Segunda Leitura

Ativismo judicial: afinal, do que se trata?

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

12 de dezembro de 2021, 8h00

Fala-se muito em ativismo judicial, no entanto o tema, é fluído e pouco palpável, o que acaba confundindo mais do que esclarecendo. Para a maioria, contudo, ativismo seria algo ligado ao juiz tornar-se mais atuante, protagonista, alguém que toma iniciativas e não se contenta em ser mero expectador das provas do processo.

Spacca
O ativismo judicial tem a sua origem após a Segunda Grande Guerra Mundial, com o alargamento das declarações de direitos na Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU (1948) e nas novas Constituições dos países democráticos. Além disto, Tribunais Constitucionais na Europa e mais tarde na América Latina (v.g., Colômbia e Costa Rica), passaram a ter grande influência na interpretação das Constituições.

Basicamente, os direitos expressos nas Constituições, outrora tidos como programáticos, passaram a ser exigidos do Estado, além do que toda a legislação inferior (v.g., o Código Civil), passou a ser interpretada de acordo com as normas constitucionais.

Imprescindível, também, registrar a influência dos Estados Unidos da América e, em especial, de sua respeitada Suprema Corte que, muito mais do que a Corte Internacional de Haia, dita práticas que se entranham em nosso sistema de Justiça.

Não será demais dizer que o ativismo não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Ensina Sérgio Merola Martins, que no Canadá a Suprema Corte decidiu se os Estados Unidos poderiam fazer testes com mísseis no interior do território canadense e que em Israel a Suprema Corte decidiu sobre a construção do muro dividindo o território do país com a Palestina [1]. Estas decisões dizem respeito a funções típicas do Poder Executivo.

Há duas espécies distintas de ativismo: difuso e concreto. A primeira, via de regra exercida pelo Supremo Tribunal Federal, ao apreciar em ações que envolvem discussão sobre a constitucionalidade de determinadas normas. Elas geram efeitos sobre um número indeterminado de pessoas. A segunda, exercida pelos juízes na análise de ações judiciais entre partes interessadas (casos concretos), costuma envolver direitos individuais ou coletivos, nesta hipótese através de ações civis públicas.

Será bom o ativismo judicial? Sim e não é a resposta. Sim, quando ele se propõe a impulsionar os demais poderes a tomar iniciativa premente e necessária (normalmente exercida pelo STF) ou quando a iniciativa de membros do Poder Judiciário descobre meios para agilizar a Justiça. Não, quando os magistrados interferem indevidamente nos outros Poderes de Estado, sem avaliar as consequências paralelas de seus atos.

Mas o que move um juiz a ser mais ativista? Ao meu ver, dois aspectos: 1) idealismo na maioria dos casos, levando à busca de ser agente de transformação social que beneficie o Brasil e a sociedade; 2) sentimentos, algo subjetivo que nem sempre é percebido pelo próprio autor e muito menos reconhecido. O ato pode ser fruto de vaidade, necessidade de ser estimado, ânsia de populismo e até mesmo vingança. Não podemos nos esquecer que nós humanos somos seres imperfeitos e que estes defeitos nos acompanham durante nossa existência. Cabe-nos estar vigilantes para combatê-los e controlá-los.

Importante notar, desde logo, que o Estado é composto por três Poderes, autônomos e independentes entre si. Esta tripartição foi idealizada por Montesquieu que sabia que "todo homem que tem Poder é levado a abusar dele; vai até encontrar os limites" [2]. Pois bem, autonomia não significa soberania e por isso deve ser evitado que o juiz encare o chefe do Poder Executivo ou do Legislativo como um inimigo a ser punido diariamente por seus atos ou omissões. Não, o magistrado deve ter em mente que tudo deve fazer para que as coisas melhorem, desde uma pequena comarca interiorana a Brasília.

Passemos ao ativismo, lembrando que ele é fruto de um mundo globalizado, unido pela conexão via internet e de todas as mudanças ocorridas nos últimos 30 anos. Isto leva o Judiciário a abandonar o secular princípio ne procedat judex ex officio e a se antecipar na busca de soluções antes que a lide se estabeleça.

Com foco na primeira instância, entre outras iniciativas positivas, temos: tentativas de composição amigável em ações cíveis antes da citação; criação de laboratórios de inovação na Justiça Federal em vários estados, a fim de criar soluções para os problemas processuais, discutidas com a participação de todos os interessados [3]; a possibilidade do juiz determinar de ofício a execução provisória em determinadas ações (artigo 497 do CPC); a justiça restaurativa, onde se busca uma solução ampla, com a presença de autor, vítimas e outros interessados, se houver.

De negativo, o ativismo tem o fato de que o juiz, ao decidir entre partes, não atenta para o fato de que atingirá terceiros. Por exemplo, ao deferir uma liminar determinando a suspensão de atividades de uma usina hidrelétrica, precisa dar-se conta de que o fato poderá atingir um grande número de indústrias, resultar em perda de empregos e na diminuição de recolhimento de tributos. Assim, se for necessário e não houver outra solução, deve, sim, suspender as atividades. Mas sempre avaliando todas as consequências.

Mas, nenhum setor é passível de controvérsias como as liminares na área do direito à saúde, amparada pelo amplo artigo 196 da Constituição. Os mais variados tipos de problemas, desde tratamentos caríssimos até a ordem para colocar-se alguém na UTI de um hospital, podem surgir. Sem falar de tratamentos não reconhecidos cientificamente, mas reclamados em Juízo e que levam a decisões equivocadas.

A questão da saúde passa por sentimentos. O brasileiro é sentimental por excelência, sensibiliza-se com o sofrimento alheio. Totalmente diferente seria no caso a reação de um europeu da Europa do Norte. E então vem a liminar baseada em um pensamento imaturo: "nas minhas mãos não morrerá". Bem ao estilo do juiz Magnaud que, independentemente de seus méritos, deu início à chamada jurisprudência sentimental [4]. Carlos Maximiliano, cita João Cruet, para quem "quando o magistrado se deixa guiar pelo sentimento, a lide degenera em loteria, ninguém sabe como cumprir a lei a coberto de condenações forenses" [5].

Nesta área, em que liminares causam danos econômicos enormes que atingem milhares de pessoas incógnitas, que terão que adiar seus tratamentos ou cirurgias por conta dos custos de uma só pessoa que conseguiu liberação para procurar solução nos Estados Unidos, felizmente começa a se chegar a um ponto de equilíbrio, pela criação pelo CNJ de comitês estaduais para tentar diminuir a judicialização da saúde.

Com foco no STF, ações invocando a Constituição se sucedem a cada ato do Poder Executivo ou Legislativo, como se a Corte fosse um terceiro órgão do Congresso Nacional. Algumas são oportunas, outras políticas. Decisões proferidas com a melhor das intenções, podem suscitar consequências de difícil mensuração.

A criminalização da homofobia como racismo decidida pelo STF por analogia [6], revela ativismo judicial consistente em fazer o que o Congresso se negava a fazer. Muito embora o mérito seja correto, já que a homofobia merece todo o repúdio, o certo é que o Supremo rompeu com o princípio secular da legalidade, abrindo exceção que, no futuro, poderá ser aplicada a outras as hipóteses. Imagine-se que a Corte, daqui a dez anos, substituídos todos ou quase todos atuais ministros, decida que é crime de apropriação indébita (artigo 168 do CP), emprestar por 24 horas a terceiro, coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção. Ou outra coisa qualquer que lhe pareça de justiça.

Juízes de primeira instância devem refletir bem sobre decisões que interfiram nas atividades de outros Poderes, pois, os magistrados de carreira, ao contrário dos ministros do STF, sujeitam-se às Corregedorias, ao CNJ e aos rigores do artigo 30 da Lei de Abuso de Autoridade.

Um bom guia para orientar as decisões judiciais em matéria de ativismo é a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, ou seja, o velho Decreto-Lei 4.657, de 1942, com a redação dada pela Lei 13.655, de 2018.

O artigo 20 dispõe quem "não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". O artigo 23 fala que as decisões devem prever regime de transição sempre que se revele necessário, evitando aquelas ordens que criam mais injustiças que justiça. O artigo 26 dispõe que na aplicação do direito público, a autoridade judiciária poderá "…após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados". E o artigo 30 estimula a autoridade a zelar pela segurança jurídica, algo que vem trazendo sérios problemas aos jurisdicionados. São medidas oportunas e que merecem toda a atenção.

Em suma, o ativismo judicial pode e deve ser praticado. Porém, com maturidade, comedimento, em decisão bem refletida, fundamentada e que possa ser executada, pois nada desmoraliza mais o Judiciário do que o descumprimento de ordem judicial.


[1] MARTINS, Sérgio Merola. Ativismo judicial: o que é, histórico e exemplos. Disponível em: https://www.aurum.com.br/blog/ativismo-judicial/. Acesso em 8 dez. 2021.

[2] MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Barão de Brède e de. O Espírito das Leis São Paulo: Saraiva, 1987, p. 198.

[3] Exemplo: iJuspLab (Laboratório de Inovação da Justiça Federal de São Paulo). Disponível em: https://www.jfsp.jus.br/servicos-administrativos/ijusplab. Acesso em 9 dez. 2021.

[4] FREITAS, Vladimir Passos de. O bom juiz Magnaud. Conheça o juiz que viveu à frente de seu tempo. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 8 mar. 2009. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-mar-08/segunda-leitura-paul-magnaud-juiz-viveu-frente-tempo. Acesso em: 8 dez. 2021.

[5] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 9ª. ed., p. 83

[6] STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, Plenário, relator ministro Celso de Mello, j. 13/06/2019.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!