Opinião

Violência de gênero no Brasil: uma análise racializada e com a aposta na escuta

Autor

  • Adriana Ramos

    é doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mestre em Direito Internacional pela Universidade de Lisboa advogada nas áreas de Direito Constitucional Direitos Humanos Violência contra Mulher e Compliance Antidiscriminatório professora universitária coordenadora de TCC do Ibmec pesquisadora palestrante e sócia do escritório Paes Leme Ramos.

13 de dezembro de 2021, 12h05

A violência de gênero como fator estruturante das sociedades latino-americanas, e, nomeadamente, a brasileira [1], é uma realidade que se traduz em dados, em fatos e em dores. Frutos de uma colonização que normalizou a hierarquização de pessoas e de saberes, os corpos femininos são lidos como territórios a serem dominados, em que as violências nas suas mais diversas facetas estão autorizadas. Corpos rasurados como expressão da violência masculina.

Para a Lei Maria da Penha, são cinco as formas de violência de gênero: violência física, violência sexual, violência psicológica, violência moral e violência patrimonial. Nas análises que serão feitas neste breve ensaio, faço um recorte dos números relativos à violência física e sexual, não analisando as outras formas de violência, que seguem sendo alarmantes [2].

Para Rita Segato, é importante a previsão de leis e obrigações estatais que estabeleçam protocolos para que os laudos periciais, as investigações policiais e o trabalho dos médicos legistas sejam feitos de forma a orientar as especificidades das investigações dos crimes contra as mulheres [3], sendo fundamental que todo o procedimento  da coleta de provas ao julgamento  tenha prespectiva de gênero para que a vítima seja acolhida e o autor, responsabilizado. Ainda segundo Segato, crimes diferentes requerem protocolos de investigação diferentes e por isso só a sua separação clara nos protocolos de investigação policial pode garantir a devida diligência, exigida pelos instrumentos de Justiça internacional dos direitos humanos. [4]

Pode-se argumentar, no caso da criação do tipo penal do feminicídio, que essas circunstâncias específicas não seriam necessárias, pois já estariam incluídas no motivo torpe para a majoração da pena. Entretanto, como nos ensina Carmem Hein Campos, é importante frisar que a discussão sobre a necessidade da previsão legal do feminicídio, partir das lutas feministas, não se pauta  ou não está exclusivamente ancorada  na majoração da pena, mas na necessidade de garantir análises para a criação de protocolos específicos que levam as razões de gênero presentes na conduta feminicida. Caso o crime fosse classificado como torpe, a conduta permaneceria invisibilizada, porque nem toda a motivação torpe tem razões de gênero, sendo, por isso, necessária a previsão legal [5].

De acordo com o "Atlas da Violência 2021", em 2019 3.737 mulheres foram vítimas de homicídio no Brasil [6], dado que corresponde ao total de mulheres vítimas da violência letal tanto em razão de sua condição de gênero como também em dinâmicas derivadas da violência urbana. Nesse mesmo período, ainda de acordo com o "Atlas da Violência", levando em consideração as mortes violentas por causa indeterminada (MVCI), 3.756 foram mulheres mortas de forma violenta, mas sem indicação da causa  se homicídio, acidente ou suicídio , um aumento de 21,6% em relação a 2018 [7], ou seja, somos 7.493 mulheres mortas no Brasil em 2019.

No estado do Rio de Janeiro, de acordo com o "Dossiê Mulher 2021", utilizando como base de análise os dados de 2020, com relação à violência física, 278 mulheres foram vítimas de homicídio doloso, 78, vítimas de feminicídio [8], 543, vítimas de tentativa de homicídio, 270, vítimas de tentativa de feminicídio e 33.371, vítimas de lesão corporal dolosa. Em fazendo uma análise dos dados com o recorte de violência sexual, 5.645 mulheres foram vítimas desses crimes [9].

Os números também apontam para a necessidade de analisarmos o contexto da violência de gênero pelas lentes racializadas, não mais sendo possível qualquer estudo sobre mulheres a partir de um conceito universalizante do que é ser mulher. Retornando aos dados:

"Em 2019, 66% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. Em termos relativos, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras foi de 2,5, a mesma taxa para as mulheres negras foi de 4,1. Isso quer dizer que o risco relativo de uma mulher negra ser vítima de homicídio é 1,7 vezes maior do que o de uma mulher não negra, ou seja, para cada mulher não negra morta, morrem 1,7 mulheres negras. Essa tendência vem sendo verificada há vários anos, mas o que a análise dos últimos onze anos indica é que a redução da violência letal não se traduziu na redução da desigualdade racial" [10].

O "Dossiê Mulher" também traz a mesma realidade ao confirmar que as maiores vítimas de homicídio doloso e tentativa de homicídio foram as mulheres negras, com 186 vítimas ou 66,9% do total de homicídio doloso, e 311 vítimas ou 57,3% do total de mulheres vítimas de tentativa de homicídio. As mulheres negras foram as mais vitimadas em todos os tipos de violência, com exceção da violência moral (48,1%) [11].

Sobre esse ponto, temos de retomar as lições de Lélia Gonzalez ao defender que "o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular", criando estereótipos que se materializam nas figuras da mulata, da doméstica e da mãe preta [12].

Esse olhar subalternizante estabelece quais são os papéis e quais são os lugares autorizados para a mulher branca e a mulher preta, que teve sua humanidade negada com o processo de colonização. De acordo com Maria Lugones:

"Os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as eram classificados/as como espécies não humanas  como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. (…). A mulher europeia burguesa não era entendida como seu complemento, mas como alguém que reproduzia raça e capital por meio de sua pureza sexual, sua passividade, e por estar atada ao lar a serviço do homem branco europeu burguês" [13]

As análises dos dados que confirmam as estruturas patriarcalistas que geram as inúmeras violências que atravessam as vidas das mulheres não podem desconsiderar a invisibilidade que a universalização do sujeito mulher causa nas mulheres negras.

Nesse mesmo sentido, Márcia Nina Bernardes afirma que:

"Os estereótipos de gênero classicamente identificados pelo feminismo hegemônico para ilustrar as formas de naturalização da opressão contra mulheres não se aplicam da mesma maneira sobre os corpos das 'não mulheres'. O mito da fragilidade feminina, a exigência de castidade da mulher e a divisão sexual do trabalho que confinava a mulher à esfera privada, por exemplo, não operam igualmente sobre corpos brancos e negros" [14].

Esse padrão de humanidade engendrado a partir do sujeito universal estabelece uma ordem de coisas que impacta a elaboração do Direito, a interpretação e aplicação das normas jurídicas e a administração do sistema de Justiça. De acordo com Thula Pires, a eficiência da crença na universalidade e neutralidade dos direitos humanos promoveu a ineficiência de sua utilização para promover o enfrentamento das desigualdades raciais, de gênero, sexualidade e deficiência [15].

Evidência da nefasta abstração dos corpos femininos que não consideram as vivências concretas das mulheres negras, pobres e periféricas é o resultado da Lei Maria da Penha, que parece atuar de maneira mais incisiva na proteção das mulheres brancas em comparação a mulheres negras, que permanecem mais vulnerabilizadas.

Nesse sentido, é preciso repensar a interpretação e aplicação da Lei Maria da Penha e dos demais instrumentos normativos criminalizantes a partir da criação de protocolos com perspectiva de gênero e da escuta das vítimas. É preciso repensar esse modelo que aposta no punitivismo e no Direito Penal como a chave da transformação. É preciso garantir centralidade às vítimas em todo o processo, e, como disse Márcia Nina Bernardes, "é preciso desenvolver uma 'infraestrutura de escuta', sem a qual a voz da vítima de violência é silenciada diante dos megafones dos poderosos" [16].

Como um dos exemplos do acima colocado, posso invocar o contexto sobre o aumento de pena previsto no §7º em caso de gravidez, contra pessoa menor de 14 e maior de 60 anos, e na presença de descendente ou ascendente da vítima que expandiu a proposta da Procuradoria das Mulher  de dar visibilidade a conduta feminicida  e incrementou o poder punitivo. De acordo com Carmem Hein Campos, essa política criminal mostrou-se inadequada, pois dar visibilidade ao feminicídio, sem o aumento de pena, estaria mais consoante às premissas de um Direito Penal mínimo ou de mínima incidência punitiva [17]. É preciso garantir a agência das mulheres para que tenham voz e tenham vez. Nesse sentido, Vera de Andrade já nos adverte que:

"O discurso feminista criminalizador, louvável pelas boas intenções e pelo substrato histórico, parece encontrar-se, nessa perspectiva, imerso na reprodução da mesma matriz patriarcal de que faz a crítica, num movimento extraordinariamente circular, pois, em primeiro lugar, reproduz a dependência masculina, na busca da autonomia e emancipação feminina; ou seja, segmentos do movimento feminista buscam libertar-se da opressão masculina (traduzida em diferentes formas de violência) recorrendo à proteção de um sistema demonstradamente classista e sexista e creem encontrar nele o grande pai capaz de reverter sua orfandade social e jurídica. (…) de que adianta correr dos braços violentos do homem (seja marido, chefe ou estranhos) para cair nos braços cio Estado, institucionalizado no sistema penal?" [18].

Assim, temos a partir dessas análises iniciais três premissas: 1) a violência de gênero é uma realidade que subordina as mulheres aos homens e aos valores masculinos; 2) a violência de gênero não é sentida da mesma maneira por mulheres brancas e mulheres negras; e 3) a necessidade de o Direito ser pensado e o sistema de Justiça ser administrado sob a perspectiva de gênero, com a centralidade da vítima e um aparato estatal comprometido com a escuta para atender as demandas das mulheres sem ingerência dos padrões masculinos.

O caminho é longo, mas seguimos!

 


[1] De acordo com Vanessa Berner, para se entender a violência de gênero como estruturante, é necessário perceber que a sociedade é moldada e dominada por homens e por valores masculinos, isto se chama patriarcalismo. Segundo a autora, o patriarcalismo é a base e suporte de todo tipo de autoritarismo ou totalitarismo. Substituir o termo "patriarcado" serve ao propósito de ir além da perspectiva de que apenas a mulher em abstrato é afetada pelas estruturas de dominação que imperam nas relações sociais no sistema capitalista. A expressão "patriarcalismo" é mais adequada por abarcar todo o conjunto de relações opressoras: gênero, sexo, etnia, classe social, conjugadas com a dimensão pública do poder e da exploração do ser humano nas relações sociais. BERNER, Vanessa Oliveira Batista. Teorias Feministas: o Direito como ferramenta de transformação social. Mulher, Sociedade e Vulnerabilidade. Erechim-RS. Editora Deviant LTDA. Pág. 32.

[2] Considero todas as formas de violências graves e todas merecem atenção, mas por decidi pelo recorte do homicídio/feminicídio neste ensaio para respeitar o limite de páginas proposto.

[3] SEGATO, Rita. Femigenocidio y feminicidio: una propuesta de tipificación. Revista Herramienta, n. 49, 2011.

[4] SEGATO, Rita. Femigenocidio y feminicidio: una propuesta de tipificación. Revista Herramienta, n. 49, 2011.

[5] CAMPOS, Carmen Hein de. Violência, Crime e Segurança Pública Feminicídio no Brasil Uma análise crítico-feminista Feminicide in Brazil A critical feminist analysis. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 103-115, jan.-jun. 2015.

[6] Uma taxa de 3,5 vítimas para cada 100 mil habitantes do sexo feminino no Brasil

[7] CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. Pág. 36. Dados disponíveis em https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes. Acesso em 6 DEZ 2021.

[8] Feminicídio é o termo usado para denominar assassinatos de mulheres cometidos em razão do gênero e foi incorporado ao Código Penal pela Lei nº 13.104, de 2015 que alterou a redação do artigo 121.

[9] Dossiê Mulher 2021 [livro eletrônico].  16. ed.  Rio de Janeiro, RJ: Instituto de Segurança Pública, 2021.  (Série estudos. 2). Pág 22. Disponível em http://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/uploads/DossieMulher2021.pdf. Acesso em 6 de DEZ de 2021

[10] CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. Pág. 36. Dados disponíveis em https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes. Acesso em 6 DEZ 2021.Pág. 38.

[11] Violência Física (55,9%); Violência Sexual (55,9%); Violência Psicológica (52%); Violência Patrimonial (49,6%) e Violência Moral (48,1%).

[12] GONZALEZ, Lélia. GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, São Paulo:Anpocs,1984. Pág. 224.

[13] LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3), setembro-dezembro/2014. Pág. 936.

[14] BERNARDES. Márcia Nina. Questões de raça na luta contra a violência de gênero: processos de subalternização em torno da Lei Maria da Penha. Revista Direito GV. V. 16 N. 3 2020. Pág. 11

[15] PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. DIREITOS HUMANOS TRADUZIDOS EM PRETUGUÊS. Disponível em http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499473935_ARQUIVO_Texto_completo_MM_FG_ThulaPires.pdf. Acesso em 4 de DEZ 2021.

[16] BERNARDES. Márcia Nina. Questões de raça na luta contra a violência de gênero: processos de subalternização em torno da Lei Maria da Penha. Revista Direito GV. V. 16 N. 3 2020. Pág. 22.

[17] CAMPOS, Carmen Hein de. Violência, Crime e Segurança Pública Feminicídio no Brasil Uma análise crítico-feminista Feminicide in Brazil A critical feminist analysis. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 103-115, jan.-jun. 2015.

[18] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização / Vera Regina Pereira de Andrade.  Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.

Autores

  • é doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Direito Internacional pela Universidade de Lisboa, advogada constitucionalista, atuando nas áreas de Direito Constitucional, Direito Civil, direitos humanos, violência contra mulher e compliance antidiscriminatório, professora universitária, coordenadora de TCC do Ibmec, pesquisadora e palestrante.

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