afirmar que foi o maior jurista do século 20. O fato de ter escrito em português, idioma difícil e pouco falado no mundo, me parece ter sido o grande empecilho ao reconhecimento internacional de sua obra".

Admiração alemã
Verdade seja dita, a erudição de Pontes de Miranda não se limitava à língua portuguesa, já que ele publicou livros em francês e também escrevia em alemão. E, como constata o advogado e professor da Universidade Federal de Pernambuco Venceslau Tavares, outro estudioso de Pontes de Miranda, sua obra é tão poderosa que conseguiu atravessar o Oceano Atlântico e virar objeto de culto em alguns dos principais centros mundiais da produção intelectual do Direito.

"A obra de Pontes de Miranda é estudada com grande interesse na Alemanha atualmente, por nomes tais como Marietta Auer e Jan Peter Schmidt. Este último, inclusive, reconhece a originalidade da tese de Pontes de Miranda quanto à autonomia dos planos (da existência, validade e eficácia) em relação a doutrina alemã".

Na visão do juiz Alan da Silva Esteves, titular da 7ª Vara do Trabalho de Maceió, o que faz do trabalho de Pontes de Miranda tão singular na história do Direito mundial é a sua capacidade de apresentar ideias que jamais haviam sido exploradas antes dele.

"Digamos assim: ele estudou as grandes obras jurídicas do seu século e dos séculos anteriores, especialmente alemãs, e construiu algo novo em termos de Direito, que nenhum jurista do mundo disse. Então, ele merece ser lido, debatido, discutido e, quem sabe, ampliado", diz o magistrado.

Pau para toda obra
Os discípulos de Pontes de Miranda ouvidos pela ConJur compartilham, além da evidente admiração pelo mestre, um especial apreço pela extraordinária versatilidade do alagoano. E não sem motivo. Como já mencionado antes, a atuação do jurista adentrou os territórios da Sociologia e da Literatura, mas, como destaca o professor Sérgio Coutinho dos Santos, autor de trabalhos acadêmicos sobre Pontes, ele não ficou por aí.

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"Como diz o professor Marcos Bernardes de Mello, se Pontes tem um defeito em suas obras é ter escrito em português, pela dificuldade para a tradução para o restante do mundo", opina ele. "Porém, mesmo assim, o diálogo dele com clássicos do seu tempo mostram que ainda há muito o que descobrir. Não apenas grandes nomes do Direito, mas ainda é preciso estudarmos no Brasil os seus estudos em Física, sobre a teoria da relatividade, na amizade com Albert Einstein, o impacto na Biologia, com a descoberta de uma nova espécie, o peso artístico do trabalho na poesia e na marcenaria. Pontes de Miranda levou a interdisciplinaridade a extremos que ainda demandarão estudos por muitos anos".

Essa interdisciplinaridade, diga-se de passagem, não se limitou à produção acadêmica de Pontes de Miranda, que exerceu diversas atividades em sua vida profissional, nem todas ligadas ao universo das leis. Além de advogado, professor de Direito e desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, ele atuou também como diplomata e, nas horas vagas, que provavelmente não eram muitas, dedicava-se com afinco à marcenaria.

Entre as várias honrarias que recebeu em seus 87 anos de vida, uma das mais valiosas foi a eleição para a Academia Brasileira de Letras, tendo tomado posse da cadeira sete da tradicional instituição (atualmente ocupada pelo cineasta Cacá Diegues) em maio de 1979. Infelizmente, Pontes de Miranda desfrutou por muito pouco tempo da condição de imortal da ABL, pois morreu sete meses depois.

* Nesta terça-feira (14/12), a série especial sobre Pontes de Miranda continua com uma reportagem que disseca o "Tratado de Direito Privado", trabalho mais célebre do mestre.

Outros textos da série:
— 'Pontes de Miranda é nosso maior jurista, mas infelizmente está sendo esquecido'
— Maior livro jurídico de todos os tempos é o mais notável legado de Pontes de Miranda 
Pontes de Miranda teve encontro histórico com Albert Einstein e ousou criticá-lo
— Museu em Maceió apresenta a obra de Pontes de Miranda às novas gerações
— Opinião: Breves notas sobre Pontes de Miranda e sua contribuição à ciência do Direito
Opinião: A feitura das leis e sua interpretação na visão de Pontes de Miranda
'Apesar dos seus erros, o Direito brasileiro ainda é um dos melhores do mundo'

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