Embargos Culturais

Gilberto Bercovici e o estado de exceção permanente

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

12 de dezembro de 2021, 8h00

O estado de exceção revelou-se em toda sua expressão na Alemanha nazista (1933-1945). É um paradigma de governo, regra, modelo, questão de fato, mais do que problema jurídico. É o resultado de patamar indeterminado entre livre-escolha e autoritarismo. A exceção tornou-se regra, o transitório tornou-se definitivo, o totalitarismo aniquilou a democracia, cujo limite de possibilidades redundou, objetivamente, em sua própria destruição. Do ponto de vista do instrumentalismo operacional o estado de exceção, no caso alemão, gostemos ou não da afirmação, radica na Constituição de Weimar. E temos várias ocorrências entre nós também.

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O assunto foi explorado com profundidade por Gilberto Bercovici, professor da Universidade de São Paulo, autor de trabalhos de muita qualidade, em temas de Direito Constitucional, Direito Econômico, História do Direito, entre outros. "Constituição e Estado de Exceção Permanente, Atualidade de Weimar" é um livro fundamental, do ponto de vista histórico e também para a compreensão de nossos tempos.

Chamo inicialmente a atenção para a apresentação do livro, de autoria de Cícero Araújo, também professor na USP, e que foi meu colega de ginásio, no Colégio Marista de Londrina, no Paraná, na primeira metade da década de 1970. Cícero era o aluno que nós mais admirávamos, uma das pessoas mais inteligentes que conheci, e que não encontro há 45 anos. A apresentação de Cícero fixa o núcleo do tema, a República de Weimar (1919-1933), como "capítulo fascinante e dramático da história do século XX".

Dedicado ao avô, que Bercovici lembra como "também uma vítima da República de Weimar", o livro enfrenta o tópico da legitimidade política da Constituição de Weimar, e o agravamento dessa legitimidade, no contexto da crise econômica que a Alemanha viveu, ao longo da década de 1920. O livro retoma o papel de Carl Schmitt nessa discussão, especialmente quanto ao tema de estado de exceção econômico.

Fica no ar uma pergunta já explorada em outro livro instigante: "O que faremos com Carl Schmitt?" (O autor desse livro é Jean-François Kervégan, argelino que ensina na França). A antinomia amigo-inimigo, central em alguns livros de Carl Schmitt, e que substancializa a conclusão do livro de Bercovici, matiza o Brasil contemporâneo. Tenho a impressão que nunca se odiou tanto. Ou então, que o ódio é um sentimento permanente, em estado de latência, tornado instantâneo e recorrente. Por que há tantos inimigos?

O livro de Bercovici divide-se em cinco partes que transitam no mesmo leitmotiv. Repassa os pontos principais da Constituição de Weimar, aproxima o capitalismo organizado em forma de democracia econômica, explora o contexto de um Estado de emergência econômico e o Estado total, interpreta o tema do Estado Social de Direito e, por fim (assunto que poderia organizar nossas ideias em relação aos problemas atuais), o debate de Weimar no contexto da periferia do capitalismo.

O subdesenvolvimento, circunstância econômica que nos é permanente, não fica ao largo da discussão de Bercovici, a partir de uma compreensão normativa da miséria. Segundo Bercovici, "(…) não podemos esquecer que o subdesenvolvimento, em suas raízes, é um fenômeno de dominação". A consciência da dimensão política do subdesenvolvimento não foi resolvida pela modernização dos países periféricos. Não houve ruptura com as estruturas socioeconômicas. Persiste a situação, agora disfarçada em combate à corrupção. A simplicidade macunaímica da discussão atual fez da consequência a causa dos problemas. Difícil sair dessa.

O estado de exceção tornou-se ainda mais permanente. Formulado conceitualmente como resultado imprescindível de um momento que é definido apenas pelo soberano, que é quem decide sobre o estado de exceção: é a máxima de Carl Schmitt. O estado de exceção é instância política marcada pela confirmação do poder de quem toma decisões, despontando, assim, como indício de uma teoria constitucional decisionista.

O estado de exceção é categoria originaria e ordinariamente pensada como uma dinâmica para enfrentamento de crises e emergências, marcada por elementos de integração e de desintegração de uma situação anômala e intermediária entre a guerra e a paz, também na lógica de Carl Schmitt. Desdobrou-se, no entanto, especialmente na experiência nazista, como mecanismo de tentativa de uma estabilização forçada e imposta. Nada mudou, especialmente na periferia. É o que vemos, em cada esquina, onde há um miserável pedindo ajuda.

O direito penal do espetáculo confirma a premissa. As relações entre o estado de exceção e o processo penal são de uma quase absoluta antinomia, levando-se em conta que a liberdade e a legalidade prestigiadas por este último são substancialmente desprezadas por aquele primeiro. No estado de exceção há fortíssima ameaça ao Direito, situação paradoxal, justamente porque concebida como forma de proteção da ordem ameaçada. Há farto material histórico ilustrativo dessa afirmação, a exemplo do que ocorreu na Alemanha ao longo da ditadura nazista, bem como os antecedentes de Weimar, que Bercovici explorou nesse belíssimo livro.

O artigo 48 da Constituição de Weimar dispunha que o presidente da República poderia adotar medidas de exceção nas hipóteses de ameaça à segurança pública e a ordem; a excepcionalidade da medida tornou-se regra a partir de 1933, com a ascensão do nazismo. Com base no mencionado artigo 48 da Constituição de Weimar, mediante um decreto, formulado para a "proteção do povo e do Estado", suspenderam-se os artigos da Constituição então vigente, relativos às liberdades individuais, perenizando o que se suponha constitucionalmente transitório.

A violência de regimes de exceção radica (naturalmente) em gravíssima crise econômica acentuada também por agudíssima crise política, fomentada por intensa publicidade; os líderes do nacional-socialismo inventaram uma propaganda totalitarista que encantava uma sociedade de massas, como se lê em famoso livro de Hannah Arendt. Enfatizava-se uma liderança real, marcada por forte carisma. Será que há mudanças?

O estado de exceção, estudado sob uma ótica substancialmente econômica, é o assunto explorado por Bercovici, que revela como o embate entre direita e esquerda é muito mais orgânico do que imaginamos. A Constituição de Weimar ocupou-se da regulamentação econômica, em forma de simulação de debate jurídico, de um problema que não é jurídico. Uma carta do jovem Marx a seu pai de algum modo intuía essa farsa normativa. O livro de Bercovici explica essa história. É um livro recomendadíssimo, especialmente para quem tentamos entender nossos dilemas e tragédias. Um livro de 2004, que já previa o que viveríamos 20 anos depois.

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