Defesa da concorrência

Cade, STF e padrão de prova: fertilização cruzada e reputação institucional

Autor

  • Alessandro Octaviani

    é professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP ex-membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e autor entre outros de Recursos genéticos e desenvolvimento Estatais (em coautoria com Irene Nohara) e Estudos Pareceres e Votos de Direito Econômico (vols. I e II).

13 de dezembro de 2021, 8h00

A atuação do Estado para a tutela da concorrência condiciona-se, necessária e estruturalmente, pela legalidade, oferecendo-se aos investigados por infrações à Ordem Econômica as garantias fundamentais atinentes ao processo administrativo, dentre as quais, por óbvio comando constitucional, o contraditório e a ampla defesa.

ConJur
Se assim não for, a tutela da concorrência passa a ser um elemento de distorção institucional, enfraquecimento dos mercados e do próprio projeto constitucional, tornando-se, para relembrar a célebre expressão de Fábio Konder Comparato, "um típico caso de inadequação de meios aos fins".

Por mais que, em anos recentes, diversas autoridades tenham se tornado celebridades nacionais graças à rejeição da legalidade em processos que conduziam, esse não é um arranjo social aceitável; é somente a expressão de uma aberração.

O Cade ganhou, ao longo de anos, inúmeras ferramentas para a descoberta e comprovação da ocorrência e dinâmica interna de ilícitos econômicos, não se vivendo mais a realidade, por exemplo, do longínquo ano de 1999, em que foi proferida a primeira condenação pela autoridade, na vigência da Lei 8.884/94, no então famoso caso do "Cartel do Aço Plano" (Processo Administrativo n°. 08000.015337/1997-48), em que a decisão baseou-se fundamentalmente em "provas econômicas", no mero paralelismo entre as investigadas, sustentando ter-se, com isso, adimplido o ônus probatório constitucional. Tal aumento de dotações institucionais, na outra ponta, foi acompanhado pela cobrança judicial em relação à qualidade das decisões administrativas.

Os anos que imediatamente antecedem e sucedem a Operação Lava-Jato são particularmente relevantes, dada a profusão de decisões sobre provas em delitos econômicos. A prática que, durante certo tempo, pareceu tornar-se rotineira, buscando instituir que meros depoimentos supririam o ônus demonstrativo, foi bloqueada pelo Supremo Tribunal Federal, vindo a necessariamente balizar a prática decisória do CADE e do Poder Judiciário na tutela da defesa da concorrência.

Em acórdão da 2ª Turma, datado de 07.03.2017 (Inq. 3.982, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 05.06.2017), o STF patenteou que "o conteúdo dos depoimentos colhidos em colaboração premiada não é prova por si só eficaz, tanto que descabe condenação lastreada exclusivamente neles, nos termos do art. 4º, § 16, da Lei 12.850/2013". Dada a força de tal enunciado e de suas sucessivas confirmações, atualmente não é razoável aceitar que qualquer decisão ou conclusão final de investigação ancore-se nuclearmente, para condenar, em meros depoimentos ou análogos.

O cuidado com meras menções de delatores — a bem da qualidade institucional da tutela da concorrência, em meio administrativo ou judicial — tonificou, na fertilização cruzada entre o STF e o Cade, inúmeras decisões da autoridade concorrencial que, assim enquadradas, passaram a ser vetores da eficiência administrativa, evitando sua posterior reforma judicial, do que dá exemplo, dentre outros, o Processo Administrativo 08012.006130/2006-22 ("Cartel da Manutenção Predial"), julgado em 18.10.2017, no qual, ao momento da decisão dos embargos de declaração, houve o reconhecimento da ausência de provas concretas em face de um dos representados.1

O esforço de ajustamento, pelo Cade, aos comandos do STF, vem sendo expresso em inúmeros casos, como o julgado em 8/8/2018, referente ao Processo Administrativo 08012.004422/2012-79 ("Cartel dos Estacionamentos"), em que o pronunciamento da Conselheira Paula Farani de Azevedo Silveira, em voto-vogal, lavrou a mensagem de que não bastam declarações unilaterais, ainda que em âmbito de celebração de acordo.2 Há, no núcleo dos precedentes sobre provas em delito econômico no Brasil, atualmente, uma espessa zona calibradora do valor probatório dos depoimentos e fornecimento unilateral de provas: eles são o início, jamais a finalização, do esforço probatório. Eles apontam um caminho para a investigação, não autorizam sua conclusão.

Não é por outra razão que, de modo expresso, o Cade faz uso de tal espessa zona calibradora no Processo Administrativo 08012.001395/2011-00, julgado em 30/1/2019, ou no Processo Administrativo 08700.003735/2015-02, julgado em 13/2/2019, em que, seguindo a senda do STF e dos precedentes do Cade a ela adequados, mesmo diante de acordo de leniência e de vários TCCs, a documentação produzida e apresentada por terceiros (fundamentalmente, documentos manuscritos) foi tida como insuficiente para suportar as declarações dos signatários, impedindo o julgamento condenatório.3

O olhar para a dinâmica interna do conluio, e não apenas para sua existência global, emerge também como um dos principais nódulos da preocupação do Cade em alimentar-se da fertilização cruzada com o STF, levando a descrições muito mais detalhadas das condutas individuais, o que, via de regra, permite separar comportamentos aparentemente assemelhados, mas totalmente dessemelhantes de fato.

A fertilização cruzada entre as decisões do Cade e as balizas constitucionais impostas pelo Supremo Tribunal Federal aos acordos de colaboração levam a uma maior robustez das decisões da autoridade concorrencial, em razão do elevado padrão de prova exigido para uma condenação, o que, por consequência, eleva sua reputação institucional, afastando o sucesso de revisões judiciais das decisões administrativas.

Em uma palavra: quando o Cade eleva seu padrão probatório, aumenta as chances de manutenção das decisões em medidas anulatórias. Deferência não é direito adquirido; é, como fenômeno de reputação e legitimidade, conquista diária.


1 Vejam-se os termos do voto-vogal do Conselheiro Mauricio Oscar Bandeira Maia, ressoando a decisão capitaneada pelo Min. Fachin acima mencionada: "Ocorre que a mera citação dos colaboradores, sem amparo em documentos ou em outras evidências de sua participação, não é suficiente para reconhecer a materialidade da conduta em relação a qualquer acusado. (…) A mera menção da empresa em relato de Acordo de Leniência, sem documentos que demonstrem inequívoco nexo causal dela com a infração, não significa a condenação automática da empresa. Para tanto, a fundamentação da decisão plenária deve conter todos os elementos necessários à explicação do cartel e da participação de cada empresa na colusão, o que, a meu ver, está obscuro no voto condutor (…)."

2 Vejam-se as expressas observações do voto da Conselheira Paula Farani de Azevedo Silveira: "É ônus da Administração provar o ilícito ainda que por provas indiretas. Recordo que a prova indireta é composta do indício mais a presunção. Como não entendo que os indícios são suficientemente precisos, graves e coordenados, entendo não ser possível presumir que os indícios apontam para uma conduta de acordo entre concorrentes para fraudar uma licitação privada. Considerando que alguns indícios apontam inclusive em sentido contrário à tese de cartel (com Representados ‘agindo fora de controle’, ‘passando dos limites’ e fazendo propostas totalmente diversas do que supostamente acordado) e que outros indícios podem ser explicados por práticas de negócios legítimas (como a negociação de compra dos concorrentes pelo Grupo BTG), também entendo que uma condenação baseada estritamente em provas indiretas não é possível. Assim, acompanho a Conselheira Relatora no dispositivo, votando pelo arquivamento do Processo Administrativo (…)".

3 Nos termos do voto do Conselheiro Relator João Paulo de Resende, não havia "qualquer evidência suficientemente grave para que seja possível afirmar que a JTEKT [Yamada] tenha participado de um acordo anticompetitivo com concorrentes. Analisando o conjunto probatório como um todo, entendo também não ser possível fazer essa relação, já que todos os elementos trazidos foram produzidos exclusivamente por terceiros, nem todos fazem referência à JTEKT [Yamada], e não parece haver entre eles uma relação que indique a participação em uma conduta coordenada".

Autores

  • é professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP; ex-membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade); e autor, entre outros, de "Recursos genéticos e desenvolvimento", "Estatais" (em coautoria com Irene Nohara), e "Estudos, Pareceres e Votos de Direito Econômico" (vols. I e II).

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